O FATOR HUMANO
Otto Preminger, The Human Factor, EUA, 1979

A câmera, antes de qualquer outra coisa, é um corpo. O que acontece quando, como no cinema de Otto Preminger, à câmera é relegada a função de também ser um intérprete? O que faz um objeto destes quando posto à parede, quando tem questionada sua própria condição? Se emociona, observa, julga, chora, desespera, foge, treme, teme, avança? Ou apenas se comove, como se incorporasse o reflexo da tristeza da imagem de uma separação entre dois seres-humanos, dois corpos?

A câmera, portanto, também é um ser-humano. Fator e humano: como Preminger conseguiu com o título de seu filme conjugar tão perfeitamente a disjunção primeira a partir da qual todo o cinema nasce; essa espécie de mecânica da carne, de fragilidade do dispositivo? Talvez por ser, no reino das formas, o mais cuidadoso de todos os confeccionistas, o mais afeito às nuances, o mais aplicado e sofisticado, aberto às possíveis belezas de certas imprecisões, o homem vienense por excelência em suma. Mas O Fator Humano será também a história de um mundo-monstro, um mundo que fabrica mais máquinas que sentimentos, um mundo onde o principal trabalho de um espião será falar ao telefone, um mundo inteiramente plástico que engole todos os resquícios de tudo aquilo que não pertence à ordem da alteridade.

Existe a desolação, mas também existe a beleza, num mundo bruto talvez ainda mais bela que em qualquer outro. Sarah, por exemplo. Mais que Eva Marie Saint em Exodus, a personagem interpretada pela modelo Iman é a imagem da serenidade na obra de Preminger. Ela ainda pertence a um outro mundo, mais compreensivo e sereno mas também implacável e repleto de inquietude. Fortaleza e dócil, é nela que perceberemos num primeiro instante esse certo fator humano que Preminger procura.

Mas que raios faz um vienense à procura desse "fator humano" na... Inglaterra? Para que fazer essa viagem, senão para confirmar aquilo que já é quase certo? Nada parece mais acertado que a discrição, as formalidades, os segredos, o humor de ocasião, o respeito às hierarquias, em suma toda uma série de comportamentos característicos dos ingleses que Preminger recria de maneira não apenas fantástica como ontológica. O grande crítico francês Jean Douchet, parafraseando Eric Rohmer, falou a respeito de Exodus e Tempestade sobre Washington que "todos os grandes filmes são também grandes documentários". O Fator Humano será um grande documento deste desespero, desta humanidade gritante que parece querer arrancar a pele daqueles que a escondem para manifestar-se num mundo que, bem ou mal, também é repleto de outros fatores.

De toda a enorme gama de maravilhosos personagens premingerianos, Maurice Castle alterna em diversos momentos ser o mais simples e o mais absolutamente complexo, um homem cujas complicações materiais aparecem de maneira tão simples que suas complicações reais surgem como alguma coisa muito abstrata, de difícil compreensão. Suas motivações e subseqüentes complicações não são só obscuras; elas aparecem no filme como, de certa forma, simples e puramente evitáveis. Existe pouquíssimo que esclareça quanto às suas razões senão um fiapo, um quase-essencial que parece querer se esconder tanto quanto seus fatores humanos.

É diante de um material tão inflado quanto o descrito acima que surge o enorme cineasta que é Otto Preminger. Basta a primeira cena em que Maurice chega à sua casa andando de bicicleta para entender todas as razões, as únicas razões que podem fazer um homem desses se sujeitar ao insujeitável: sua casa. O que Preminger faz com o ambiente familiar de um pequeno subúrbio inglês é comparável ao que Jean Vigo consegue com a barca do seu O Atalante, ou com o que Leos Carax obtém da recriação em estúdio da Pont Neuf em Os Amantes da Pont Neuf. Não se trata apenas de uma questão de pregnância, mas sim de como reagir às ações de certos corpos quando estes encontram-se num estado de encantamento em relação ao ambiente onde se encontram, no que o zoom que inscreve a garagem numa posição privilegiada do quadro no momento em que Maurice adentra com a bicicleta a entrada de sua casa apenas ilustra o trabalho rigoroso que Preminger estabelece entre o campo psicológico do ator e as distâncias e proximidades deste com o local privilegiado onde ocorrerá a cena.

O filme, ao menos o filme que realmente interessa a Preminger fazer, será todo sobre isso: todas as distâncias que se instauram entre corpos e os momentos em que estes estão o mais próximo possível de uma fricção, de um encontro. Quase todo o tempo Preminger se ocupa apenas com o simples ato de filmar algumas pessoas conversando em escritórios, restaurantes, carros, festas, lojas, casas. Normal, muitos diriam (e dirão), não fosse a maneira como o grande Otto bloqueia, preenche e hiperboliza o espaço e os objetos que separam os personagens com toda a sorte de objetos cênicos: paredes, mesas, livros, escadas, corredores, esquinas, portas, mesmo uma toalha de piquenique revela um potencial cênico que não se reproduz, não se recontextualiza para além do momento da cena.

Como todos os grandes do cinema moderno que conseguiram realizar a travessia dos difíceis anos 70 para os impossíveis anos 80 (uma confraria que abriga, entre outros, Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, Jean-Luc Godard, Philippe Garrel e John Cassavetes), Preminger se ocupa em não mais simplesmente filmar as coisas (tarefa que tão bem realizou entre os anos 50 e 60) mas em principalmente filmar os espaços que existem entre as coisas. É desta forma que não precisamos reaver a última imagem do cachorro Buller para nos entristecermos no momento em que sua morte é revelada, e é desta forma também que Preminger não precisa acompanhar o táxi que leva para longe (e talvez para sempre) de Maurice sua esposa Sarah e o filho Sam; já é o bastante conseguir inscrever o desaparecimento destes dois personagens da casa onde nos acostumamos a vê-los durante quase toda a duração do filme.

No final de tudo, resta apenas um telefonema, imagem una da distância existente entre dois corpos (distância que surge através de um aparelho que, feito por pessoas, serve para a princípio trazer um pouco mais de proximidade às... pessoas). Dois mundos, uma distância: Moscou, ainda Cortina-de-Ferro, e Londres. Maurice fala com Sarah, ambos ao mesmo tempo apressados e visivelmente desejando prolongar o máximo possível a conversa. Sarah está na casa da mãe de Maurice, Maurice se vê num pequeno quarto apertado em Moscou. Os dois realizam perguntas as mais corriqueiras, ambos apenas querendo saber como cada um está. A ligação é interrompida. O telefone cai da mão de Maurice, que senta na cama próxima ao aparelho enquanto este balança pelo fio no ar. Neste momento Preminger filma o impossível (a única coisa que vale se filmar em cinema): um telefone (assim como uma câmera e um castelo) que, à sua maneira, chora. Não existe imagem que sintetize melhor esse mistério que é O Fator Humano.


Bruno Andrade

(VHS FJ Lucas)