PASSAGEM AZUL
Yee Chih-yen, Blue gate crossing, Taiwan/França, 2002

É curioso como certos ciclos de tema e criatividade são por muitas vezes surtos que vão e voltam, algo como os acidentes naturais como tornados, que aparecem no Japão para retornar no México. Curioso o caminho tomado pelo cinema adolescente mais interessante, que teve seu apogeu nos anos 80 nos Estados Unidos e, depois de uma modesta tentativa de reerguimento através das séries de televisão (Anos Incríveis, Dawson's Creek), e que inacreditavelmente foi reaparecer na Ásia! Depois de despontar na Coréia do Sul com dois belos filmes sobre colégio secundário, Memento Mori e Cuide das Minhas Coisas, Taiwan também aparece no mapa com o singelo Passagem Azul. Entre os três, diversas coincidências além do mundo do colégio: a amizade entre meninas, a passagem à idade adulta e ao mundo da responsabilidade, um ritmo calmo e prosaico que nos permite entrar tanto nos acntecimentos frenéticos quanto na vida rotineira da vida colegial. O mais curioso não pode deixar de ser o modo como certos filmes que nós ocidentais vemos como produtos de "arte e ensaio" ganham livre curso nos mercados das ilhas chinesas (Taiwan, Hong Kong) e na Coréia. Dos mirabolantes filmes de ação e kung-fu aos afrescos históricos de Hou Hsiao-hsien passando e chegando aos cuidadosos e minimalistas filmes sobre a vida de colégio, o Oriente nunca deixa de surpreender.

Passagem Azul surpreende antes de tudo por isso: por ser menos um produto artsy – ou seja, com necessidade quase protocolar de ser sensível, bem pensante e pretensamente profundos – do que um filme de gênero realizado com muito cuidado pelos sentimentos humanos, sem muitas preocupações em ser autoral ou cheio de tiques narrativos ou visuais. Obviamente, certas predileções aparecem: um indisfarçado gosto pela repetição dos gestos e das frases, uma preferência antes pelas tensões e pelos impasses criados do que propriamente pelas soluções que deles derivam...

Kerou e Yuezhen são duas melhores amigas que freqüentam a mesma sala de aula. Como muitas vezes nessas amizades, as duas têm pouca coisa em comum, e é a proximidade que as une. Ao passo que Kerou é ensimesmada e introspectiva, Yuezhen é volúvel e imatura. Enquanto uma está à procura de namoricos de colégio, a outra não sabe exatamente o que busca, mas sabe que quer que seja algo firme e duradouro. O interesse de Yuezhen por Shihao, garoto que faz parte da equipe de natação do colégio, fará com que as duas conheçam-se melhor a si mesmas e, dessa forma, passem a medir a distância que há entre elas. Daí, passa a funcionar uma narrativa estilo A ama B que ama C: Yuezhen é mais bonita, mas é Kerou que assume a disposição de ir falar com o menino. Shihao, por sua vez, acredita que a "amiga" é uma invenção de Kerou para conquistá-lo, e fica fascinado com a personalidade firme porém indecisa da menina. Enquanto a narrativa vai aos poucos se esquecendo de Yuezhen, Kerou vai cada vez mais se afeiçoando pelo menino, mas não se decidiu ainda se gosta dele, se é homossexual e está de fato apaixonada por Yuezhen ou se apronta-se a tornar-se heterossexual beijando o professor de educação física. Essas dúvida, aquilo que diz respeito diretamente à constituição da personalidade de cada personagem, o filme aos poucos irá relegando a segundo plano, pois a atenção principal é dada justamente aos interstícios, aos momentos de vacilo, de dúvida, de indecisão. Sobre a passagem da adolescência à fase adulta, o diretor Yee Chih-yen podia ter feito um relato professoral, de cima para baixo, sobre como nossas vivências determinam para sempre nosso futuro; preferiu nos entregar um libelo sobre a beleza da liberdade que é estar livre para tomar qualquer rumo que a vida permitir. Professor, preferiu assumir a posição do aluno, do colega de classe. Realizou uma pequena pérola, delicada, adorável e tão mais gostosa de assistir quanto chega ao artístico sem precisar partir dele.

Ruy Gardnier