NÃO TENHO MEDO
Gabriele Salvatores, Io non ho paura, Itália, 2003

O novo filme de Salvatores (Mediterrâneo) funciona, de fato, em dois registros. Um deles, o da narrativa mais direta, certamente foi o responsável pelo filme ter sido escolhido para representar a Itália entre os postulantes a serem concorrentes ao Oscar de filme estrangeiro no ano passado. Salvatores possui inegável domínio narrativo, e constrói seus personagens com bastante delicadeza e competência. Por outro lado, existe no filme um segundo registro cujo interesse escapa bastante deste mais direto e pragmático. Desde os primeiros planos, há um interesse do diretor em ligar os personagens ao seu ambiente natural, que se torna um certo espelho de estados de espírito, não somente pelo uso da paisagem, mas principalmente pela pontuação (num determinado momento, inclusive, excessiva) da narrativa pela presença dos mais diferentes animais que circulam pelo rincão isolado do interior da Itália onde se passa o filme (começando pelos corvos e indo aos mais domésticos porcos e cães, e chegando a cobras, corujas e insetos). Este segundo registro dá ao filme uma qualidade eventualmente hipnótica, que serve muito bem ao trabalho que lida com a tão conhecida temática do rito de passagem, da situação iniciática de um jovem.

No início, tanto o ambiente com seus campos de trigo, quanto o clima do filme lembram muito o belo ensaio de Philip Ridley sobre a crueldade infantil que é O Reflexo do Mal (The Reflecting Skin). Salvatores trabalha com uma cena num galpão que lembra muito as fronteiras exploradas por Ridley entre brincadeira, sadismo, inocência e violência. Depois o filme adquire um tom mais convencional no retrato da vida doméstica do garoto Michele, mas ainda assim há um interesse inegável: assim que nos damos conta que a trama principal gira em torno do seqüestro de um garotinho, e que os pais de Michele estão envolvidos, o filme ganha em complexidade por conseguir passar o olhar dele, pelo qual ainda há o fascínio e admiração que a figura paterna exerce, ao mesmo tempo em que há a incompreensão do seqüestro do menino, com quem Michele possui uma relação desconhecida pelos outros.

Esta relação é responsável por alguns dos mais belos momentos do filme, inclusive pela forma como é filmada no início, misteriosa e fascinante. Num certo momento, quando os pais descobrem e proíbem o contato entre Michele e o seqüestrado, temos talvez a seqüência mais bonita do filme na qual Michele tenta brincar e se distrair na ausência do amigo. Esta câmera sempre grudada em Michele e acompanhando os seus pensamentos através das pequenas ações é o grande vigor do filme de Salvatores, e que permite com que ele não caia no lugar comum dos gêneros que sua história fazem crer que ele seguirá. É bem verdade que o clímax final não deixa de ser por demais esperado, e um pouco forçado na excessiva dramaticidade que vai de encontro à sutileza e parcimônia narrativa que víamos até então. No entanto, se um pouco redutor, não chega a ser o suficiente para jogar fora um trabalho bastante sensível e com belos momentos que Salvatores consegue criar. Um filme que não impressiona pela novidade, é certo, mas que deixa a boa sensação de um interesse sincero pelos seus personagens e o desenvolvimento destes no espaço da sua narrativa.

Eduardo Valente