ÓDIQUÊ?
Felipe Joffily, Brasil, 2004

Para o bem ou para o mal, Ódiquê é um filme-problema. E não é por acaso que, se há um equívoco definitivo no filme, este equívoco seja justamente a tentativa de amenização da história contada, no seu final. Esta tentativa de conciliação com os personagens através de uma “pegadinha de roteiro” boicota, até certo ponto, o que o filme poderia apresentar de mais forte e provocador.

Ódiquê retrata personagens asquerosos numa trama de violência e engodo, com eficiência narrativa, bom desempenho dos atores e bastante naturalismo e humor em diálogos cheios de gírias. Mas é na relação que estabelecemos com estes personagens que existe o interesse principal e o ponto crítico do filme: até onde se pode defender que o filme não se concilia com seus personagens? Temos aí uma questão problemática e bastante interessante: até que ponto vale a pena e justifica-se fazer o retrato de personagens ignóbeis? Até que ponto fazer, em cinema, este retrato é uma manifestação digna, “necessária”, externando repulsa por tipos ou situações que incomodam aos realizadores? E a partir de que ponto este olhar perde sua força devido à soberba e à certeza de superioridade moral diante de seus personagens? Enquanto se pode crer que o filme de Felipe Joffily (e sua equipe) pretende denunciar e atacar a falta de limites éticos de uma certa juventude, esta questão se impõe: até que ponto a certeza de superioridade moral que o filme tem sobre seus personagens não o torna arrogante, não o esvazia?

Por mais desagradável que ela seja, encarar esta questão problemática é a única redenção possível para Ódiquê. Um antigo poeta francês uma vez escreveu que “é nos objetos repugnantes que encontramos as jóias”. A única maneira de justificar este retrato das atitudes imorais e ignóbeis dos jovens seria por este viés - o chafurdar na lama para purificar-se de que falou uma vez Nelson Rodrigues - devido aos próprios caminhos escolhidos pelo filme. Retratando o que lhe causa repugnância, Ódiquê seria uma jóia por nos fazer sentir o mesmo asco que sente. Mas deveras sente?

Porque não se pode deixar de notar que este filme, Ódiquê, tem a discutível honra de exibir a cena mais asquerosa filmada no Brasil em décadas e décadas - é quando o personagem de Cauã Raimond, armado, agride e apavora um guardador de carros deficiente mental, negro e ainda criança. Esta cena de boçalidade com o flanelinha marca de forma definitiva o filme. Algumas outras poderiam ser lembradas, talvez (por exemplo, aquelas em que os jovens mostram como tratam mulheres, ou as em que se dá o engodo diante do otário do filme), mas esta cena com o deficiente mental (na verdade, duas, pois a situação ocorre em dois momentos) é crucial: a única justificativa para ela - justificativa ainda assim problemática - seria a de estabelecer definitivamente para a platéia o asco diante dos personagens (afinal, não se pode supor que o realizador e sua equipe achem maneiro o que faz o personagem com o flanelinha, daí podermos imaginar que esta cena acontece justamente para delinear o caráter escroto dos jovens). Poderíamos talvez considerar que ela acontece porque “cinema bom precisa chocar”, a qualquer custo - mas visto dessa forma o filme não difere muito de seu personagem, buscando constranger a platéia como o playboy faz com o pivete. Portanto, para o bem de Ódiquê, é melhor crer que a tal cena tem esta imprescindível função narrativa.

Griffith disse que a melhor maneira de mostrar à platéia a vilania de um personagem era mostrá-lo maltratado animais – então Ódiquê neste momento, para ganhar força dramatúrgica, parece esquecer-se das diferenças óbvias entre seres humanos e animais, agredindo a platéia profundamente. Mas, por ser ficção, poderia pretender assim se justificar moralmente (mesmo que de forma problemática e insatisfatória). Estaria longe de ser o primeiro retrato da violência a usar do expediente de mostrar a boçalidade dos seus personagens de forma agressiva e incômoda à platéia.

No entanto, de certa forma o próprio filme tratará de boicotar mais à frente este viés positivo possível. Seria a opção mais ousada e agressiva retratar estes personagens realizando seus desejos ao final, tendo um desfecho negativo em que os babacas se dão bem, o que reforçaria o aspecto de “denúncia social” do filme - por si só discutível, como já comentei, mas certamente defensável e interessante. No entanto, a própria estrutura ixperta e amenizante em que este final é apresentado realiza-se de maneira infeliz, funcionando de forma inversa: descobre-se enfim que os jovens deram apenas um belo golpe, que ninguém foi morto e que tudo não passou de um engodo de malandros (seguindo o modelo tradicional de revelação final) que sabem se dar bem.

O tom amenizante e conciliador é claramente reforçado pelo humor presente neste ponto da narrativa - como esteve presente em diversos momentos anteriores, mas funcionando de outra forma, sugerindo agora a impressão de são bons malandros - que, “no fim das contas, não são tão maus assim”. Se o humor na fase inicial do filme serviria para fazer a platéia divertir-se com a prosódia e as atitudes dos playboys malucos, esta simpatia externada no final arrisca comprometer qualquer defesa de um olhar moralizante presente no filme.

Neste ponto, então, torna-se inevitável lembrar das cenas anteriores, em que seus personagens se mostraram tão asquerosos, para que a dúvida venha à mente: será que o filme mantém integralmente a noção de que esta juventude precisa ser retratada na sua forma mais ignóbil para que se possa provocar a reflexão? Ou será que ele não se arrisca a descobrir, no final de tudo, que as maldades juvenis de seus personagens são apenas isso, brincadeiras de adolescente? Tendo em vista as cenas repulsivas que vimos antes ao longo do filme, a sugestão de tal alternativa contradiz o dito do poeta francês e evidencia o problema de Ódiquê: se diverte-se com seus personagens, se por qualquer viés sugere uma compreensão de seus atos boçais, então o próprio filme deixa de ser agressão e passa a ser um sintoma nada distante daquilo que pretendia denunciar. E o que ali encontramos, ao invés de jóia, pode ter se tornado, na verdade, uma coisa bem menos interessante e mais doentia do que pretendia vir a ser.

Daniel Caetano