A NOIVA DAS TREVAS
William Wai Lun Kwok, You gou, Taiwan, 2003

O terço de platéia que ficou até o final da projeção desse clássico do cinema ingênuo criticou a falta de roteiro, foco, atores, ou seja: parece tudo faltar a Noiva das Trevas. No entanto, se falta tanta coisa, também não seria difícil encontrar quem reclame dos excessos do filme. É por trás desses paradoxos que se esconde (e esconde é uma palavra bem apropriada neste caso) o modesto encanto do filme, nada menos do que uma transposição dos medos e tabus da infância para o mundo adulto: vemos crianças aprisionadas em corpos de atores grandes, o que por si só já é um elemento assombrador. Mas esse conto infantil de terror parece travestir-se de uma ingênua tentativa de mais um filme artístico, o que pode enganar os que não estiverem com o sono em dia.

Desde o primeiro plano pode-se notar a ingenuidade das imagens: com uma expressão corporal encenada toscamente, como se fosse idealizado por uma pessoa sem a menor noção do que aconteceu no cinema desde Rosselini, uma criança. Em seguida temos um casamento assumido como um triângulo amoroso, e é fácil notar que essa cerimônia nada tem de comum com as cerimônias de casamento de qualquer lugar do mundo, nunca vimos algo parecido. Os três enamorados formam um triângulo na tela: temos a noiva (Qing Hua) no lado inferior esquerdo, com véu vermelho e a cara amarrada, como se fosse uma menina prestes a sair correndo daquela coisa chata para ir brincar; a seu lado Sissi, o menino efeminado que é bom amigo e companheiro, mas que não desperta os instintos sexuais da menina; e, no último vértice do triângulo, Chung Sheng, o valentão da turma, o que desperta antes para o sexo, o responsável pela perda da inocência de Qing Hua.

No filme, eles estarão às voltas com as maldições do lugar, que poderiam facilmente tomar o lugar de várias crenças que se apoderam de nós em tempos de ginásio (ex: a loira do armário, ou a menina do algodão, como bem ilustrou o curta de Kleber Mendonça Filho), e com gângsters (os malvados da turma da rua de cima, que vivem de vandalismos e quebrações de janelas, e batem nos mais fracos). Há inclusive um interessante e mal compreendido uso da banda sonora, onde até o ranger de móveis é aproveitado para acentuar a atmosfera de medo. Tudo é facilmente transposto para o mundo infantil, desde que não se tente ver o filme como o trabalho de um diretor autista.  

Outro aspecto se apresenta, de maneira menos dissimulada, mas por isso mesmo mais passível de ser mal interpretada: a brincadeira do diretor de se apropriar de um histórico de “cinema de arte”, como se quisesse zombar do que se tornou clichê atualmente. Dá-lhes foca-desfoca, enquadramentos oblíquos, névoas e objetos vermelhos em primeiro plano. Truques de angulação e captação muito utilizados, e já desgastados, no cinema polonês dos anos 60 (Wajda, Kawalerowicz e Has à frente). Vemos Ophuls, Kobayashi, Tarkovski, e outros tantos que numa única visão pude apenas intuir, todos filtrados pela gana referencial e dissimulada de William Kwok, diretor de fotografia que passou a dirigir filmes no final da década passada. Lola Montès, de Ophuls, por exemplo, abusava do vermelho e de uma estratégia empregada em seu cinema desde Libelei (1932): a utilização de um objeto entre a lente da câmera e o rosto do ator, de forma a tornar tudo meio sinuoso, envolto em mistério e não planificado.

Não se trata de comparar Kwok com Ophuls, seria um disparate. Mas de tentar entender suas motivações, identificar suas influências, se foram mal ou bem trabalhadas. O plano final, por exemplo, é uma cópia descarada de A Infância de Ivan, de Tarkovski. Mas Kwok sabe que o espectador reconhecerá a homenagem. Trata-se de um processo de apropriação, tão comum na música popular, utilizado pelo diretor. Não ficou feio, pra quem àquela altura já tinha se acostumado com sua falta de vergonha em usar o que outros já fizeram.

É de se lamentar, porém, a falta de domínio no corte, responsável pela principal fraqueza do filme: a maior parte das cenas dura menos do que deveria durar para que suas intenções fossem assimiladas. Falta-lhe o domínio do tempo, algo caro às produções que ele tenta homenagear. Às vezes sentimos como se Oliver Stone assumisse o corte final de um filme do Sokurov, e isso não pode ser bom. O estranhamento (melhor aspecto do filme) em alguns momentos se dilui, restando apenas o enfado diante de algo que poderia ter funcionado melhor.

Sérgio Alpendre