Não há nenhuma referência à
situação política israelense em Or, o Câmera d’Or (prêmio para melhor primeiro longa) de Cannes 2004,
mas a penúria social faz-se notar pelos estragos individuais,
sem dúvida derivados de um contexto político. Não vemos
atitudes explícitas de confronto ou guetificação, porém
estão na tela as evidências das relações de poder, criando
um “determinismo histórico-circunstancial”, de momento
da História, que condena os dominados a andar em círculo,
batendo cabeça, sem se livrar do imobilismo a cerceá-los.
Pode-se alegar que, no retângulo diante de nós, essa
não é uma questão. Estamos em um dramaturgia do microcosmo.
Mas a questão, no entanto, não é de ordem psicológica
– pelo menos não somente, e tem implicações amplas:
falta de dinheiro, prostituição, resignação, impotência.
Não são especificidades das personagens, como se essas
fossem a condição natural delas mundo, como se tudo
não passasse de um problema patológico, não de circunstâncias
da qual não escapam, em parte porque a elas se habituam.
Uma adolescente surge como sintoma, não assumido rasgadamente
como tal (ainda bem), de um estado de sociedade. Ela
tem de ser a mamãe de sua mãe, tenta inutilmente impedir
o retorno desta ao ganha-pão de giro de bolsa na rua,
cata garrafa vazia para sanar parte do aluguel atrasado,
esfrega-se às escondidas com um rapaz e começa a ter
um casinho com outro. Em meio às dificuldades, financeiras
e emocionais, essa garota sorri: leva sua existência
sem posar de coitadinha ou transformar sua jornada em
cruzada rebelde. Ela simplesmente sobrevive, ora um
pouquinho melhor, com sopro de vida, ora de forma agressiva,
ora sem ver saídas para impasses, tomando o percurso
da mãe, não sem ambiguidades. Não estamos na lama dos
sofrimentos e na aberração das dores humanas, como vemos
em alguns filmes de Mike Leigh. O mal estar é confeccionado,
não despejado como entulho. Há beleza aqui. E a mãe
é o centro da vida, personagem um tanta vaga em seu
desequilíbrio, carência e depressão - não por falha
de roteiro, presume-se, mas por uma opção pela incompletude.
Em momentos dessa convivência, que oscila entre gestos
de afeto sem tratamento adocicado e situações de tensão
no limite da violência, estão os pontos altos do filme.
E assim os são não pela ação dentro do plano ou pelas
palavras trocadas, mas pelas opções de como narrar as
cenas. Não há uma nota musical em sua banda sonora -
o tom é ao mesmo tempo seco e delicado, íntimo e distanciado
de suas personagens, as quais observa com solidariedade
sem mãozinha na cabeça. Ao contrário de tantos jovens
diretores, e outros nem tão jovens assim, a estreante
Keren Yedaya opta por um modelo criativo que, para assumir
o olhar de quem cria, coloca a câmera em pontos selecionados,
sem distribui-la e multiplicá-la por todos os pontos
do ambiente. Como escreveu Robert Bresson, citado sempre
por Abbas Kiarostami, criação é subtração, não acúmulo
- como acham os entusiastas do digital, que mutiplicam
caminhos sem escolher um, em uma espécie de promiscuidade
estética.
Não é o caso aqui: há ponto de vista assumido, a câmera
jamais se move, capta a ação ocorrida em seu campo e
extende seu alcance ao fora do campo, sem precisar dar
imagens. Yedaya impõe um limite ao seu olhar. São raros
os momentos em que, por meio do corte e da continuidade
espacial, usa dois ângulos na mesma seqüência. Ela assume
na estética um ponto de vista incompleto e o mantém
nas omissões impostas às personagens. Nada é totalmente
explicado, os modelos humanos escapam pelos dedos, sem
conseguirmos sintetizá-los, menos ainda totalizá-los
em suas motivações e significações. A diretora joga
sobre o material um véu, e não o retira completamente
mesmo quando acentua a relação causa-efeito da degradação
entre mãe e filha, às vezes chegando perto de simplificar
a questão por suas escolhas do quê e como mostrar as
ações no quadro.
Talvez tais escolhas sejam motivadas pelo conhecimento
da realizadora sobre o tema: é uma estudiosa da prostituição
em Israel, sobretudo nas áreas habitadas por palestinos.
Essa experiência deve ter sido bússola para propor um
dos recortes possíveis (não único): a degradação cíclica
de famílias depauperadas, representadas por uma em particular.
Como não se dispõe a construir sentido para tudo, até
para não chafurdar no modelo sociológico, a cineasta
evita propor ações seguidas de ações diferentes, optando
por mostrar uma certa repetição de pequenas ações (ainda
que intensas), assim como a dilatação do tempo pelo
alongamento de planos minimalistas. Yedaya não é uma
esteta, dada ou habilitada a tecer composições visuais
sensacionais, mas se destaca pelo rigor com que, mesmo
no despojamento, mantém–se em um caminho avesso a opções
impactantes (típicas do despojamento), sejam as que
sacodem o espectador com enquadramentos e cortes abruptos
(Contra a Parede), sejam as que enchem os olhos
com maneirismos de composição (Paisagens). É
notável como a diretora elabora uma geografia do apartamento
da protagonista e de outros pontos de seu dia a dia
sem precisar jogar a câmera em todos os cantos. A granulação
da imagem e as cores esmaecidas, talvez condição de
produção, não impedem a relação câmera-ambiente. A falta
de melhor definição visual não é desculpa para se manter
a câmera em primeiro plano. Só muito de vez em quando
essa câmera cola nos rostos. Em geral, coloca os corpos
no mundo, sem ver neles o próprio mundo, mas uma ferramenta
de interação com este.
Não é um filme ao fim do qual não nos ajoelhamos, dando
bravos e graças, mas podemos constatar em seu processo,
sem pressa, força e rigor raros nessas seleções amplas,
como são casos de mostras e festivais. Faz a diferença
quando colocado em conjunto.
Cléber Eduardo
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