É curioso como certos
ciclos de tema e criatividade são por muitas
vezes surtos que vão e voltam, algo como os acidentes
naturais como tornados, que aparecem no Japão
para retornar no México. Curioso o caminho tomado
pelo cinema adolescente mais interessante, que teve
seu apogeu nos anos 80 nos Estados Unidos e, depois
de uma modesta tentativa de reerguimento através
das séries de televisão (Anos Incríveis,
Dawson's Creek), e que inacreditavelmente foi
reaparecer na Ásia! Depois de despontar na Coréia
do Sul com dois belos filmes sobre colégio secundário,
Memento Mori e Cuide das Minhas Coisas,
Taiwan também aparece no mapa com o singelo Passagem
Azul. Entre os três, diversas coincidências
além do mundo do colégio: a amizade entre
meninas, a passagem à idade adulta e ao mundo
da responsabilidade, um ritmo calmo e prosaico que nos
permite entrar tanto nos acntecimentos frenéticos
quanto na vida rotineira da vida colegial. O mais curioso
não pode deixar de ser o modo como certos filmes
que nós ocidentais vemos como produtos de "arte
e ensaio" ganham livre curso nos mercados das ilhas
chinesas (Taiwan, Hong Kong) e na Coréia. Dos
mirabolantes filmes de ação e kung-fu
aos afrescos históricos de Hou Hsiao-hsien passando
e chegando aos cuidadosos e minimalistas filmes sobre
a vida de colégio, o Oriente nunca deixa de surpreender.
Passagem Azul surpreende antes de tudo por isso:
por ser menos um produto artsy ou seja,
com necessidade quase protocolar de ser sensível,
bem pensante e pretensamente profundos do que
um filme de gênero realizado com muito cuidado
pelos sentimentos humanos, sem muitas preocupações
em ser autoral ou cheio de tiques narrativos ou visuais.
Obviamente, certas predileções aparecem:
um indisfarçado gosto pela repetição
dos gestos e das frases, uma preferência antes
pelas tensões e pelos impasses criados do que
propriamente pelas soluções que deles
derivam...
Kerou e Yuezhen são duas melhores amigas que
freqüentam a mesma sala de aula. Como muitas vezes
nessas amizades, as duas têm pouca coisa em comum,
e é a proximidade que as une. Ao passo que Kerou
é ensimesmada e introspectiva, Yuezhen é
volúvel e imatura. Enquanto uma está à
procura de namoricos de colégio, a outra não
sabe exatamente o que busca, mas sabe que quer que seja
algo firme e duradouro. O interesse de Yuezhen por Shihao,
garoto que faz parte da equipe de natação
do colégio, fará com que as duas conheçam-se
melhor a si mesmas e, dessa forma, passem a medir a
distância que há entre elas. Daí,
passa a funcionar uma narrativa estilo A ama B que ama
C: Yuezhen é mais bonita, mas é Kerou
que assume a disposição de ir falar com
o menino. Shihao, por sua vez, acredita que a "amiga"
é uma invenção de Kerou para conquistá-lo,
e fica fascinado com a personalidade firme porém
indecisa da menina. Enquanto a narrativa vai aos poucos
se esquecendo de Yuezhen, Kerou vai cada vez mais se
afeiçoando pelo menino, mas não se decidiu
ainda se gosta dele, se é homossexual e está
de fato apaixonada por Yuezhen ou se apronta-se a tornar-se
heterossexual beijando o professor de educação
física. Essas dúvida, aquilo que diz respeito
diretamente à constituição da personalidade
de cada personagem, o filme aos poucos irá relegando
a segundo plano, pois a atenção principal
é dada justamente aos interstícios, aos
momentos de vacilo, de dúvida, de indecisão.
Sobre a passagem da adolescência à fase
adulta, o diretor Yee Chih-yen podia ter feito um relato
professoral, de cima para baixo, sobre como nossas vivências
determinam para sempre nosso futuro; preferiu nos entregar
um libelo sobre a beleza da liberdade que é estar
livre para tomar qualquer rumo que a vida permitir.
Professor, preferiu assumir a posição
do aluno, do colega de classe. Realizou uma pequena
pérola, delicada, adorável e tão
mais gostosa de assistir quanto chega ao artístico
sem precisar partir dele.
Ruy Gardnier
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