NINGUÉM PODE SABER
Hirokazu Kore-eda, Dare mo sihranai, Japão, 2004

Um letreiro antes da primeira imagem tem de ser levado em conta para se entender melhor todo o restante. Ele informa ao espectador que, apesar de ser baseado em caso real ocorrido em Tóquio, o filme é sobretudo uma ficção. Não se trata de mera informação, mas de uma proposta estética. Embora se busque sim a impressão de real, com a valorização de instantes de vida cuja significação está neles mesmos e não necessariamente na concatenação com outros planos, a encenação é assumida desde o início. Será por meio da linguagem, constituída pela luz (esverdeada às vezes, neutra a maior parte do tempo), pelo enquadramento de partes dos corpos (das mãos principalmente) e da disposição dos corpos em espaços (internos e externos), pela escolha dos olhares como principal matéria-prima expressiva e pelo tempo cultivado em cada cena (para muito além do caráter descritivo da ação), que a veracidade será construída. Não estamos em mais um exemplo da febre documental gestada pela ficção. Cada plano aqui insere-se no real a partir de artifícios empregados para serem notados às vezes e anulados outras. O mimetismo será problematizado (como em tantos outros filmes recentes), assim como a captura da realidade. Não forcemos uma aproximação com Kiarostami e Bresson, mas o diálogo é sim travado, embora a arquitetura e os pontos de partida/chegada sejam outros em cada um dos autores.

Como nos filmes anteriores de Hirokazu Kore-Eda, enfoca-se uma perda para se afirmar a vida. Maborosi efetuava essa operação ao acompanhar os efeitos do suicídio de um homem na continuação da existência de sua esposa. Depois da Vida já começava na morte, mas, para os personagens ganharem passe livre para o repouso na eternidade, tinham de escolher um momento vivido. Ninguém Pode Saber está mais próximo do primeiro, embora sem a mesma dose de melancolia. Veremos aqui como reagem quatro irmãos, entre a infância e a pré-adolescência, depois de serem abandonados pela mãe. Sabemos da inconstância afetiva dela em um diálogo, da provável multiplicidade dos pais dos irmãos em outro momento. Ela passa o dia todo fora, as crianças não vão a escola, o primogênito, com 12 anos, tem de tomar conta de tudo (compras, contas, comida). Em um certo momento, ela viaja, ausenta-se por um mês. Em outro momento, viaja de novo, não volta mais. Caberá ao irmão mais velho, protagonista da narrativa, administrar o caos. Começa a faltar dinheiro, a casa vira um lixo, cortam a luz e á água, ele tem de dar um jeito. Vemos uma permanente resistência à adversidade sem prejuízo para a perda de fé na vida mesmo nas situações limites. Essa fé é renovada ao contato com um videogame, com outras crianças, em um jogo de beisebol, no olhar para uma árvore, na visão de uma bela adolescente, no cultivo de uma planta.

Não vemos na condução dessas situações nenhum artifício incumbido de torná-las mais graves ou de nos aproximar das crianças por compaixão. A música é sóbria, a câmera observa sem sacudir o olhar, a luz não explode, nem os personagens. Não há impotência ou resignação, tampouco, como não há também em Shara, de Naomi Kawase, a obra-prima exibida no Brasil apenas no Festival do Rio 2003, da qual esta outra bela obra é muito próxima. Se não temos aqui os planos-sequências daquela, com os quais restituíam a vida ao evitar cortes-rupturas em um contexto de luto (morte de uma criança), vemos em comum o aprendizado familiar, de crianças em especial, no teste de fogo de superação da perda sem revolta (mas não sem tristeza). Vemos ainda nos dois casos um recolhimento das palavras para se empregar a imagem tanto como registro de momentos como de instalação de mistério e magia na superfície dos corpos em silêncio. A intensa dramaticidade de ambos está no minimalismo dos eventos ou na sensação desse minimalismo.

O estado das roupas das crianças, por exemplo, que vão ficando sujas e rasgadas, com o passar do tempo, dispensam comentários sobre a degradação (de condições, sobretudo) com que têm de lidar. A voz do protagonista também, que fica grave a partir de determinado ponto (algo notado pela irmã: “você está gripado?”), é evidência sonora de uma mudança. Estamos em uma lógica do microcosmo e, se houver a disposição de ver no específico o reflexo de algo geral (a ameaça à família e ao espiritual na contemporaneidade hiper-materialista japonesa), é preciso rebolar um bocado para não cair em armadilhas. Não se pode ignorar, para ficarmos em uma cena emblemática, a recusa do protagonista, quando incitado por amigos em melhores condições financeiras, em roubar um brinquedo. No entanto, a necessidade fala mais alto e, quando se trata de comida e remédio, quando se trata da sobrevivência, lei nenhuma é anteparo, pois a moral torna-se outra. Se a sociedade japonesa for uma questão, portanto, e mesmo assim questão tangencial apenas, o filme é menos reflexo e crítica, mantendo-se exclusivamente como reação. Reside nessa auto-gestão do pequeno cosmos a riqueza de Ninguém Pode Saber. A beleza elaborada por Kore-Eda até parece brotar dos planos, como gostariam Bresson e Bazin, mas ela é fruto de uma operação rigorosa. E se é para escolher seu ápice, que na verdade são muitos, fiquemos com uma cena já no final, quando o protagonista, olhando para o alto, para um avião que passa, é cutucado pelo irmão, que o chama de volta ao chão. Lindo!

Cléber Eduardo