Há uma imposição do grande tema
no pequeno universo familiar de A Noiva da Síria: a circunstância política
no Monte Golam, na fronteira entre Israel e Síria, onde
habita uma comunidade drusa, sem direito à cidadania,
berrará em cada situação mostrada. Esse processo já
está expresso em um letreiro inicial, que contextualiza
a situação dos drusos. E ecoa narrativa a fora com a
exibição dos efeitos da tensa (não) relação entre os
Estados (Israel e Síria) durante a preparação das bodas
de uma jovem drusa do lado israelense com um astro de
tevê também druso – mas morador do lado Sírio. A noiva
tem de passar de um lado para o outro, mas a burocracia
kafkiana de cada lado e a repressão política do lado
israelense, que tem como vítima o pai da noiva (um engajado
na “causa drusa”), transformam o casório em festa do
absurdo.
Estamos em um universo temático recorrente no cinema
contemporâneo, que vive às voltas com um paradoxo a
morder o próprio rabo. Vê-se a desterritorialização
das identidades culturais, motivada por circunstâncias
econômicas-religiosas-políticas, cujas “vítimas” são
nações sem Estado e povos sem solo “oficial”. Pode-se
já fazer uma ampla retrospectiva de obras realizadas
nos últimos 10 anos sobre o drama coletivo de agrupamentos
étnicos e religiosos à margem do modelo de Estado-Nação.
O deslocamento clandestino e a negação do direito de
se transitar livremente pelo planeta, como idealizava
Descartes em sua concepção de mundo moderno, tem sido
tratado por quantidade significativa de filmes (alguns
deles presentes nessa Mostra, como Caçados por Sonhos,
do indiano Buddhadeb Dasgupta, e Exílios, do
franco-argelino Tony Gatlif). Vê-se ainda, nesses filmes,
como efeito dessa desterritorialização gerada pelos
exílios-diásporas, um fortalecimento das fronteiras
separatistas, demarcando quem são os donos do lugar
e quem são “os de fora” - e a limitação da mobilidade
do cidadão planetário pela geografia global – a começar
por seus vizinhos.
Não são apenas os governos a saírem chamuscados do melodrama
eventualmente cômico de A
Noiva da Síria. A culpa pelo cerceamento da liberdade
de escolhas é dividida entre Estado e povo (o druso,
no caso), porque este é cheio de regras restritivas
e instauradoras da discórdia, em nome de um projeto
de resistência contra a ameaça à pureza étnica e religiosa
da comunidade. Assim, vemos casamentos entre individualidades
pertencentes à origens diferentes sendo condenados ou
proibidos para não se extinguir um povo supostamente
homogêneo com misturas em geral e liberalidades ameaçadoras
da idéia de grupo, que no fundo são afirmadoras de ações
individuais não possíveis de serem homogenizadas pela
força da tradição e da cultivada imobilidade de identidades.
Quem surge como “reprimida esclarecida”, sempre indo
contra as convenções e lutando por convicções, é a irmã
mais velha da noiva, que usa calça jeans e quer entrar
na universidade. Será ela a negociar uma mudança dentro
dos limites da família e da comunidade para se instalar
nos modelos dos novos tempos. A modernidade buscada
é o padrão ocidental. Retornamos então ao processo civilizatório
do período colonialista, com a clara divisão entre cultura
avançada e retrógrada. É semente para uma longa discussão
que nem chega a ser tema do filme – apenas perifericamente.
Não sairá dessa premissa razoavelmente forte nenhuma
imagem de impacto ou com energia suficiente para ser
retida. A operação de câmera para relacionar corpos
com ambientes e com outros corpos é mais ou menos a
mesma de telenovelas mexicanas e venezuelanas: quase
nenhuma, na verdade. Chega a ser impressionante que,
enquanto os atores cumprem suas tarefas com desenvoltura
e espontaneidade, oferecendo os melhores momentos do
filme com expressões cômicas ou dramáticas precisas,
a câmera pareça estar roncando, apática, como se assistisse
as cenas sem produzi-las. Que não se confunda essa estratégia,
ou falta de, com uma opção clássico-narrativa, porque
as soluções visuais (ou falta de) revelam só mediocridade,
não filiação cinematográfica. A Noiva da Síria
não passa de um panfleto político, com aparência de
ser do “bem”, imparcial e dialético, mas sem transformar
o programa de posturas pedagógicas-sentimentais em construção
cinematográfica potente para não ser reduzida a um tema.
Cléber Eduardo
|