O novo filme de Steven Spielberg
começa parecendo um grande pedido de desculpas, um mea culpa norte-americano (vindo de seu
filho cinematográfico mais dileto em renome internacional)
com o resto do mundo. Primeiro vemos filas enormes de
imigração amontoando visitantes nos aeroportos norte-americanos,
situação mais contemporânea impossível. Nesta sequência
de abertura, Spielberg exibe toda sua destreza de linguagem
para colocar o espectador como uma daquelas pessoas
presas nas filas e nas perguntas, no “ser ou não aceito”
pela América. Depois, operação ainda mais avançada,
ele pega o mais autêntico ideal de herói norte-americano
do cinema atual, a encarnação do common man, Tom Hanks, e o coloca como
o estrangeiro que é pego pela burocracia do sistema
oficial. Parece querer dizer: “estão vendo, nós entendemos
como vocês se sentem, mesmo nosso maior ícone Tom Hanks
poderia sofrer do mesmo que vocês”. Finalmente, quando
surge a figura do chefe de segurança do aeroporto fica
completo o quadro: o homem que, em posição de poder,
abusa deste por idéias e veleidades muitas vezes absolutamente
pessoais, indo contra a boa vontade e os ideais inerentes
à grande América (num certo momento o superior em processo
de aposentadoria diz que ele está indo contra “as bases
do nosso país”). A comparação com George W. Bush é tão
mais óbvia quanto impossível de não mencionar. Há um
outro momento em que Spielberg parece pegar ainda mais
pesado, que é quando o seu protagonista se vê de fato
preso ao terminal do aeroporto (que funciona como inegável
microcosmo da América), e perguntado sobre o que poderia
fazer ali, recebe como resposta: “Você pode comprar”.
Uau, Spielberg urdindo uma alegoria de “esquerda” sobre
os tempos atuais? Não exatamente, não exatamente. Porque
se o filme tem essa inegável leitura narrativa, há que
se ver o que o diretor vai fazer com ela. Neste sentido,
mais na frente duas chaves são importantes para quebrar
esta leitura direta. Antes de mais nada o trajeto do
personagem de Victor Navorski, que parece uma bizarra
mistura de duas personas anteriores de Hanks (não por
acaso em dois filmes do mais bem-sucedido “filhote”
de Spielberg, Robert Zemeckis) – o “náufrago” isolado
construindo um lar na sua “ilha”, sobrevivendo por conta
de suas habilidades; e Forrest Gump, o idiota apolítico
e simpático. Só que aqui toda a condição de idiota
é dada exatamente por aquilo que o filme parece querer
exaltar: sua condição de estrangeiro. Navorski é colocado
perante a platéia na posição do “bobo-alegre simpático”,
exatamente como Gump: despolitizado (afinal, o que ele
acha do golpe de estado que inviabiliza sua nacionalidade
“krakhoziana”??), incapacitado de articular idéias e
pensamentos levemente mais avançados (o que é a princípio
ligado ao domínio da língua, mas logo que esta barreira
é ultrapassada, mantém-se a idiotia). Navorski começa,
então, a estabelecer uma comunidade com outros “excluídos”
do aeroporto – na maioria imigrantes. O que em Tim Burton
ou John Carpenter poderia se configurar num instigante
elogio aos “outsiders”, em Spielberg é tão-somente tornar
os excluídos figuras folclóricas, que precisam do olhar
condescendente do sistema para continuar operando. Acima
de tudo, em se tratando de Spielberg, trata-se de infantilizar
as figuras, seus protagonistas e todas as suas operações
com o mundo. E é aí é que o Gump-náufrago vai lentamente
se revelando ET (não custa lembrar que a expressão americana
para o imigrante ilegal é “illegal alien”), e embora
ele não tente telefonar, no final surge a frase: “I’m
going home”.
A segunda chave de leitura se refere ao “objetivo secreto”
que leva Navorski a querer entrar em Nova York, revelado
apenas na meia-hora final. A primeira coisa a se observar
sobre este objetivo é a repetição da obsessão spielberguiana
por natureza: a figura do pai. Assim, surge novamente
o pai como um fantasma que assombra a existência do
filho – ou seja, o motor do filme é antes psicanalítico
do que político. Em seguida, vem a filmagem da América
quando o homem finalmente consegue sair do aeroporto.
Spielberg reafirma, então, a boa América, aquela que
faz com que “krakhozianos” do mundo inteiro desejem
cruzar o mundo e enfrentar os labirintos da burocracia
estatal para vivenciá-la nem que seja brevemente – a
"boa América" aqui encarnada na sua música,
no jazz. Com
isso, ressurge com toda força o sonho americano como
ideal válido para o mundo todo, e com isso a imagem
final da Broadway vista pela janela do táxi ganha estatuto
duplo de enorme confusão: se lido pelo recém-apresentado
no filme, trata-se do sonho americano idealizado na
abundância econômico-cultural; no entanto
o mar de logomarcas de Times Square e os prédios enormes
e modernos também surgem como monstros deformados deste
sonho. E, embora a segunda visão pareça preponderante
ao espectador, não parece ser a de Spielberg, ou principalmente,
a de Navorski. Fica para nós a dúvida: afinal, ele vai
ou não comprar no aeroporto, antes de voltar a Krakhozia,
a camiseta de “I love NY”??
Ainda que seja imprescindível dar conta de algumas dessas
questões sobre o filme, assim como poderíamos discutir
muito o estatuto das imagens num filme onde abundam
TVs e câmeras por todo o lado, o fato é que talvez a
mais interessante discussão acerca de O Terminal não seja nenhuma destas e sim
uma que fala diretamente sobre a origem da história
que conta - como se sabe, o filme é baseado na vida
de um homem que mora há anos no terminal do aeroporto
Charles de Gaulle em Paris. Pois bem, talvez o que mais
nos ensine sobre Spielberg, principalmente como ícone
mundial do “grande cinema americano” é a complexa operação
de pegar essa história e transformar no seu filme. Porque,
no final das contas, a história do homem preso no terminal
do aeroporto é, antes de tudo, a história de um não-personagem
envolvido na ausência completa de ação. Como transformar
isso em ação, em um “filme de verão” - essencialmente
norte-americano não só em temas e obsessões (como vimos
acima), mas em termos de estrutura dramática-visual?
É este embate que chama a atenção o filme inteiro: a
quantidade de fios, numa conjunção de elementos narrativos
e de linguagem cinematográfica, que o mestre-titereiro
Spielberg precisa mover para negar o estatuto inicial
(eminentemente existencial) desta história e montar
então seu filme. Uma primeira operação que impressiona
é a da transformação do terminal onde o personagem mora
em uma “ilha deserta” à la Robinson Crusoe – ou seja,
o banal é tornado “mágico”. Também chama a atenção o
trabalho fluido e em constante movimento das câmeras
de Spielberg, especialmente as que sobrevoam a parte
mais comercial do aeroporto, impedindo a repetição,
a inação.
Mas é na urdidura do roteiro que mais chama a atenção
este conflito entre narratividade e falta de ação. Incapaz
de conseguir tornar o personagem por si mesmo em vida
cinematográfica, Spielberg apela para os dois principais
elementos constituidores de uma narrativa clássica entendida
da forma mais banal: um conflito (onde surge um vilão,
o personagem de Stanley Tucci) e um interesse romântico
(com Catherine Zeta-Jones – numa historieta particularmente
infantilizada, que em muito lembra aliás os romances
platônicos de Didi Mocó nos velhos filmes dos Trapalhões).
Nenhum dos dois fios de história consegue ser mais do
que uma desculpa para ganhar o interesse do público,
areia jogada nos olhos para disfarçar a inexistência
de uma narrativa de fato: todas as cenas com estes personagens
soam forçadas, desinteressadas. Para ganhar tempo entre
elas, então, Spielberg vai criando uma série de pequenos
dramas, pequenos mini-filmes, que se estruturam exatamente
como tal, isolados: “a busca por trabalho”, “a busca
por comida”, “a tentativa de juntar o funcionário da
empresa de comida com a policial de alfândega”. Estes
filminhos vão sendo deixados de lado para a entrada
dos próximos, sem criar uma consequência de fato, apenas
passando o tempo (onde se destaque o quão bizarra soa
depois a volta ao assunto do casamento da policial com
o funcionário, a esta altura assunto esquecido pelo
filme por mais de uma hora).
Se Spielberg é bem sucedido no seu lance de mágico?
Pode ser que sim, pelos olhos de um grande público,
afinal ninguém duvida do domínio do cineasta sobre este.
Porém, para os mais atentos, o interessante é observar
menos o resultado e mais o processo em si, pois é da
batalha de um sistema de produção de narrativas com
o impalpável da vida real que vem o maior fascínio por
mais esta obra bizarra deste cineasta já prodigioso
em estranhezas. O Terminal é, antes de tudo, a comprovação de que, quão mais perto
do “entretenimento puro” Spielberg chega, mais “cineasta-problema”
ele se revela. Por isso é que seus filmes não cessam
de nos interessar, senão tão frequentemente (Prenda-me
se for Capaz é a exceção recente) fascinar.
Eduardo Valente
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