Para o bem ou para o mal, Ódiquê é um filme-problema. E não é por
acaso que, se há um equívoco definitivo no filme, este
equívoco seja justamente a tentativa de amenização
da história contada, no seu final. Esta tentativa de
conciliação com os personagens através de uma “pegadinha
de roteiro” boicota, até certo ponto, o que o filme
poderia apresentar de mais forte e provocador.
Ódiquê retrata
personagens asquerosos numa trama de violência e engodo,
com eficiência narrativa, bom desempenho dos atores
e bastante naturalismo e humor em diálogos cheios de
gírias. Mas é na relação que estabelecemos com estes
personagens que existe o interesse principal e o ponto
crítico do filme: até onde se pode defender que o filme
não se concilia com seus personagens? Temos aí uma questão
problemática e bastante interessante: até que ponto
vale a pena e justifica-se fazer o retrato de personagens
ignóbeis? Até que ponto fazer, em cinema, este retrato
é uma manifestação digna, “necessária”, externando repulsa
por tipos ou situações que incomodam aos realizadores?
E a partir de que ponto este olhar perde sua força devido
à soberba e à certeza de superioridade moral diante
de seus personagens? Enquanto se pode crer que o filme
de Felipe Joffily (e sua equipe) pretende denunciar
e atacar a falta de limites éticos de uma certa juventude,
esta questão se impõe: até que ponto a certeza de superioridade
moral que o filme tem sobre seus personagens não o torna
arrogante, não o esvazia?
Por mais desagradável que ela seja, encarar esta questão
problemática é a única redenção possível para Ódiquê. Um antigo poeta francês uma vez
escreveu que “é
nos objetos repugnantes que encontramos as jóias”.
A única maneira de justificar este retrato das atitudes
imorais e ignóbeis dos jovens seria por este viés -
o chafurdar na lama para purificar-se de
que falou uma vez Nelson Rodrigues - devido aos próprios
caminhos escolhidos pelo filme. Retratando o que lhe
causa repugnância, Ódiquê seria uma jóia por nos fazer sentir o mesmo asco que sente.
Mas deveras sente?
Porque não se pode deixar de notar que este filme, Ódiquê,
tem a discutível honra de exibir a cena mais asquerosa
filmada no Brasil em décadas e décadas - é quando o
personagem de Cauã Raimond, armado, agride e apavora
um guardador de carros deficiente mental, negro e ainda
criança. Esta cena de boçalidade com o flanelinha marca
de forma definitiva o filme. Algumas outras poderiam
ser lembradas, talvez (por exemplo, aquelas em que os
jovens mostram como tratam mulheres, ou as em que se
dá o engodo diante do otário do filme), mas esta cena com o deficiente
mental (na verdade, duas, pois a situação ocorre em
dois momentos) é crucial: a única justificativa para
ela - justificativa ainda assim problemática - seria
a de estabelecer definitivamente para a platéia o asco
diante dos personagens (afinal, não se pode supor que
o realizador e sua equipe achem maneiro
o que faz o personagem com o flanelinha, daí podermos
imaginar que esta cena acontece justamente para delinear
o caráter escroto
dos jovens). Poderíamos talvez considerar que ela acontece
porque “cinema bom precisa chocar”, a qualquer custo - mas visto dessa forma
o filme não difere muito de seu personagem, buscando
constranger a platéia como o playboy
faz com o pivete. Portanto, para o bem de Ódiquê, é melhor crer que a tal cena tem
esta imprescindível função narrativa.
Griffith disse que a melhor maneira de mostrar à platéia
a vilania de um personagem era mostrá-lo maltratado
animais – então Ódiquê
neste momento, para ganhar força dramatúrgica, parece
esquecer-se das diferenças óbvias entre seres humanos
e animais, agredindo a platéia profundamente. Mas, por
ser ficção, poderia pretender assim se justificar moralmente
(mesmo que de forma problemática e insatisfatória).
Estaria longe de ser o primeiro retrato da violência
a usar do expediente de mostrar a boçalidade dos seus
personagens de forma agressiva e incômoda à platéia.
No entanto, de certa forma o próprio filme tratará de
boicotar mais à frente este viés positivo possível.
Seria a opção mais ousada e agressiva retratar estes
personagens realizando seus desejos ao final, tendo
um desfecho negativo em que os babacas se dão bem, o que reforçaria o aspecto de “denúncia social” do filme - por si só discutível,
como já comentei, mas certamente defensável e interessante.
No entanto, a própria estrutura ixperta
e amenizante em que este final é apresentado realiza-se
de maneira infeliz, funcionando de forma inversa: descobre-se
enfim que os jovens deram apenas um belo golpe, que
ninguém foi morto e que tudo não passou de um engodo
de malandros (seguindo o modelo tradicional de revelação
final) que sabem se dar bem.
O tom amenizante e conciliador é claramente reforçado
pelo humor presente neste ponto da narrativa - como
esteve presente em diversos momentos anteriores, mas
funcionando de outra forma, sugerindo agora a impressão
de são bons malandros - que, “no fim das contas, não são tão maus assim”.
Se o humor na fase inicial do filme serviria para fazer
a platéia divertir-se com a prosódia e as atitudes dos
playboys malucos,
esta simpatia externada no final arrisca comprometer
qualquer defesa de um olhar moralizante presente no
filme.
Neste ponto, então, torna-se inevitável lembrar das
cenas anteriores, em que seus personagens se mostraram
tão asquerosos, para que a dúvida venha à mente: será
que o filme mantém integralmente a noção de que esta
juventude precisa ser retratada na sua forma mais ignóbil
para que se possa provocar a reflexão? Ou será que ele
não se arrisca a descobrir, no final de tudo, que as
maldades juvenis de seus personagens são apenas isso, brincadeiras
de adolescente? Tendo em vista as cenas repulsivas que
vimos antes ao longo do filme, a sugestão de tal alternativa
contradiz o dito do poeta francês e evidencia o problema
de Ódiquê:
se diverte-se com seus personagens, se por qualquer
viés sugere uma compreensão de seus atos boçais, então
o próprio filme deixa de ser agressão e passa a ser
um sintoma nada distante daquilo que pretendia denunciar.
E o que ali encontramos, ao invés de jóia, pode ter
se tornado, na verdade, uma coisa bem menos interessante
e mais doentia do que pretendia vir a ser.
Daniel Caetano
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