O terço de platéia que ficou
até o final da projeção desse clássico do cinema ingênuo
criticou a falta de roteiro, foco, atores, ou seja:
parece tudo faltar a Noiva das Trevas. No entanto,
se falta tanta coisa, também não seria difícil encontrar
quem reclame dos excessos do filme. É por trás desses
paradoxos que se esconde (e esconde é uma palavra bem
apropriada neste caso) o modesto encanto do filme, nada
menos do que uma transposição dos medos e tabus da infância
para o mundo adulto: vemos crianças aprisionadas em
corpos de atores grandes, o que por si só já é um elemento
assombrador. Mas esse conto infantil de terror parece
travestir-se de uma ingênua tentativa de mais um filme
artístico, o que pode enganar os que não estiverem com
o sono em dia.
Desde o primeiro plano pode-se notar a ingenuidade das
imagens: com uma expressão corporal encenada toscamente,
como se fosse idealizado por uma pessoa sem a menor
noção do que aconteceu no cinema desde Rosselini, uma
criança. Em seguida temos um casamento assumido como
um triângulo amoroso, e é fácil notar que essa cerimônia
nada tem de comum com as cerimônias de casamento de
qualquer lugar do mundo, nunca vimos algo parecido.
Os três enamorados formam um triângulo na tela: temos
a noiva (Qing Hua) no lado inferior esquerdo, com véu
vermelho e a cara amarrada, como se fosse uma menina
prestes a sair correndo daquela coisa chata para ir
brincar; a seu lado Sissi, o menino efeminado que é
bom amigo e companheiro, mas que não desperta os instintos
sexuais da menina; e, no último vértice do triângulo,
Chung Sheng, o valentão da turma, o que desperta antes
para o sexo, o responsável pela perda da inocência de
Qing Hua.
No filme, eles estarão às voltas com as maldições do
lugar, que poderiam facilmente tomar o lugar de várias
crenças que se apoderam de nós em tempos de ginásio
(ex: a loira do armário, ou a menina do algodão, como
bem ilustrou o curta de Kleber Mendonça Filho), e com
gângsters (os malvados da turma da rua de cima, que
vivem de vandalismos e quebrações de janelas, e batem
nos mais fracos). Há inclusive um interessante e mal
compreendido uso da banda sonora, onde até o ranger
de móveis é aproveitado para acentuar a atmosfera de
medo. Tudo é facilmente transposto para o mundo infantil,
desde que não se tente ver o filme como o trabalho de
um diretor autista.
Outro aspecto se apresenta, de maneira menos dissimulada,
mas por isso mesmo mais passível de ser mal interpretada:
a brincadeira do diretor de se apropriar de um histórico
de “cinema de arte”, como se quisesse zombar do que
se tornou clichê atualmente. Dá-lhes foca-desfoca, enquadramentos
oblíquos, névoas e objetos vermelhos em primeiro plano.
Truques de angulação e captação muito utilizados, e
já desgastados, no cinema polonês dos anos 60 (Wajda,
Kawalerowicz e Has à frente). Vemos Ophuls, Kobayashi,
Tarkovski, e outros tantos que numa única visão pude
apenas intuir, todos filtrados pela gana referencial
e dissimulada de William Kwok, diretor de fotografia
que passou a dirigir filmes no final da década passada.
Lola Montès,
de Ophuls, por exemplo, abusava do vermelho e de uma
estratégia empregada em seu cinema desde Libelei
(1932): a utilização de um objeto entre
a lente da câmera e o rosto do ator, de forma a tornar
tudo meio sinuoso, envolto em mistério e não planificado.
Não se trata de comparar Kwok com Ophuls, seria um disparate.
Mas de tentar entender suas motivações, identificar
suas influências, se foram mal ou bem trabalhadas. O
plano final, por exemplo, é uma cópia descarada de A Infância de Ivan, de Tarkovski. Mas Kwok
sabe que o espectador reconhecerá a homenagem. Trata-se
de um processo de apropriação, tão comum na música popular,
utilizado pelo diretor. Não ficou feio, pra quem àquela
altura já tinha se acostumado com sua falta de vergonha
em usar o que outros já fizeram.
É de se lamentar, porém, a falta de domínio no corte,
responsável pela principal fraqueza do filme: a maior
parte das cenas dura menos do que deveria durar para
que suas intenções fossem assimiladas. Falta-lhe o domínio
do tempo, algo caro às produções que ele tenta homenagear.
Às vezes sentimos como se Oliver Stone assumisse o corte
final de um filme do Sokurov, e isso não pode ser bom.
O estranhamento (melhor aspecto do filme) em alguns
momentos se dilui, restando apenas o enfado diante de
algo que poderia ter funcionado melhor.
Sérgio Alpendre
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