PARALELAS E TRANSVERSAIS
Diário de uma Paixão, de Nick Cassavetes
Reconstrução de um Amor, de Christopher Boe


The Notebook, EUA, 2004
Reconstruction, Dinamarca, 2003


Já se disse que só existem 48 histórias e todas as outras são variações destas; ou por outra, que só há dois temas (sexo e morte) no mundo das narrativas, sendo desenvolvidos eternamente; e assim sucessivamente. Em suma: já se disse e escreveu muita coisa no mundo para fazer alusão a um fato simples – todas as histórias já foram contadas. Portanto, se há que se pensar em algo hoje é menos na originalidade do que se vai contar (e a essas alturas dos 110 anos de cinema, quiçá até de como se vai contar), mas principalmente o porquê se vai contar uma história. O realizador tem realmente alguma motivação que o leve a querer expôr aquela narrativa, aqueles personagens? Se sim, que tente fazer isso da forma mais adequada a seus personagens, à sua narrativa, é o máximo que se pode (e deve) exigir de um filme.

Se o que se afirma acima é verdadeiro, ainda mais verdadeiro seria em relação às histórias de amor: estas sim já foram todas contadas, em quaisquer das variações possíveis. Admitir este fato é algo inerente ao cineasta que queira, hoje, se enveredar por esse tema enorme - mas assim como o amor nunca vai deixar de existir, as histórias de amor também não. Como os títulos nacionais dos dois filmes que vamos analisar neste texto não deixam mentir, trata-se aqui de duas histórias de amor (e paixão). Mas, por que tratar das duas num mesmo texto, se são filmes bastante diversos? Porque as opções de seus diretores, partindo daquilo discutido no primeiro parágrafo, deixam bem claro que não são as histórias que se tornaram velhas, e sim os olhares de cineastas que se adequam ou não a elas.

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O filme de Nick Cassavetes é, dos dois, o mais clássico. Na verdade, ele é um dos mais clássicos exemplares de história de amor apresentados em muito tempo nos cinemas, o que já fica claro logo na sequência dos créditos iniciais, com um homem que rema num paradisíaco rio banhado pela luz dourada do sol. Imagem idilíca extrema, fala muito da opção de olhar de Cassavetes: uma aposta absoluta num romantismo exacerbado, no tipo de narrativa que atingiria ápices comom o daquela imagem inicial (que tem direito a vôo de patos claramente gerados pelo computador, para olhos mais atentos – perfeccionismo que apresenta o extremo deste olhar romântico).

Em termos de estrutura narrativa, Cassavetes opta por uma história em flashback que vai sendo contada por um velho homem (James Garner) para uma idosa num asilo (Gena Rowlands, mãe de Nick, mito do cinema). Logo descobrimos que esta história é de fato um flashback da vida daqueles personagens, e que ela tem sérios problemas de memória. É interessante, aliás, a volta mais uma vez da questão da memória relacionada com a afetividade, depois de Como se Fosse a Primeira Vez e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. Só que ao contrário dos dois exemplos acima, não se trata aqui de um jogo de roteiro montado em função deste fato, e sim de usá-lo como motivo para encenar o ato mais radical de amor: o da abdicação de Garner por alguém que não se lembra mais dele. Em termos de estrutura, o que poderia resultar numa tola brincadeira de adivinhação (“será que são eles?”), logo é tornado uma não-questão por Cassavetes: não se trata de um jogo, e sim de um gimmick que aumente a força da história, ao sabermos que ela ultrapassa décadas. Saber disso, aliás, foi um alívio, porque o (péssimo) trailer do filme indicava que esta podia ser a grande jogada do filme - o que logo vemos ser uma imagem mal vendida.

O interesse do diretor claramente não é por jogos de roteiro e sim por narrar com toda a força uma autêntica e old-fashioned história de amor. Só que Cassavetes demonstra neste filme ter herdado pelo menos parte do interesse do pai pela complexidade dos afetos humanos, e se sua história é à moda antiga, seu tratamento dos personagens certamente não é. Para começo de conversa, o sexo não surge sublimado, muito pelo contrário: há faíscas e atrações entre os corpos o tempo todo, e fica bem claro que o impulso sexual é mola motora importante nas atitudes dos personagens (ainda que, neste quesito, a escolha de Ryan Gosling como protagonista seja bastante duvidosa). Em segundo lugar, Cassavetes faz questão de não construir um relacionamento simplório entre o casal protagonista: eles brigam muito, o tempo todo, mas sempre demonstrando saber que parte de sua paixão se manifesta nesta briga. Mas, prova inconteste mesmo da recusa do diretor em tornar o que é simples em algo simplório é o retrato dos dois personagens que representam os interesses românticos alternativos dos protagonistas do filme.

Nos acostumamos sempre a ver cineastas solucionando o “problema” de ter seus personagens envolvidos com mais de uma pessoa ou pelo viés do caráter (um deles é claramente “mau”), ou pelo deus ex-machina (algum deles morre). Cassavetes recusa ambos. No caso da menina que sai com Noah (o protagonista), fica claro o tempo todo, inclusive para ela, que ele não está realmente naquela relação – apenas aguarda pela chance (mesmo que ela nunca venha) de estar com Allie. Pode soar como uma solução simplória, mas a forma como Martha (a outra mulher) é retratada elimina esta possibilidade: nunca uma rancorosa mal-amada, ela consegue entender e invejar o amor de Noah, e talvez o momento mais belo do filme seja aquele em que ela chega na casa dele durante um reencontro dele com Allie, e pede: “Eu posso conhecê-la?” – sincero impulso de saber quem é a mulher que o homem que ela queria tanto ama.

Mas, é ainda mais complexo o retrato do interesse romântico alternativo de Allie. Neste caso, Cassavetes não só cria um personagem simpático (ainda que algo apagado), mas principalmente ele faz a própria personagem feminina afirmar seguidamente, quase até o final da história, que ela também ama o outro homem. Uma protagonista feminina (de filmes para grande público) confirmar sua divisão romântica entre dois personagens é uma das coisas mais raras de se ver, ainda mais nos atuais tempos neoconservadores. Pois Cassavetes compra essa briga, leva ela às últimas consequências, e assim comprova que não está disposto a vender barato seu respeito pelos personagens e pela inteligência do espectador. Para Allie não há solução fácil: ela precisa, conscientemente, abrir mão de alguma das possibilidades de vida que se apresentam a ela.

No meio disso tudo, o que não cessa de impressionar em Diário de uma Paixão é a completa crença de Cassavetes no material que filma, mesmo que precise abraçar de peito aberto o melodrama (única forma que se deve lidar com ele, aliás). Uma história que, em última instância, repete tantas outras de amores de juventude, paixões arrebatadoras de verão, etc, Cassavetes ainda assim nos quer contá-la como se fosse a primeira vez (sem trocadilho) - ou a única. Cassavetes trata o espectador assim como o velho Noah trata a velha Allie no asilo: acreditando que se pode emocionar repetindo de novo aquela história, como se desta vez sim ela fosse definitiva. E o que mais emociona, no fim das contas, é isso mesmo: menos a narrativa, e mais a dedicação do narrador a ela, a crença de que é essencial que saibamos desta história como ele a vê.

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Reconstrução de um Amor encontra-se no escopo absolutamente oposto: o cineasta estreante Christopher Boe parece passar o filme inteiro tentando reinventar a roda. Mais preocupado em chamar atenção para si mesmo (o que parece ter conseguido, a julgar pela vitória da Câmera de Ouro em Cannes – os festivais estão sempre dispostos a engolir os engodos chamativos em detrimento das sutilezas geniais) do que em apresentar seus personagens e sua trama de forma que criem um mínimo de interesse da parte do espectador. Todo interesse deveria vir de “como” se conta a história - como se o próprio Boe não acreditasse mais que a simplicidade de uma história de amor ainda teria validade hoje. Mas, se o cineasta não acredita na sua própria história, quem sou eu para acreditar?

Note-se bem que não se trata aqui de condenar por si mesma uma opção pelo artifício nem um questionamento das possibilidades de narratividade. Cabe apenas pedir que o cineasta acredite naquilo que faz – mesmo que seja no artifício. Citemos, por exemplo, Quentin Tarantino ou Guilherme de Almeida Prado, dois cineastas que só acreditam no artifício – mas que nele acreditam piamente. Boe não, Boe é um narrador cínico auto-centrado: acredita ter descoberto a pólvora instaurando uma certa crise da narratividade, mas quer instaurar esta crise chamando a atenção para sua própria genialidade ao perceber isso que já está em questão há muito mais tempo.

Mas, o que ele propõe como opção à narrativa clássica? Uma série de manjados cacoetes de estilo (principalmente a granulação exagerada da imagem, a câmera frenética e os ângulos expressionistas) misturados com joguinhos de estrutura narrativa (a narração em off auto-consciente e irônica, as idas e vindas no tempo). Neste processo, ele parece incapaz de perceber inclusive quais de suas sacadas poderiam render bem mais (e como exemplo citamos a opção de escalar a mesma atriz nos dois personagens dos interesses românticos do protagonista, o que cria uma saudável confusão sempre, bem relacionada ao estado de espírito dele) e quais são simplesmente deploráveis (nenhuma delas mais do que a completamente desnecessária câmera-mapa, que localiza como que num satélite a posição geográfica dos personagens antes de cada sequência).

Além disso, Boe torna simplório (achando que passa desapercebido pela suposta “complexidade” de sua narrativa) tudo aquilo que acabamos de elogiar em Cassavetes. Assim, a relação alternativa da musa de nosso protagonista aparece sempre como algo patológico, fonte completa de infelicidade, exageradamente sem comunicação. De fato o único momento realmente interessante desta narrativa é aquele em que o personagem é apagado (olha ela aí de novo, a memória) das lembranças das personagens por quem não opta continuar junto. Só que, sacada de roteiro até interessante, logo se revela “punição moral” pela confusão sentimental de nosso protagonista. Nada mais desinteressante.

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O que se tentou discutir aqui, brevemente, é que a esta altura dos fatos, em 2004, declarar aberta uma suposta crise da expressão narrativa no cinema parece uma completa tolice senão acompanhada de uma proposição que traga em si autêntica crença (pensemos em Os Idiotas, único verdadeiro filme-Dogma dos que nos permitiram ver até hoje). Porque enquanto houver artesãos com o talento e a maturidade que Nick Cassavetes demonstra neste seu filme, pode-se até já ter contado todas as histórias, mas nós ainda as queremos ouvir por um bom tempo. E se quem instaura crise é alguém tão imaturo e auto-centrado como cineasta como se revela aqui Christopher Boe, definitivamente preferimos continuar ouvindo Cassavetes.
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Eduardo Valente