Já se disse que só existem 48 histórias e todas as outras
são variações destas; ou por outra, que só há dois temas
(sexo e morte) no mundo das narrativas, sendo desenvolvidos
eternamente; e assim sucessivamente. Em suma: já se
disse e escreveu muita coisa no mundo para fazer alusão
a um fato simples – todas as histórias já foram contadas.
Portanto, se há que se pensar em algo hoje é menos na
originalidade do que se vai contar (e a essas alturas
dos 110 anos de cinema, quiçá até de como se vai contar),
mas principalmente o porquê se vai contar uma história.
O realizador tem realmente alguma motivação que o leve
a querer expôr aquela narrativa, aqueles personagens?
Se sim, que tente fazer isso da forma mais adequada
a seus personagens, à sua narrativa, é o máximo que
se pode (e deve) exigir de um filme.
Se o que se afirma acima é verdadeiro, ainda mais verdadeiro
seria em relação às histórias de amor: estas sim já
foram todas contadas, em quaisquer das variações possíveis.
Admitir este fato é algo inerente ao cineasta que queira,
hoje, se enveredar por esse tema enorme - mas assim
como o amor nunca vai deixar de existir, as histórias
de amor também não. Como os títulos nacionais dos dois
filmes que vamos analisar neste texto não deixam mentir,
trata-se aqui de duas histórias de amor (e paixão).
Mas, por que tratar das duas num mesmo texto, se são
filmes bastante diversos? Porque as opções de seus diretores,
partindo daquilo discutido no primeiro parágrafo, deixam
bem claro que não são as histórias que se tornaram velhas,
e sim os olhares de cineastas que se adequam ou não
a elas.
* * *
O filme de Nick Cassavetes é, dos dois, o mais clássico.
Na verdade, ele é um dos mais clássicos exemplares de
história de amor apresentados em muito tempo nos cinemas,
o que já fica claro logo na sequência dos créditos iniciais,
com um homem que rema num paradisíaco rio banhado pela
luz dourada do sol. Imagem idilíca extrema, fala muito
da opção de olhar de Cassavetes: uma aposta absoluta
num romantismo exacerbado, no tipo de narrativa que
atingiria ápices comom o daquela imagem inicial (que
tem direito a vôo de patos claramente gerados pelo computador,
para olhos mais atentos – perfeccionismo que apresenta
o extremo deste olhar romântico).
Em termos de estrutura narrativa, Cassavetes opta por
uma história em flashback
que vai sendo contada por um velho homem (James Garner)
para uma idosa num asilo (Gena Rowlands, mãe de Nick,
mito do cinema). Logo descobrimos que esta história
é de fato um flashback da vida daqueles personagens,
e que ela tem sérios problemas de memória. É interessante,
aliás, a volta mais uma vez da questão da memória
relacionada com a afetividade, depois de Como se Fosse a Primeira Vez e Brilho
Eterno de uma Mente sem Lembranças. Só que ao contrário
dos dois exemplos acima, não se trata aqui de um jogo
de roteiro montado em função deste fato, e sim de usá-lo
como motivo para encenar o ato mais radical de amor:
o da abdicação de Garner por alguém que não se lembra
mais dele. Em termos de estrutura, o que poderia resultar
numa tola brincadeira de adivinhação (“será que são
eles?”), logo é tornado uma não-questão por Cassavetes:
não se trata de um jogo, e sim de um gimmick que aumente a força da história, ao sabermos que ela ultrapassa
décadas. Saber disso, aliás, foi um alívio, porque o
(péssimo) trailer do filme indicava que esta podia ser
a grande jogada do filme - o que logo vemos ser uma
imagem mal vendida.
O interesse do diretor claramente não é por jogos de
roteiro e sim por narrar com toda a força uma autêntica
e old-fashioned história de amor. Só que
Cassavetes demonstra neste filme ter herdado pelo menos
parte do interesse do pai pela complexidade dos afetos
humanos, e se sua história é à moda antiga, seu tratamento
dos personagens certamente não é. Para começo de conversa,
o sexo não surge sublimado, muito pelo contrário: há
faíscas e atrações entre os corpos o tempo todo, e fica
bem claro que o impulso sexual é mola motora importante
nas atitudes dos personagens (ainda que, neste quesito,
a escolha de Ryan Gosling como protagonista seja bastante
duvidosa). Em segundo lugar, Cassavetes faz questão
de não construir um relacionamento simplório entre o
casal protagonista: eles brigam muito, o tempo todo,
mas sempre demonstrando saber que parte de sua paixão
se manifesta nesta briga. Mas, prova inconteste mesmo
da recusa do diretor em tornar o que é simples em algo
simplório é o retrato dos dois personagens que representam
os interesses românticos alternativos dos protagonistas
do filme.
Nos acostumamos sempre a ver cineastas solucionando
o “problema” de ter seus personagens envolvidos com
mais de uma pessoa ou pelo viés do caráter (um deles
é claramente “mau”), ou pelo deus ex-machina (algum deles morre). Cassavetes
recusa ambos. No caso da menina que sai com Noah (o
protagonista), fica claro o tempo todo, inclusive para
ela, que ele não está realmente naquela relação – apenas
aguarda pela chance (mesmo que ela nunca venha) de estar
com Allie. Pode soar como uma solução simplória, mas
a forma como Martha (a outra mulher) é retratada elimina
esta possibilidade: nunca uma rancorosa mal-amada, ela
consegue entender e invejar o amor de Noah, e talvez
o momento mais belo do filme seja aquele em que ela
chega na casa dele durante um reencontro dele com Allie,
e pede: “Eu posso conhecê-la?” – sincero impulso de
saber quem é a mulher que o homem que ela queria tanto
ama.
Mas, é ainda mais complexo o retrato do interesse romântico
alternativo de Allie. Neste caso, Cassavetes não só
cria um personagem simpático (ainda que algo apagado),
mas principalmente ele faz a própria personagem feminina
afirmar seguidamente, quase até o final da história,
que ela também ama o outro homem. Uma protagonista feminina
(de filmes para grande público) confirmar sua divisão
romântica entre dois personagens é uma das coisas mais
raras de se ver, ainda mais nos atuais tempos neoconservadores.
Pois Cassavetes compra essa briga, leva ela às últimas
consequências, e assim comprova que não está disposto
a vender barato seu respeito pelos personagens e pela
inteligência do espectador. Para Allie não há solução
fácil: ela precisa, conscientemente, abrir mão de alguma
das possibilidades de vida que se apresentam a ela.
No meio disso tudo, o que não cessa de impressionar
em Diário de uma
Paixão é a completa crença de Cassavetes no material
que filma, mesmo que precise abraçar de peito aberto
o melodrama (única forma que se deve lidar com ele,
aliás). Uma história que, em última instância, repete
tantas outras de amores de juventude, paixões arrebatadoras
de verão, etc, Cassavetes ainda assim nos quer contá-la
como se fosse a primeira vez (sem trocadilho) - ou a
única. Cassavetes trata o espectador assim como o velho
Noah trata a velha Allie no asilo: acreditando que se
pode emocionar repetindo de novo aquela história, como
se desta vez sim ela fosse definitiva. E o que mais
emociona, no fim das contas, é isso mesmo: menos a narrativa,
e mais a dedicação do narrador a ela, a crença de que
é essencial que saibamos desta história como ele a vê.
* * *
Já Reconstrução
de um Amor encontra-se no escopo absolutamente oposto:
o cineasta estreante Christopher Boe parece passar o
filme inteiro tentando reinventar a roda. Mais preocupado
em chamar atenção para si mesmo (o que parece ter conseguido,
a julgar pela vitória da Câmera de Ouro em Cannes –
os festivais estão sempre dispostos a engolir os engodos
chamativos em detrimento das sutilezas geniais) do que
em apresentar seus personagens e sua trama de forma
que criem um mínimo de interesse da parte do espectador.
Todo interesse deveria vir de “como” se conta a história
- como se o próprio Boe não acreditasse mais que a simplicidade
de uma história de amor ainda teria validade hoje. Mas,
se o cineasta não acredita na sua própria história,
quem sou eu para acreditar?
Note-se bem que não se trata aqui de condenar por si
mesma uma opção pelo artifício nem um questionamento
das possibilidades de narratividade. Cabe apenas pedir
que o cineasta acredite naquilo que faz – mesmo que
seja no artifício. Citemos, por exemplo, Quentin Tarantino
ou Guilherme de Almeida Prado, dois cineastas que só
acreditam no artifício – mas que nele acreditam piamente.
Boe não, Boe é um narrador cínico auto-centrado: acredita
ter descoberto a pólvora instaurando uma certa crise
da narratividade, mas quer instaurar esta crise chamando
a atenção para sua própria genialidade ao perceber isso
que já está em questão há muito mais tempo.
Mas, o que ele propõe como opção à narrativa clássica?
Uma série de manjados cacoetes de estilo (principalmente
a granulação exagerada da imagem, a câmera frenética
e os ângulos expressionistas) misturados com joguinhos
de estrutura narrativa (a narração em off auto-consciente
e irônica, as idas e vindas no tempo). Neste processo,
ele parece incapaz de perceber inclusive quais de suas
sacadas poderiam render bem mais (e como exemplo citamos
a opção de escalar a mesma atriz nos dois personagens
dos interesses românticos do protagonista, o que cria
uma saudável confusão sempre, bem relacionada ao estado
de espírito dele) e quais são simplesmente deploráveis
(nenhuma delas mais do que a completamente desnecessária
câmera-mapa, que localiza como que num satélite a posição
geográfica dos personagens antes de cada sequência).
Além disso, Boe torna simplório (achando que passa desapercebido
pela suposta “complexidade” de sua narrativa) tudo aquilo
que acabamos de elogiar em Cassavetes. Assim, a relação
alternativa da musa de nosso protagonista aparece sempre
como algo patológico, fonte completa de infelicidade,
exageradamente sem comunicação. De fato o único momento
realmente interessante desta narrativa é aquele em que
o personagem é apagado (olha ela aí de novo, a memória)
das lembranças das personagens por quem não opta continuar
junto. Só que, sacada de roteiro até interessante, logo
se revela “punição moral” pela confusão sentimental
de nosso protagonista. Nada mais desinteressante.
* * *
O que se tentou discutir aqui, brevemente, é que a esta
altura dos fatos, em 2004, declarar aberta uma suposta
crise da expressão narrativa no cinema parece uma completa
tolice senão acompanhada de uma proposição que traga
em si autêntica crença (pensemos em Os Idiotas, único verdadeiro filme-Dogma
dos que nos permitiram ver até hoje). Porque enquanto
houver artesãos com o talento e a maturidade que Nick
Cassavetes demonstra neste seu filme, pode-se até já
ter contado todas as histórias, mas nós ainda as queremos
ouvir por um bom tempo. E se quem instaura crise é alguém
tão imaturo e auto-centrado como cineasta como se revela
aqui Christopher Boe, definitivamente preferimos continuar
ouvindo Cassavetes.
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Eduardo Valente
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