Em relação a ver,
diz-se aos outros: olhe lá! Quanto a imaginar,
recomenda-se: feche os olhos! A partir desta diferença
entre imaginar e ver, Jean-Luc Godard se posiciona,
na obra-prima Nossa Música, a favor do
cinema que busca o invisível e o ininteligível,
ou seja, que conhece a limitação da imagem
em representar nada além do que o óbvio,
tantas vezes repetido, a serviço de estratégia
de poder que privilegia o discurso dominante contra
as minorias que teimam em resistir com suas diferenças.
O primeiro plano de Nossa Música é
uma imagem em vídeo: cores berrantes, disforme,
vaga, indefinida, feia. Na parte inicial do filme, intitulada
de Inferno (como na Divina Comédia, Godard
filma o Inferno, o Purgatório e o Paraíso),
há profusão de planos apenas em vídeo,
exibindo as mais diversas guerras que marcaram o século
XX. Tratam-se, claro, de imagens pornográficas,
que, ao revelarem tudo – a violência, a morte,
a dor, o sofrimento, sem nenhuma compaixão humana
–, transformam os espectadores em meros voyeurs, cúmplices
de sordidez a qual serve para engessar a subjetividade,
acostumar os olhos e a mente à destruição,
destruir a capacidade de se emocionar em detrimento
do hábito de não se importar.
Mais do que imagens desconexas, o Inferno aponta para
forma dominante de cinema em que a imbecilização
é o desejado, em que a visibilidade total, paradoxalmente,
acaba por nada mostrar, pois apenas reitera o que já
se aceita como verdade estabelecida. Esta "arte"
associada à guerra e ao fato consumado, no entanto,
não é, como jamais foi (como prova sua
extensa filmografia), defendida por Godard - que prefere
o espaço da dúvida, do questionamento,
do ataque franco a qualquer tipo de certeza. De modo
que, ao Inferno, segue-se o Purgatório, passado
em Sarajevo (destruída sim pela Guerra Civil
da ex-Iugoslávia, mas igualmente palco de re-construção,
de re-nascimento), no qual vários personagens,
incluindo o próprio cineasta, encontram-se para
conferência sobre as relações entre
o Texto e a Imagem.
Descrer na inocência da Imagem, sabê-la
enquanto veículo para afirmação
e para imposição do estilo de vida europeu
e norte-americano. "Matar uma pessoa para defender
uma idéia não é defender uma idéia,
é matar uma pessoa", segundo a emblemática
frase proferida em Nossa Música: negar
os velhos conceitos e clichês, renovar o cinema
com o que se diz por meio dele. Retomando a personagem
da tradutora em O Desprezo, mas estilhaçando-a
entre todos os integrantes da "comitiva",
Godard cria babel multicultural em que cada voz procura
seu próprio espaço de expressão,
o qual está em permanente tensão e conflito
com o lugar ocupado pelo outro.
O Eu e o Outro, a existência do primeiro condicionada,
necessariamente, à presença do segundo.
O campo e o contracampo, verbalizados e visualizados
por Godard durante a aula de cinema em que, alternando
fotografias de judeus e de palestinos, desnuda a base
estruturante da narrativa clássica a fim de apresentá-la
não somente como dispositivo ideológico
de negação da alteridade, mas também
enquanto ponto de partida para a descoberta da mesma,
através da identificação e da resistência
ao discurso homogeneizante. Assim, se o entrevistado
palestino responde à repórter Judith Lerner
(Sarah Adler) que as demandas de seu povo são
conhecidas somente devido à oposição
de Israel, ou seja, ao inimigo forte que possui, é
porque elas se legitimam neste terreno de luta e de
negociação onde o fraco se faz notar quando
denuncia os crimes cometidos pelo forte, conforme demonstram,
com eloqüência, os índios norte-americanos
que, vagando pelo filme, lembram o massacre perpetrado
pelo branco colonizador.
São as histórias do cinema, das quais
Godard avisa se interessar apenas pelas vítimas
que tiveram suas gargantas degoladas. Dar voz a quem
não tem, preservar as memórias cada vez
mais ameaçadas pelo processo totalizante de uma
falsa globalização que desconsidera os
afetos particulares em prol do consumo fácil
e imediato para as massas. Enquanto em Elogio ao
Amor há a personagem da neta tentando evitar
que a indústria cinematográfica americana
(encarnada por Steven Spielberg) compre a história
dos avós, ex-membros da Resistência Francesa,
em Nossa Música tem-se a figura de Olga
Brodsky (Nade Dieu), que, por intermédio do filme
que realiza em Sarajevo (e que entrega a Godard), procura
reunir e compreender as informações múltiplas,
contraditórias, belas e terríveis da realidade
caótica em que vive.
Olga, de fato, realiza a passagem do ver para o imaginar,
como indica o extraordinário plano em que, caminhando
em direção à câmera, inicialmente
entra em foco, para em seguida retornar ao desfoque
original. Ela transita da perplexidade para a ação,
ao ser morta após infligir falso atentado terrorista
em Israel: no lugar de armas, ela carrega livros, textos,
uma nova codificação que visa substituir
os vícios construídos e disseminados ao
longo de séculos. Godard, contudo, nega ao público
a seqüência capital do filme, pois prefere,
à narração dos acontecimentos que
levaram ao assassinato da mulher, completá-la
com travellings em jardim florido, suscitando e exaltando
o poder da imaginação.
Imaginar. Jamais se vê as imagens produzidas por
Olga em seu filme, mesmo que se saiba de sua existência.
Ao entrar no Paraíso (ironicamente guardado pelos
fuzileiros navais norte-americanos, em concordância
à música símbolo da corporação),
derradeira parte de Nossa Música, a personagem,
com luz difusa e etérea sobre o rosto, encena
e subverte o gênesis, pois assume o papel de Eva
sem se preocupar com as conseqüências negativas
de comer a maçã. Neste recomeço
proposto por Jean-Luc Godard, não há pecado
ou culpa: Olga Brodsky, que se encontra tão distante
a ponto de não ser mais vista, só pode
ser imaginada.
Paulo Ricardo de Almeida
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