O MILAGRE DE BERNA
Sonke Wottman, Das wunder von Bern, Alemanha, 2004

Uma mensagem política e histórica modela as três linhas narrativas de O Milagre de Berna. Todas elas expressam um movimento de permanência e transição na Alemanha dos anos 50. Há a permanência de país formatado por seu mito de nação, cuja imagem identitária valoriza pretendidas “qualidades” nacionais (como bravura e determinação, respeito à autoridade e à disciplina, aplicação na ciência e senso de presdestinação), constituindo para si e para os outros um símbolo de capacidade de reação às experiências extremas, de sede permanente por conquistas, de disposição ao suor necessário para viabilizá-las.

Tudo isso está expresso no filme na idolatria de um garoto pelo jovem craque de futebol de sua cidade, substituto da imagem do pai (sumido desde a guerra na URSS), e também no espírito de competição da seleção alemã na Copa de 54. O menino crê ser o talismã de seu ídolo - sem a presença do mascote, o craque vira perna de pau. Estamos no terreno irracional da predestinação, componente fundamental na auto-afirmação de um povo. Já a alma guerreira do selecionado alemão e a utilização pela mesma de chuteiras inovadoras, entra com a porção de disposição da identidade germânica. Essas coisas permanecem no percurso até a conquista da Copa na Suíça, definida por Daniel Cohn-Bandit (o porta-imagem de Maio de 68) como a “primeira conquista não violenta dos alemães”, segundo suas palavras após ver o filme.

O torneio esportivo é o ponto de intersecção dos blocos narrativos. Mas há também a transição de uma velha para uma nova Alemanha, na qual o autoritarismo e a disciplina militar ganham versão mais flexível, e onde as fragilidades podem ser assumidas e até empregadas como força motora -  arquivando-se assim a proibição de lágrimas masculinas desde a infância, regra essa imposta em um diálogo para expressar a necessidade de se aceitar as condições desfavoráveis sem lamento. Vemos essa transformação na relação do protagonista mirim com seu pai, quando este retorna traumatizado para casa após 11 anos e retoma seu posto na família, como se os filhos fossem soldados inimigos sob seu julgo. O homem da guerra terá de aprender a viver em paz e, em dado momento, ensina o filho a usar a imaginação para interceder na realidade. Também o treinador da seleção, quando detecta um drible nas regras por parte de um de seus atletas, prefere fazer vista grossa a puni-lo. Esses ares de nova Alemanha também são evidentes quando, em vez do ritual febril de afirmação da nação (contra todas as outras), esse congraçamento de tendências belicistas é substituído pelo compartilhamento do espetáculo midiático, menos apaixonado e mais distanciado.

Vemos a expressão disso nas cenas entre um casal de recém casados: ele repórter esportivo, ela uma dondoca, ambos com imagens de frescor, de uma sociedade mais colorida, mais aberta e mais flexível, que encaram o percurso do time alemão sem nenhum pingo de fanatismo. Não se trata de uma guerra, mas de um entretenimento - uma derrota não altera suas vidas e uma vitória produzirá efeitos simbólicos (não práticos, como em uma guerra). Estamos em um momento de reconciliação dos alemães com a Alemanha. Se o nazismo só é citado em um diálogo, pouco expressivo para a ação, mas de fundamental simbolismo, sua presença se dá mesmo é pela ausência.

No entanto, a operação dramática emprega as técnicas de sedução acionadas pela linguagem do espetáculo com a explícita proposta de fazer uma afirmação, sim, de nacionalismo e identidade. A Alemanha surgida das imagens é símbolo de uma sociedade talhada para a vitória, tanto porque assim querem os deuses (da genética?) como porque essa identidade crê na relação direta de esforço e recompensa. Assim, eventos são encadeados de forma a justificar a predestinação alemã - como se tudo fosse resultado de forças místicas para se premiar algum personagem (por extensão, o povo). Está clara essa significação na chuva enviada pelo céu para dar uma mãozinha aos futebolistas germânicos na final com a Hungria (da qual levam uma goleada na primeira fase, que bem serve como paralelo com a fria na qual entraram os nazistas na URSS). Os heróis eleitos são aqueles que, além de terem a graça do talento e a proteção dos deuses, demonstram vontade de trabalhar. Vocação e esforço saem premiados - genética e ciência, portanto; natureza e conhecimento. O chanceler alemão Gerard Schroeder, para ampliar a rede de comoção espalhada pelo filme, fez um pedido aos homens: “não tenham vergonha de se emocionar com nossa conquista”.

Uns e outros eventos são filmados com irrealidade visual suficiente para ganhar natureza de fábula atemporal, sem nada ver com as especificidades temporais de um processo de renascimento nacional, o do momento histórico da ficção, após a derrota da Segunda Guerra. A representação daquele renascimento coletivo (pelo futebol), também com efeitos nas experiências individuais (a glória do craque, a reconciliação entre pai e filho, da Nova com a Velha Alemanha), tem a artificialidade de uma proposta de mitificação das experiências singulares: a luz é salmão, quase onírica; os corpos ficam descarnados, deslocados do tempo histórico, como se fossem de qualquer época, como se fossem só representação. Busca-se o teor histórico-nacional de cada evento, sem no entanto fazer disso um slogan ou uma bandeira de povo. Tenta-se universalizar o culto do triunfalismo nacional, espinha dorsal de qualquer competição esportiva (mesmo nas eras dos transnacionais conglomerados econômicos no esporte), para não se rotular a narrativa como épico esportivo de um povo, mas de todos os povos, convidados pelos realizadores a se espelharem naquele específico, o alemão.

E essa universalização ambicionada tem como inspiração o patrocínio da FIFA, cujo interesse no filme é determinado pela sede da próxima Copa do Mundo, a Alemanha, onde o filme foi visto por mais de dois milhões de espectadores e recebeu críticas ufanistas de resenhistas cujo nacionalismo inibe a independência e o rigor de análise – característica essa muito comum em resenhistas de qualquer país.

Mas esse projeto de levar o olhar “local” à condição de “para todos”, de modo a fazer todo cidadão do planeta sentir-se meio alemão (como Hollywood faz com os americanos), falha por falta de competência dos realizadores como  fabuladores- mitificadores. Há pouca fabulação, para sermos certeiros. Em nossos tempos de olhares cínicos e incrédulos, o ilusionismo pressupõe constante renovação das operações visuais produtoras de verossimilhança. Embora a cultura imagética nos forneça a capacidade de crer em múltiplas naturezas de imagem, buscamos acreditar nas imagens de cada uma dessas diferentes naturezas, realistas ou auto-referenciais, minimalistas ou de excessos, crença necessária mesmo nas imagens inseminadoras de dúvidas (pois é preciso crer na dúvida).

Já a artificialidade virtual dos estádios no filme, para ficar em um exemplo (não único), ganha um grau de anteparo no percurso ilusionista, pondo a descrença na imagem e nos levando à consciência da representação. Vê-se o truque de computador, não o estádio. Vê-se o absurdo de uma ou outra situação, não a possibilidade do absurdo ser viável (ou nem ser uma questão).  Por esse motivo, por partir de um projeto de afirmação nacional-globalizado sem transformá-lo em um discurso fabular potente para ser consumido como espetáculo, O Milagre de Berna, mais que tudo, revela a singeleza de acreditar em uma narrativa tão pífia para distribuir suas mensagens - tanto as mais óbvias como as menos evidentes. Seu panfletinho vale tanto quanto santinho em dia de eleição. Se milagre há, está no fato de deixarem o filme existir e de ter quem assine embaixo.

Cléber Eduardo