A
câmera, antes de qualquer outra coisa, é
um corpo. O que acontece quando, como no cinema de Otto
Preminger, à câmera é relegada a
função de também ser um intérprete?
O que faz um objeto destes quando posto à parede,
quando tem questionada sua própria condição?
Se emociona, observa, julga, chora, desespera, foge,
treme, teme, avança? Ou apenas se comove, como
se incorporasse o reflexo da tristeza da imagem de uma
separação entre dois seres-humanos, dois
corpos?
A câmera, portanto, também é um
ser-humano. Fator e humano: como Preminger
conseguiu com o título de seu filme conjugar
tão perfeitamente a disjunção primeira
a partir da qual todo o cinema nasce; essa espécie
de mecânica da carne, de fragilidade do dispositivo?
Talvez por ser, no reino das formas, o mais cuidadoso
de todos os confeccionistas, o mais afeito às
nuances, o mais aplicado e sofisticado, aberto às
possíveis belezas de certas imprecisões,
o homem vienense por excelência em suma. Mas O
Fator Humano será também a história
de um mundo-monstro, um mundo que fabrica mais máquinas
que sentimentos, um mundo onde o principal trabalho
de um espião será falar ao telefone, um
mundo inteiramente plástico que engole todos
os resquícios de tudo aquilo que não pertence
à ordem da alteridade.
Existe a desolação, mas também
existe a beleza, num mundo bruto talvez ainda mais bela
que em qualquer outro. Sarah, por exemplo. Mais que
Eva Marie Saint em Exodus, a personagem interpretada
pela modelo Iman é a imagem da serenidade na
obra de Preminger. Ela ainda pertence a um outro mundo,
mais compreensivo e sereno mas também implacável
e repleto de inquietude. Fortaleza e dócil, é
nela que perceberemos num primeiro instante esse certo
fator humano que Preminger procura.
Mas que raios faz um vienense à procura desse
"fator humano" na... Inglaterra? Para que fazer essa
viagem, senão para confirmar aquilo que já
é quase certo? Nada parece mais acertado que
a discrição, as formalidades, os segredos,
o humor de ocasião, o respeito às hierarquias,
em suma toda uma série de comportamentos característicos
dos ingleses que Preminger recria de maneira não
apenas fantástica como ontológica.
O grande crítico francês Jean Douchet,
parafraseando Eric Rohmer, falou a respeito de Exodus
e Tempestade sobre Washington que "todos os grandes
filmes são também grandes documentários".
O Fator Humano será um grande documento
deste desespero, desta humanidade gritante que parece
querer arrancar a pele daqueles que a escondem para
manifestar-se num mundo que, bem ou mal, também
é repleto de outros fatores.
De toda a enorme gama de maravilhosos personagens premingerianos,
Maurice Castle alterna em diversos momentos ser o mais
simples e o mais absolutamente complexo, um homem cujas
complicações materiais aparecem de maneira
tão simples que suas complicações
reais surgem como alguma coisa muito abstrata,
de difícil compreensão. Suas motivações
e subseqüentes complicações não
são só obscuras; elas aparecem no filme
como, de certa forma, simples e puramente evitáveis.
Existe pouquíssimo que esclareça quanto
às suas razões senão um fiapo,
um quase-essencial que parece querer se esconder tanto
quanto seus fatores humanos.
É diante de um material tão inflado quanto
o descrito acima que surge o enorme cineasta que é
Otto Preminger. Basta a primeira cena em que Maurice
chega à sua casa andando de bicicleta para entender
todas as razões, as únicas razões
que podem fazer um homem desses se sujeitar ao insujeitável:
sua casa. O que Preminger faz com o ambiente familiar
de um pequeno subúrbio inglês é
comparável ao que Jean Vigo consegue com a barca
do seu O Atalante, ou com o que Leos Carax obtém
da recriação em estúdio da Pont
Neuf em Os Amantes da Pont Neuf. Não se
trata apenas de uma questão de pregnância,
mas sim de como reagir às ações
de certos corpos quando estes encontram-se num estado
de encantamento em relação ao ambiente
onde se encontram, no que o zoom que inscreve
a garagem numa posição privilegiada do
quadro no momento em que Maurice adentra com a bicicleta
a entrada de sua casa apenas ilustra o trabalho rigoroso
que Preminger estabelece entre o campo psicológico
do ator e as distâncias e proximidades deste com
o local privilegiado onde ocorrerá a cena.
O filme, ao menos o filme que realmente interessa a
Preminger fazer, será todo sobre isso: todas
as distâncias que se instauram entre corpos e
os momentos em que estes estão o mais próximo
possível de uma fricção, de um
encontro. Quase todo o tempo Preminger se ocupa apenas
com o simples ato de filmar algumas pessoas conversando
em escritórios, restaurantes, carros, festas,
lojas, casas. Normal, muitos diriam (e dirão),
não fosse a maneira como o grande Otto bloqueia,
preenche e hiperboliza o espaço e os objetos
que separam os personagens com toda a sorte de objetos
cênicos: paredes, mesas, livros, escadas, corredores,
esquinas, portas, mesmo uma toalha de piquenique revela
um potencial cênico que não se reproduz,
não se recontextualiza para além do momento
da cena.
Como todos os grandes do cinema moderno que conseguiram
realizar a travessia dos difíceis anos 70 para
os impossíveis anos 80 (uma confraria que abriga,
entre outros, Jean-Marie Straub & Danièle
Huillet, Jean-Luc Godard, Philippe Garrel e John Cassavetes),
Preminger se ocupa em não mais simplesmente filmar
as coisas (tarefa que tão bem realizou entre
os anos 50 e 60) mas em principalmente filmar os
espaços que existem entre as coisas. É
desta forma que não precisamos reaver a última
imagem do cachorro Buller para nos entristecermos no
momento em que sua morte é revelada, e é
desta forma também que Preminger não precisa
acompanhar o táxi que leva para longe (e talvez
para sempre) de Maurice sua esposa Sarah e o filho Sam;
já é o bastante conseguir inscrever o
desaparecimento destes dois personagens da casa onde
nos acostumamos a vê-los durante quase toda a
duração do filme.
No final de tudo, resta apenas um telefonema, imagem
una da distância existente entre dois corpos (distância
que surge através de um aparelho que, feito por
pessoas, serve para a princípio trazer um pouco
mais de proximidade às... pessoas). Dois mundos,
uma distância: Moscou, ainda Cortina-de-Ferro,
e Londres. Maurice fala com Sarah, ambos ao mesmo tempo
apressados e visivelmente desejando prolongar o máximo
possível a conversa. Sarah está na casa
da mãe de Maurice, Maurice se vê num pequeno
quarto apertado em Moscou. Os dois realizam perguntas
as mais corriqueiras, ambos apenas querendo saber como
cada um está. A ligação é
interrompida. O telefone cai da mão de Maurice,
que senta na cama próxima ao aparelho enquanto
este balança pelo fio no ar. Neste momento Preminger
filma o impossível (a única coisa que
vale se filmar em cinema): um telefone (assim como uma
câmera e um castelo) que, à sua maneira,
chora. Não existe imagem que sintetize melhor
esse mistério que é O Fator Humano.
Bruno Andrade
(VHS FJ Lucas)
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