Um letreiro antes da primeira
imagem tem de ser levado em conta para se entender melhor
todo o restante. Ele informa ao espectador que, apesar
de ser baseado em caso real ocorrido em Tóquio, o filme
é sobretudo uma ficção. Não se trata de mera informação,
mas de uma proposta estética. Embora se busque sim a
impressão de real, com a valorização de instantes de
vida cuja significação está neles mesmos e não necessariamente
na concatenação com outros planos, a encenação é assumida
desde o início. Será por meio da linguagem, constituída
pela luz (esverdeada às vezes, neutra a maior parte
do tempo), pelo enquadramento de partes dos corpos (das
mãos principalmente) e da disposição dos corpos em espaços
(internos e externos), pela escolha dos olhares como
principal matéria-prima expressiva e pelo tempo cultivado
em cada cena (para muito além do caráter descritivo
da ação), que a veracidade será construída. Não estamos
em mais um exemplo da febre documental gestada pela
ficção. Cada plano aqui insere-se no real a partir de
artifícios empregados para serem notados às vezes e
anulados outras. O mimetismo será problematizado (como
em tantos outros filmes recentes), assim como a captura
da realidade. Não forcemos uma aproximação com Kiarostami
e Bresson, mas o diálogo é sim travado, embora a arquitetura
e os pontos de partida/chegada sejam outros em cada
um dos autores.
Como nos filmes anteriores de Hirokazu Kore-Eda, enfoca-se
uma perda para se afirmar a vida. Maborosi efetuava
essa operação ao acompanhar os efeitos do suicídio de
um homem na continuação da existência de sua esposa.
Depois da Vida já começava na morte, mas, para
os personagens ganharem passe livre para o repouso na
eternidade, tinham de escolher um momento vivido. Ninguém
Pode Saber está mais próximo do primeiro, embora
sem a mesma dose de melancolia. Veremos aqui como reagem
quatro irmãos, entre a infância e a pré-adolescência,
depois de serem abandonados pela mãe. Sabemos da inconstância
afetiva dela em um diálogo, da provável multiplicidade
dos pais dos irmãos em outro momento. Ela passa o dia
todo fora, as crianças não vão a escola, o primogênito,
com 12 anos, tem de tomar conta de tudo (compras, contas,
comida). Em um certo momento, ela viaja, ausenta-se
por um mês. Em outro momento, viaja de novo, não volta
mais. Caberá ao irmão mais velho, protagonista da narrativa,
administrar o caos. Começa a faltar dinheiro, a casa
vira um lixo, cortam a luz e á água, ele tem de dar
um jeito. Vemos uma permanente resistência à adversidade
sem prejuízo para a perda de fé na vida mesmo nas situações
limites. Essa fé é renovada ao contato com um videogame,
com outras crianças, em um jogo de beisebol, no olhar
para uma árvore, na visão de uma bela adolescente, no
cultivo de uma planta.
Não vemos na condução dessas situações nenhum artifício
incumbido de torná-las mais graves ou de nos aproximar
das crianças por compaixão. A música é sóbria, a câmera
observa sem sacudir o olhar, a luz não explode, nem
os personagens. Não há impotência ou resignação, tampouco,
como não há também em Shara, de Naomi Kawase,
a obra-prima exibida no Brasil apenas no Festival do
Rio 2003, da qual esta outra bela obra é muito próxima.
Se não temos aqui os planos-sequências daquela, com
os quais restituíam a vida ao evitar cortes-rupturas
em um contexto de luto (morte de uma criança), vemos
em comum o aprendizado familiar, de crianças em especial,
no teste de fogo de superação da perda sem revolta (mas
não sem tristeza). Vemos ainda nos dois casos um recolhimento
das palavras para se empregar a imagem tanto como registro
de momentos como de instalação de mistério e magia na
superfície dos corpos em silêncio. A intensa dramaticidade
de ambos está no minimalismo dos eventos ou na sensação
desse minimalismo.
O estado das roupas das crianças, por exemplo, que vão
ficando sujas e rasgadas, com o passar do tempo, dispensam
comentários sobre a degradação (de condições, sobretudo)
com que têm de lidar. A voz do protagonista também,
que fica grave a partir de determinado ponto (algo notado
pela irmã: “você está gripado?”), é evidência sonora
de uma mudança. Estamos em uma lógica do microcosmo
e, se houver a disposição de ver no específico o reflexo
de algo geral (a ameaça à família e ao espiritual na
contemporaneidade hiper-materialista japonesa), é preciso
rebolar um bocado para não cair em armadilhas. Não se
pode ignorar, para ficarmos em uma cena emblemática,
a recusa do protagonista, quando incitado por amigos
em melhores condições financeiras, em roubar um brinquedo.
No entanto, a necessidade fala mais alto e, quando se
trata de comida e remédio, quando se trata da sobrevivência,
lei nenhuma é anteparo, pois a moral torna-se outra.
Se a sociedade japonesa for uma questão, portanto, e
mesmo assim questão tangencial apenas, o filme é menos
reflexo e crítica, mantendo-se exclusivamente como reação.
Reside nessa auto-gestão do pequeno cosmos a riqueza
de Ninguém Pode Saber. A beleza elaborada por
Kore-Eda até parece brotar dos planos, como gostariam
Bresson e Bazin, mas ela é fruto de uma operação rigorosa.
E se é para escolher seu ápice, que na verdade são muitos,
fiquemos com uma cena já no final, quando o protagonista,
olhando para o alto, para um avião que passa, é cutucado
pelo irmão, que o chama de volta ao chão. Lindo!
Cléber Eduardo
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