OURO CARMIM
Jafar Panahi, Talaye sorkh, Irã, 2003

Na primeira seqüência de Ouro Carmim, Hussein (Hossain Emadeddin) assalta uma joalheria. Desesperado, suicida-se. O restante do filme se desenvolve em um enorme flashback, a fim de mostrar o que leva o protagonista a cometer tal ato. Estrutura convencional, caso Jafar Panahi se contentasse com os mecanismos psicológicos que originam a angústia: ele, ao contrário, prefere desnudar as desigualdades sócio-econômicas da sociedade iraniana que se abatem (e que abatem) o indivíduo.

Ouro Carmim é filtrado pelo olhar de Hussein. Todos os acontecimentos do filme giram em torno do personagem principal, cujo trabalho de entregador de pizza permite-lhe circular pelas ruas de Teerã. A cidade, revelada pela câmera de Panahi, é completamente outra daquela que o público ocidental está acostumado a ver no cinema iraniano: trata-se não de pequena vila poeirenta, com casebres sobrepostos onde todos os habitantes se conhecem, mas sim de metrópole urbana, industrial, violenta, marcada pelo abismo crescente entre ricos e pobres.

São as mudanças econômicas que chegam ao Irã, embora a teocracia que domine o país tente sufocá-las: a influência das práticas capitalistas, que se fazem notar tanto na joalheria que atende a elite ávida pelo consumo de luxo, quanto na festa em que a polícia vigia - símbolo do esbanjamento que em nada coaduna com os rigores do islamismo xiita. No meio do furacão que toma de assalto a sociedade está Hussein, herói passivo, homem comum que observa, perplexo, o que ocorre a sua volta, tentando sobreviver ao dia-a-dia cada vez mais enlouquecido que se lhe apresenta.

Hussein afasta-se, assim, do herói tradicional, uma vez que não reage, a princípio, sobre a realidade. Outra característica do personagem delineado por Panahi e Kiarostami (autor do roteiro), e que contribui para o estranhamento que seu comportamento atípico provoca no espectador, é a ausência de motivações a priori. Em outras palavras, o protagonista de Ouro Carmim existe apenas na duração compreendida em cada plano, no espaço construído dentro dos limites da tela – em suma, nas relações que Hussein estabelece com o ambiente onde vive e com os demais personagens que encontra ao longo do caminho.

Soldado de quinze anos de tocaia em festa suspeita, executivo solitário abandonado pelas prostitutas que contratou, joalheiro que recusa em atender clientes de classes baixas: a Teerã de Ouro Carmim se constitui em verdadeiro teatro do absurdo, representada por Panahi através do nonsense, paradoxalmente a única forma capaz de estabelecer a mínima tentativa de compreensão sobre este mundo caótico e de, conseqüentemente, preservar a sanidade do indivíduo quando posto em contato com tal normalidade anormal.

Proibido e jamais exibido comercialmente nos cinemas iranianos, Ouro Carmim incomoda as autoridades do país de origem, em primeiro lugar, pelo choque de realidade brutal que proporciona, exibindo uma sociedade muito mais ocidentalizada do que gostariam os clérigos que controlam a política nacional. No entanto, a subversão de Panahi está, sobretudo, na reação de Hussein ao estado das coisas, que, segurado ao longo de filme, finalmente se dá no assalto descontrolado à joalheria: contra a humilhação, contra a injustiça, a revolta, tanto mais expressiva porque inútil.

Paulo Ricardo de Almeida