A simples exibição de Olhos
de Vampa na Mostra de SP representa um pequeno curso
sobre o funcionamento do cinema brasileiro no período
chamado de “pós-retomada”: exibido pela primeira (e
única) vez no Festival de Brasília de 1996, ficou completamente
retido e apagado da memória recente do cinema nacional
até esta exibição, tão bem-vinda quanto inesperada.
Era motivo de grande curiosidade ver o filme para tentar
entender o que nele explicaria este estado de “interdição”
de uma obra cinematográfica, um autêntico “filme maldito”
contemporâneo, pego pela Censura – mas a Censura versão-democracia,
ou seja, a do mercado.
Logo de início o filme já nos permite começar a entender
o porquê deste mal-estar que ele causou: trata-se de
tudo, menos um filme de “bom gosto”, como passou a ser
norma no cinema brasileiro recente – em especial nestes
anos imediatamente pós-Collor, quando era importante
fazer afagos num público eminentemente de classe média
e alta, que é hoje quem vai ao cinema no país, e que
“detestava o cinema nacional”. Pois, para estes, o filme
não oferecerá nenhum carinho gratuito. Pelo contrário,
Olhos de Vampa parece retomar (tanto em sua linguagem
quanto principalmente na narrativa que conta) um impulso
por um cinema popular de gênero, se mostrando pouco
a pouco um autêntico thriller brasileiro (ou seria melhor
dizer, um pulp nacional). Esta é sua vocação,
sua filiação: a das notícias de jornais baratos, a do
bate-pernas na região menos nobre da Av. Teodoro Sampaio,
em São Paulo – onde o filme passa boa parte do seu tempo,
e algumas de suas melhores seqüências.
A retomada por Walter Rogério deste cinema de gênero,
é bom que se diga, nada tem de naif – ao contrário
de um Afonso Brazza (igualmente maldito). O cineasta
sabe exatamente o que interessa a ele neste universo,
e incorpora na sua trama (adaptada do livro de Luiz
Roncari) uma série de elementos altamente significantes,
se pensados a partir desta idéia de um autêntico gênero
policial nacional (em oposição a toda uma tentativa
de mimetizar signos do cinema policial americano ou
francês sem entender sua especificidade, algo um tanto
tentado em anos recentes).
O primeiro e mais óbvio elemento é a bunda. Sim, a bunda:
ela, e a obsessão nacional por ela, são elementos centrais
no crime que é investigado por um investigador, com
a ajuda de um fotógrafo. A partir desta premissa, são
inúmeras as cenas de pessoas perseguindo mulheres pelas
ruas, com os olhos voltados o tempo todo para suas qualidades,
digamos, traseiras. E, neste jogo, o filme incorpora
como elemento central de sua trama o ato do olhar (personificado
principalmente pelo fotógrafo, lógico), em especial,
o olhar para estas bundas (e nisso, seguem-se uma série
de planos das mesmas, especialmente de uma dançarina
de boate que pode, ou não, ser a próxima vítima, e que
os policiais – e a câmera – seguem por boa parte do
filme). Esta centralidade do filme no olhar para estas
bundas (local onde as vítimas são mordidas pelo “assassino-vampiro”)
é, em si, uma afronta ao “bom gosto” médio do brasileiro,
que quer esquecer quem é (“this is Brazil!”, grita num
determinado momento um turista-figurante).
Mas, está longe de ser apenas nos bumbuns que o filme
encontra a identidade nacional de um cinema policial.
É também na forma de encenar toda a situação policial
(a delegacia, as pressões que vêm de cima), mas principalmente
na apreensão pela sociedade (e, num microcosmo desta,
pela mídia) dos crimes, de uma forma um tanto chanchadesca
e tipicamente brasileira. Assim, logo surge uma manchete
de jornal aqui (“Vampa gosta de bumbum”), uma superexploração
no telejornal ali, uma incorporação da temática pelas
ruas acolá (“não deixo mais minha filha sair nas ruas!”).
Mas, principalmente, é na forma de encenar cada uma
dessas coisas, cada um destes elementos que o filme
transborda o cheiro e a sensação do Brasil (e não demora
a surgirem referências –das mais inesperadas- ao futebol,
ao samba), sempre com um pé na comédia achicalhada,
no terror de baixo orçamento, no gênero policial sem
condições financeiras (como a nossa polícia).
Enquanto desenvolve esta trama, Olhos de Vampa
mantém muito do seu interesse - mas é inegável uma irregularidade
de ritmo, pequenas claudicadas na trama, e principalmente
uma escolha infeliz de um dos protagonistas (o policial),
que passa pouquíssima empatia pelo seu personagem. Mas,
a partir do momento em que o filme se centra no personagem
de Joel Barcellos (o suspeito principal do crime), aí
não restam mais dúvidas: Olhos de Vampa tem mais
cinema a apresentar do que a imensa maioria do nosso
“cinema de qualidade”. O que a princípio parece uma
homenagem a um importante ator do nosso cinema, uma
ponta, vai se revelando um papel de intensa presença,
e mais do que isso, de magnetismo ímpar – que aprisiona
nosso olhar, como o dos personagens do filme. Os planos
de Barcellos na janela, a olhar para a Teodoro Sampaio,
são dignos de antologia – o seu rosto vazio se enchendo
de história em cada risco de pele, em cada ruga. E,
a partir da subida de Marco Ricca (o outro protagonista)
para o apartamento dele, na identificação quase mística
do fotógrafo com o assassino (e com o espectador), na
entrada de uma personagem quase lynchiana (a da mendiga
velha), o filme vai ganhando uma inesperada qualidade
hipnótica, quase mágica, que o eleva muito além do exercício
de gênero ou de brasilidade extrema que até ali assistíamos.
Olhos de Vampa se redimensiona, então, como um
filme de interesse real por tudo que tenta (e consegue)
pôr em cena. E sua energia muitas vezes crua (e quase
sempre nua) se mostra, inegavelmente, como tudo aquilo
que o cinema brasileiro recente tentou (e pelo visto
conseguiu) apagar de sua memória. Que pena – mas cada
um faz o cinema que pode, e merece. Assistir (e apreciar)
Olhos de Vampa é, hoje, quase um ato de rebeldia.
Nos rebelemos, então!
Eduardo Valente
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