O novo filme de Salvatores (Mediterrâneo)
funciona, de fato, em dois registros. Um deles, o da
narrativa mais direta, certamente foi o responsável
pelo filme ter sido escolhido para representar a Itália
entre os postulantes a serem concorrentes ao Oscar de
filme estrangeiro no ano passado. Salvatores possui
inegável domínio narrativo, e constrói
seus personagens com bastante delicadeza e competência.
Por outro lado, existe no filme um segundo registro
cujo interesse escapa bastante deste mais direto e pragmático.
Desde os primeiros planos, há um interesse do
diretor em ligar os personagens ao seu ambiente natural,
que se torna um certo espelho de estados de espírito,
não somente pelo uso da paisagem, mas principalmente
pela pontuação (num determinado momento,
inclusive, excessiva) da narrativa pela presença
dos mais diferentes animais que circulam pelo rincão
isolado do interior da Itália onde se passa o
filme (começando pelos corvos e indo aos mais
domésticos porcos e cães, e chegando a
cobras, corujas e insetos). Este segundo registro dá
ao filme uma qualidade eventualmente hipnótica,
que serve muito bem ao trabalho que lida com a tão
conhecida temática do rito de passagem, da situação
iniciática de um jovem.
No início, tanto o ambiente com seus campos de
trigo, quanto o clima do filme lembram muito o belo
ensaio de Philip Ridley sobre a crueldade infantil que
é O Reflexo do Mal (The Reflecting Skin).
Salvatores trabalha com uma cena num galpão que
lembra muito as fronteiras exploradas por Ridley entre
brincadeira, sadismo, inocência e violência.
Depois o filme adquire um tom mais convencional no retrato
da vida doméstica do garoto Michele, mas ainda
assim há um interesse inegável: assim
que nos damos conta que a trama principal gira em torno
do seqüestro de um garotinho, e que os pais de
Michele estão envolvidos, o filme ganha em complexidade
por conseguir passar o olhar dele, pelo qual ainda há
o fascínio e admiração que a figura
paterna exerce, ao mesmo tempo em que há a incompreensão
do seqüestro do menino, com quem Michele possui
uma relação desconhecida pelos outros.
Esta relação é responsável
por alguns dos mais belos momentos do filme, inclusive
pela forma como é filmada no início, misteriosa
e fascinante. Num certo momento, quando os pais descobrem
e proíbem o contato entre Michele e o seqüestrado,
temos talvez a seqüência mais bonita do filme
na qual Michele tenta brincar e se distrair na ausência
do amigo. Esta câmera sempre grudada em Michele
e acompanhando os seus pensamentos através das
pequenas ações é o grande vigor
do filme de Salvatores, e que permite com que ele não
caia no lugar comum dos gêneros que sua história
fazem crer que ele seguirá. É bem verdade
que o clímax final não deixa de ser por
demais esperado, e um pouco forçado na excessiva
dramaticidade que vai de encontro à sutileza
e parcimônia narrativa que víamos até
então. No entanto, se um pouco redutor, não
chega a ser o suficiente para jogar fora um trabalho
bastante sensível e com belos momentos que Salvatores
consegue criar. Um filme que não impressiona
pela novidade, é certo, mas que deixa a boa sensação
de um interesse sincero pelos seus personagens e o desenvolvimento
destes no espaço da sua narrativa.
Eduardo Valente
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