Quando, ao olhar para um lugar,
a vontade de ser absorvido por ele é maior do
que a vontade de organizá-lo, resta interromper
a narratividade (o olhar, em si, não organiza
o espaço de maneira narrativa/descritiva) e se
entregar à embriaguez visual. O Intruso,
grandioso filme com que Claire Denis agora nos presenteia,
compõe-se justamente desse movimento circular
e inconcluso do ato de ver. O mundo é trazido
à tela em toda sua inextensão (de formas,
de sensações, de relações
interpessoais) e brutalidade. Quanto mais esvoaçantes
os significados, mais vigorosos os sentimentos despertados
pela cena: assim opera a lógica de O Intruso.
O filme planta situações misteriosas,
porém não tira delas sua tendência
de movimento, pois rejeita a intriga – e rejeita os
signos integralmente visíveis. Louis (Michel
Subor), o personagem principal, possui claramente um
passado de envolvimento com atividades de risco. Sabemos
também que ele possui um filho taitiano, em busca
do qual se lançará na parte final do filme,
e um filho que mora perto, mas para quem não
liga. Sua vida é complexa o suficiente para que,
uma vez caídos de pára-quedas na sua fase
avançada, não consigamos compreendê-la.
Louis se sente perseguido e vigiado, chegando a possuir
uma sombra, a personagem de Katia Golubeva, cujas aparições
são quase fantasmáticas. Golubeva, a bem
da verdade, já tinha ensaiado essa atividade
de espionagem em Noites Sem Dormir, de1993, filme
em que Denis a coloca perseguindo – por conta própria
e sem nenhum motivo além da pura escopofilia
– o personagem de Alex Descas (o padre que reza a missa
de enterro na primeira parte de O Intruso). Descas,
em Noites Sem Dormir, era um transformista, fazia
performances num clube noturno, e ainda posava para
fotos artísticas. Mesmo no cotidiano, ele tinha
a capacidade de ser um polarizador de olhares. E se
há uma interrogação que se encontra
em quase todos os planos filmados por Denis, ela diz
respeito à forma de olhar.
Há até um falso clima de thriller corporativo
em O Intruso, o que se corrobora quando Louis
manda e-mails em russo, sabe-se lá para quem,
anunciando mudanças radicais de planos, ou quando
negocia com empresários sul-coreanos algo que
gira em torno de um navio (e que soa como lavagem de
dinheiro). É possível também sentir
um quê do David Lynch de Twin Peaks –
Os Últimos Dias de Laura Palmer na primeira
parte desse filme – no que pesa em muito o excelente
tema musical que toca recorrentemente em O Intruso,
com acordes de guitarra ecoantes e solos de sopro que
lembram as trilhas do filme de Lynch. Mas não
há em O Intruso nem metade do trabalho
lynchiano em cima da iconicidade de algumas figuras
caras ao cinema policial e de mistério. A tendência
de Claire Denis é igualmente (em relação
a Lynch) sensorialista e profundamente naturalista (menos
no sentido de realista do que no de integrado à
natureza física das coisas).
A entrada em cena de Béatrice Dalle, que nos
créditos finais aparece como "a rainha do
hemisfério do norte" (o que, convenhamos,
por si só já faz deste filme um objeto
para ser olhado de forma bem cuidadosa), consiste nela
alimentando seus cães com pedaços de carne
crua, enquanto Louis a observa de perto. "Está
me espionando?", ela pergunta. Baseado no livro
homônimo do filósofo Jean-Luc Nancy, O
Intruso é, sim, um filme de espionagem. Mas
não por se atrelar a três ou quatro convenções
de gênero e montar um esquema narrativo que se
locupleta na articulação matemática
de peças. A vigilância em O Intruso
não é aquela das teorias conspiratórias.
Vigiar neste filme significa observar atentamente, buscar
uma posição em que se multiplique o coeficiente
de absorção do olhar, ou seja, potencializar
a resposta do meio-ambiente ao filme. Não há
um só plano de paisagem em O Intruso que
não esteja impregnado de vida, assim como não
há um só corpo filmado que não
apresente uma marca de contato com o tempo ou com outros
seres. A cicatriz que fica no peito de Louis após
o transplante cardíaco é a inscrição
do tempo nele. Mais do que as pintas e os sinais que
brotam espontaneamente, aquela cicatriz representa uma
intervenção violenta do tempo e do histórico
pessoal de vida.
Dalle, que em Trouble Every Day (filme-perturbação
dos mais impressionantes) interpretara uma canibal,
condensa aqui todo o propósito naturalista e
carnal do filme, e mesmo do projeto de cinema de Claire
Denis: uma mulher que vive em meio à natureza
e aos animais, sendo guiada pela corrida feroz e instintiva
que eles promovem na cena final. A película utilizada
em O Intruso (possivelmente, o melhor trabalho
de fotografia de Agnès Godard) favorece, na maioria
das cenas, uma imagem límpida, sem granulação
excessiva – a textura que ela quer ressaltar está
nos corpos e nas superfícies filmadas, não
devendo ser sobrepujada pela textura da imagem em si
(se é que estamos falando de uma separação
possível). Já em Sexta-feira à
Noite Claire Denis parecia querer radicalizar a
proximidade entre os corpos que filmava, limitar-lhes
o local de ação de modo a não haver
mais separação física. Em Trouble
Every Day, nem se fala: os personagens praticam
canibalismo, incorporam pedaços do outro ao seu
metabolismo. E em O Intruso isso reaparece extraordinariamente,
acentuando a indistinção entre um e outro
ser, entre os signos exteriores e a representação
que deles pode surgir. Essa fluidez, esse espaço
de co-ocupação indeterminável e
essa aproximação sem comedimento são
características da intimidade. Logo no começo
ocorre uma das melhores cenas do filme, com o filho
de Louis (Grégoire Colin) fantasiando uma hipnose
enquanto despe a esposa e a excita, tudo sendo filmado,
logicamente, com a câmera quase aderindo à
pele dos dois. Cabem nos dedos de uma mão os
cineastas que, como Claire Denis, conseguem se sentir
em casa filmando a fantasia íntima de um casal.
O filme culmina na visão do corpo em seu estado
mais opaco: o cadáver, que é imediatamente
submetido à autópsia (o "vamos ver
o que tem dentro"). Antes, contudo, havia sido
mostrada uma anatomia coletiva e em vida: vários
rapazes se revezam perante os representantes de uma
mesa que julga, através tão-somente dos
seus sinais superficiais, quem melhor se adequará
ao papel do filho de Louis, àquela altura hospitalizado.
Mas esse último obviamente percebe a encenação
e dispensa o rapaz, que será mostrado ainda perambulando
pela cidade (um quase-filho, um quase-personagem). Louis
sai em busca de um filho vivo, não o encontra,
e faz a viagem de volta com o cadáver do outro
filho (desvelado num plano deslumbrante, com a câmera
se deixando levar pelo movimento da onda até
chegar ao corpo que rola na areia da praia). Quem o
acompanha no navio, servindo-lhe café pela manhã,
é o "candidato a filho" que o havia
visitado no hospital.
O Intruso traz um princípio de ambigüidade
que não é ferido em momento algum. Claire
Denis é uma espiã do espaço e do
corpo. Em O Intruso ela constrói três
paisagens totalmente diferentes e causa o mesmo grau
de imersão nas três. Desde as montanhas
do início ao mar refrescante do final, passando
pela cidade plena de prazeres mundanos e noturnos, o
filme consegue nos transportar para onde quer e como
quer. Os movimentos também são buscados
em sua singularidade: se um personagem anda de bicicleta,
a câmera desliza ao lado dele; se um personagem
caminha a pé pelo mato, a câmara na mão
o acompanha próximo da nuca, quase sentindo o
cheiro de seu suor; se Béatrice Dalle anda de
trenó, a câmara lá se posiciona
e incorpora o frenesi da descida.
O tipo de enquadramento de Denis implica uma visão
sempre parcial, sempre deixando sobras para além
das bordas da imagem. Como não é nenhuma
novidade em sua obra, ela recorre ao primeiro plano
incessantemente, filma pedaços de tudo – e, em
se tratando de um filme rodado em cinemascope, esse
efeito é ainda mais complexo. Mas esses pedaços
não são figuras metonímicas; não
é a parte pelo todo, e sim a parte pela parte.
A diretora lida com uma espantosa tensão nos
registros, tamanha a imprevisibilidade de sua decupagem.
A opção por flashbacks que são
tirados de imagens de um outro filme (Le Reflux,
de Paul Gégauff, 1962), para mostrar a chegada
de Louis ainda jovem à ilha, revela uma arqueologia
textual que é também a afirmação
de algo que tanto precede quanto sucede a passagem do
homem – logo, do filme – pelo espaço.
As imagens que ficam de O Intruso são
as imagens que ficam de qualquer visita a um local que
nos provoca. O mar, o céu, o horizonte, as árvores
que balançam ao vento, os homens que se aventuram
nesse mundo: tudo isso nos ultrapassa, felizmente. Enquanto
forem irredutíveis ao enquadramento – e Claire
Denis parece escolher os melhores e mais inusitados
ângulos sobre qualquer evento ou objeto –, essas
paisagens serão plenas de vida, e a fascinação
que provocam será infinita. Brindemos a isso.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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