O MUNDO DIANTE DOS OLHOS
A construção de uma noção de real a partir do controle sobre o olhar nos filmes de Shyamalan

Uma cena de A Vila é um enigma. Claro, várias compõem o enigma da trama. Mas esta é ela mesma uma questão. Não é exatamente nenhum momento marcante do sistema de revelações que o filme – assim como outros filmes de M. Night Shyamalan – preconizam. Na verdade, é uma situação que parece estar de certa forma até deslocada dos fatos que a ela se ligam se se pensa nela depois de a projeção ter terminado – e, sobretudo, o quebra-cabeças, montado. Trata-se de um diálogo pego no meio, como elemento de composição de uma situação maior: é o momento em que a viúva Alice Hunt (Sigourney Weaver) e o reverendo Edward Walker (William Hurt) conversam, um de costas para o outro, diante de uma porta de celeiro. Nela, os dois parecem estar tentando entender o antifenômeno (sim, porque ele é demarcado desde sempre fora do campo da probabilidade científica, uma operação típica do final do século XIX) que toma conta do vilarejo: a passagem d’Aqueles-de-que-não-se-fala e a aparição de animais mortos e esquartejados. Ela descreve as condições da porta e ele a examina, como um detetive, a procura de pistas. Ora, depois de todas as revelações do filme fica a pergunta: se ambos sabiam a verdade, o que estavam discutindo ali? Estando dois que sabem a verdade sozinhos, por que discutir a mentira dentro dela mesma?

A solução desta aparente contradição – que é igualmente resolvida no roteiro, afinal, Walker diz à filha que nem todos os procedimentos de terror eram de conhecimento de todos os chefes e, mais que isso, acaba pesando sobre o simplório Noah Percy um portal de possibilidades para várias das ocorrências, à revelia dos mais velhos – está no estatuto mesmo do filme e da obra de Shyamalan. Como em outras de seus trabalhos, a trama de A Vila é marcada por uma preocupação especial, qual seja, a de repartir o mundo entre aquele que é apreendido pelo olhar e aquele que re-constitui o mundo ou, dele, pelo menos, a verdade.

Há sempre um mistério pré-estabelecido a ser desvendado – e, nesse sentido, seus filmes ganham uma dimensão de evento: a trama não é, no final, a mesma que iniciou o filme. Essa dimensão de puzzle, entretanto, é formada de planos, de seqüências. Isso porque é no olhar, naquilo que está diante dos olhos que se constitui a mise-en-scène de Shyamalan. Essa divisão entre verdade revelada e mundo diante dos olhos produz uma série de impressões bastante importantes sobre seus filmes. A primeira delas é a de que aparentemente não há existência fora do olhar. É o mal que acomete o psicólogo de O Sexto Sentido (claro, este não é um texto para espectadores que não viram os filmes ou, pelo menos, não é para aqueles que preferem desconhecer seus segredos): o horrendo não é estar morto, a maior de todas as desgraças é não ser visto. É a sina do homem invisível: "ser ouvido a rir e não ser visto a chorar". O que lhe dá validade é o olhar do menino, o único que "vê pessoas mortas".

É também um problema para o personagem de Corpo Fechado, cujas habilidades são inobserváveis no plano. São narradas e discutidas, mas sua efetivação é protelada. Enquanto não é visto como super-herói, paira sobre ele o benefício da dúvida. Esta é uma das operações mais interessantes do filme: David Dunn não acredita em seus poderes porque nós, sim, os espectadores, ainda não os vimos.

E acomete também o menino de Olhos Abertos. Ele quer ver Deus. Qual um São Tomé, ele quer conseguir comprovar a existência dele, o que, o filme deixa claro, passa por enxergá-lo. Por isso mesmo, as aparições do anjo – ou do próprio todo-poderoso, já que o menino é que conclui que se trata de uma figura angélica. É só quando este se apresenta a ele e se afirma como visão é que ele é capaz de crer.

Na cena de A Vila, por exemplo, o que é dado aos olhos é apenas um trecho de conversa. Os pastor e a viúva conversam e obrigam o espectador a crer que estão intrigados com o sobrenatural que rodeia o problema. E enquanto não sabemos o real motivo da conversa (um ensaio de retórica ou uma dúvida metodológica?), sustentamos essa verdade sobre a seqüência. As conclusões a serem tiradas têm que ser originadas das imagens. O que está fora do plano não é confiável o suficiente (já que sempre estamos diante de uma história dotada de lógica própria e muito intrincada) e o espectador é sempre obrigado a se remeter ao plano. Nesse sentido, é na câmera onipresente que o diretor aposta. Ele sabe (assim como sabem, por exemplo, Cronenberg em Spider, Fincher em Clube da Luta ou Lynch em Estrada Perdida) que podem enganar o olho porque este foi treinado por cem anos de cinema para saber que o que é testemunhado pela câmera em um tempo central (que não seja um sonho ou um flashback, por exemplo) é o fluxo da verdade.

Por isso O Sexto Sentido é possível. Claro, só se acha que o psicólogo é um acompanhante dramático do menino que vê pessoas mortas porque o vemos ao lado das vivas. Temos, do filme, apenas a noção de real que a câmera e a montagem permitem ter. É apenas quando é desmascarada a câmera como agente da verdade é que o filme faz sentido. Este filme, aliás, pode ser considerado o verdadeiro manifesto metodológico do diretor (até porque sua repercussão foi o que tornou possível que seus outros filmes fossem formados igualmente por sistemas de mentira, já que a expectativa do público diante da tela é parte do próprio sistema). Nele, a verdade é composta primeiro por um conjunto de impressões. A primeira é que estar diante é, a priori, estar. Vemos Malcom Crowe sentado à mesa com a esposa. Ela não reage a ele, mas o vemos, é o que importa. Vemo-lo também diante da mãe do menino. Ela igualmente não reage a ele, mas ele está lá. O método de Shyamalan é o da pista falsa. É um ilusionista, um prestidigitador. Move objetos rapidamente, faz jogos de espelho, para confundir.

Como faz em A Vila durante todo o filme. A viagem no tempo que empreende é urdida por elementos para confundir. Um rápido olhar na criatura que passa abaixo do alçapão da torre, uma imagem dela fora de foco, uma passagem ao lado de uma parede, sons. Mas é sobretudo com clichês fotográficos que ele trabalha. É no, como disse, o treinamento do olhar para o cinema que ele deposita suas fichar de enganador.

Vejamos o caso de Sinais, que trabalha mais do que com a revelação da trama, com um sistema moral em torno dela (é o filme mais parecido com Olhos Abertos dos pós-Sexto Sentido): há uma seqüência bastante forte nele no sentido de conduzir o olhar do espectador. É a da reportagem de TV que mostra uma festa familiar no Brasil invadida por um alienígena. Ora, o simples fato de ter usado um trecho em videotape neste momento conferiu-lhe um outro estatuto. A imagem ruim, de baixa qualidade, trêmula, de câmera "ao vivo", atrela a uma imagem um tom mais do que de realismo, mas de documentário, de documentação. Acostumamo-nos a entender que uma imagem bem filmada está intimamente ligada à ficção e que uma torta, inquieta, é própria dos correspondentes de guerra, das câmeras escondidas, enfim, do esforço para se produzir uma imagem "de verdade", da "verdade".

Por conta do mesmo mecanismo, A Vila é um filme tão poderoso: antropofagicamente alimentado de seu próprio rigor/vigor estrutural(izante), Shyamalan cria um sistema de metáforas em que o significante é muito mais importante que o significado. O fato de que filma tanto o céu (o horizonte costuma ser um inimigo dos filme de época, por conferir um tom cenográfico a tudo que está abaixo dele) e de que usa uma vila isolada dão um tom de laboratório cênico às situações (como no momento em que as moças varrem uma varanda coreograficamente, brincando e de repente se deparam com a cor ruim e a enterram, acompanhadas por uma câmera absolutamente presente, sem nenhum desejo de ser discreta). A última parte do filme, entretanto, quando a jovem parte para o bosque, é a celebração suprema do método do diretor. Ora, Ivy é cega. Claro, faltava uma personagem com deficiência visual à obra do diretor. Diante dela, o que se descortina é um mundo sem imagens, imagens às quais apenas nós temos acesso. Por isso, para seu pai, ela pode ir à cidade. Não será afetada pelos afetos da cidade (Walker é uma espécie de Adorno hippie da retórica do risco). Além disso, claro, o afeto maior para ela é Lucius. Nada a desviará do caminho de salva-lo. Ele é o único (além do pai) que ela vê.

A partir desse jogo, a imagem da "criatura" parada diante dela, ao lado de uma árvore, é definitiva: claramente uma fantasia aos nossos olhos, filmada com câmera na mão (como que a conferir um tom também documental), revelada como um capuz em que foram pregados gravetos e ossos, ela aparece à moça como os sons e outros sentidos d'aqueles-de-que-não-se-fala. Mas para nós, não. Vemos o que vemos. Não somos cegos. A fantasia carnavalesca da criatura está lá. Assim como estavam lá o menino do corredor, o psicólogo, os sinais. Todos são elementos dos sistemas de olhares de Shyamalan. Nós sabemos de seu estatuto, mas ela não, porque não a vê. Por mais que ela tenha sido informada pelo pai da falsidade dela, há ainda as lendas sobre a floresta e pressão de anos e anos de verdade absoluta.

Neste filme, ao invés de partir, como nos outros, de uma negação do sobrenatural, que é depois revelado como realidade (a existência de Deus em Olhos Abertos; a morte do psicólogo em O Sexto Sentido; a condição de super-herói de Corpo Fechado; a existência de alienígenas e a circularidade da predestinação em Sinais), parte da afirmação do sobrenatural com grande naturalidade para negá-lo. Shyamalan se alimenta, aqui, das expectativas formadas em torno dele. E faz isso de maneira mais radical criando um campo de possibilidades absolutas (ao isolar uma comunidade e fazer um filme "de época", abriu enormemente o leque de sentido que poderia criar) e traduzindo na forma de câmeras onipresentes sua trama.

O que retoma uma pergunta que deveria estar na frente de todas as outras: seria Shyamalan apenas um fetichista da mentira, um mágico de circo? Por que recorrer tanto a um sistema como esse? Uma olhada de perto em Olhos Abertos pode ajudar a explicar: no fundo, todas essas formulações são maneiras de dar vazão a preocupações morais. Shyamalan não parece ser um cultuador da desconstrução narrativa como arte. Ele quer dizer algo. Suas mentiras querem ser símbolos para ele dizer algumas verdade, Por isso, talvez, fique uma incômoda impressão de que A Vila é uma resposta americana a Dogville (e se constitua como uma metáfora do totalitarismo panóptico e da cultura do medo). Por isso, talvez, o clima de Disneylândia não abandone, no final das contas, O Sexto Sentido, que não deixa de ser um conto moral sobre a compreensão e a aceitação. O que parece vir se desenvolvendo cada vez mais no cinema dele é a capacidade de dissimular esse desejo moralizante. Nesse sentido, A Vila é mais uma vez a maior de suas realizações: coloca tanto diante dos olhos sua dimensão de conteúdo, que traz sua forma para o primeiro plano, valorizando-a, como ela merece.


Alexandre Werneck