Uma mensagem política e histórica
modela as três linhas narrativas de O Milagre de Berna. Todas elas expressam um movimento de permanência
e transição na Alemanha dos anos 50. Há a permanência
de país formatado por seu mito de nação, cuja imagem
identitária valoriza pretendidas “qualidades” nacionais
(como bravura e determinação, respeito à autoridade
e à disciplina, aplicação na ciência e senso de presdestinação),
constituindo para si e para os outros um símbolo de
capacidade de reação às experiências extremas, de sede
permanente por conquistas, de disposição ao suor necessário
para viabilizá-las.
Tudo isso está expresso no filme na idolatria de um
garoto pelo jovem craque de futebol de sua cidade, substituto
da imagem do pai (sumido desde a guerra na URSS), e
também no espírito de competição da seleção alemã na
Copa de 54. O menino crê ser o talismã de seu ídolo
- sem a presença do mascote, o craque vira perna de
pau. Estamos no terreno irracional da predestinação,
componente fundamental na auto-afirmação de um povo.
Já a alma guerreira do selecionado alemão e a utilização
pela mesma de chuteiras inovadoras, entra com a porção
de disposição da identidade germânica. Essas coisas
permanecem no percurso até a conquista da Copa na Suíça,
definida por Daniel Cohn-Bandit (o porta-imagem de Maio
de 68) como a “primeira conquista não violenta dos alemães”,
segundo suas palavras após ver o filme.
O torneio esportivo é o ponto de intersecção dos blocos
narrativos. Mas há também a transição de uma velha para
uma nova Alemanha, na qual o autoritarismo e a disciplina
militar ganham versão mais flexível, e onde as fragilidades
podem ser assumidas e até empregadas como força motora
- arquivando-se assim a proibição de lágrimas masculinas
desde a infância, regra essa imposta em um diálogo para
expressar a necessidade de se aceitar as condições desfavoráveis
sem lamento. Vemos essa transformação na relação do
protagonista mirim com seu pai, quando este retorna
traumatizado para casa após 11 anos e retoma seu posto
na família, como se os filhos fossem soldados inimigos
sob seu julgo. O homem da guerra terá de aprender a
viver em paz e, em dado momento, ensina o filho a usar
a imaginação para interceder na realidade. Também o
treinador da seleção, quando detecta um drible nas regras
por parte de um de seus atletas, prefere fazer vista
grossa a puni-lo. Esses ares de nova Alemanha também
são evidentes quando, em vez do ritual febril de afirmação
da nação (contra todas as outras), esse congraçamento
de tendências belicistas é substituído pelo compartilhamento
do espetáculo midiático, menos apaixonado e mais distanciado.
Vemos a expressão disso nas cenas entre um casal de
recém casados: ele repórter esportivo, ela uma dondoca,
ambos com imagens de frescor, de uma sociedade mais
colorida, mais aberta e mais flexível, que encaram o
percurso do time alemão sem nenhum pingo de fanatismo.
Não se trata de uma guerra, mas de um entretenimento
- uma derrota não altera suas vidas e uma vitória produzirá
efeitos simbólicos (não práticos, como em uma guerra).
Estamos em um momento de reconciliação dos alemães com
a Alemanha. Se o nazismo só é citado em um diálogo,
pouco expressivo para a ação, mas de fundamental simbolismo,
sua presença se dá mesmo é pela ausência.
No entanto, a operação dramática emprega as técnicas
de sedução acionadas pela linguagem do espetáculo com
a explícita proposta de fazer uma afirmação, sim, de
nacionalismo e identidade. A Alemanha surgida das imagens
é símbolo de uma sociedade talhada para a vitória, tanto
porque assim querem os deuses (da genética?) como porque
essa identidade crê na relação direta de esforço e recompensa.
Assim, eventos são encadeados de forma a justificar
a predestinação alemã - como se tudo fosse resultado
de forças místicas para se premiar algum personagem
(por extensão, o povo). Está clara essa significação
na chuva enviada pelo céu para dar uma mãozinha aos
futebolistas germânicos na final com a Hungria (da qual
levam uma goleada na primeira fase, que bem serve como
paralelo com a fria na qual entraram os nazistas na
URSS). Os heróis eleitos são aqueles que, além de terem
a graça do talento e a proteção dos deuses, demonstram
vontade de trabalhar. Vocação e esforço saem premiados
- genética e ciência, portanto; natureza e conhecimento.
O chanceler alemão Gerard Schroeder, para ampliar a
rede de comoção espalhada pelo filme, fez um pedido
aos homens: “não tenham vergonha de se emocionar com
nossa conquista”.
Uns e outros eventos são filmados com irrealidade visual
suficiente para ganhar natureza de fábula atemporal,
sem nada ver com as especificidades temporais de um
processo de renascimento nacional, o do momento histórico
da ficção, após a derrota da Segunda Guerra. A representação
daquele renascimento coletivo (pelo futebol), também
com efeitos nas experiências individuais (a glória do
craque, a reconciliação entre pai e filho, da Nova com
a Velha Alemanha), tem a artificialidade de uma proposta
de mitificação das experiências singulares: a luz é
salmão, quase onírica; os corpos ficam descarnados,
deslocados do tempo histórico, como se fossem de qualquer
época, como se fossem só representação. Busca-se o teor
histórico-nacional de cada evento, sem no entanto fazer
disso um slogan ou uma bandeira de povo. Tenta-se universalizar
o culto do triunfalismo nacional, espinha dorsal de
qualquer competição esportiva (mesmo nas eras dos transnacionais
conglomerados econômicos no esporte), para não se rotular
a narrativa como épico esportivo de um povo, mas de
todos os povos, convidados pelos realizadores a se espelharem
naquele específico, o alemão.
E essa universalização ambicionada tem como inspiração
o patrocínio da FIFA, cujo interesse no filme é determinado
pela sede da próxima Copa do Mundo, a Alemanha, onde
o filme foi visto por mais de dois milhões de espectadores
e recebeu críticas ufanistas de resenhistas cujo nacionalismo
inibe a independência e o rigor de análise – característica
essa muito comum em resenhistas de qualquer país.
Mas esse projeto de levar o olhar “local” à condição
de “para todos”, de modo a fazer todo cidadão do planeta
sentir-se meio alemão (como Hollywood faz com os americanos),
falha por falta de competência dos realizadores como
fabuladores- mitificadores. Há pouca fabulação, para
sermos certeiros. Em nossos tempos de olhares cínicos
e incrédulos, o ilusionismo pressupõe constante renovação
das operações visuais produtoras de verossimilhança.
Embora a cultura imagética nos forneça a capacidade
de crer em múltiplas naturezas de imagem, buscamos acreditar
nas imagens de cada uma dessas diferentes naturezas,
realistas ou auto-referenciais, minimalistas ou de excessos,
crença necessária mesmo nas imagens inseminadoras de
dúvidas (pois é preciso crer na dúvida).
Já a artificialidade virtual dos estádios no filme,
para ficar em um exemplo (não único), ganha um grau
de anteparo no percurso ilusionista, pondo a descrença
na imagem e nos levando à consciência da representação.
Vê-se o truque de computador, não o estádio. Vê-se o
absurdo de uma ou outra situação, não a possibilidade
do absurdo ser viável (ou nem ser uma questão). Por
esse motivo, por partir de um projeto de afirmação nacional-globalizado
sem transformá-lo em um discurso fabular potente para
ser consumido como espetáculo, O
Milagre de Berna, mais que tudo, revela a singeleza
de acreditar em uma narrativa tão pífia para distribuir
suas mensagens - tanto as mais óbvias como as menos
evidentes. Seu panfletinho vale tanto quanto santinho
em dia de eleição. Se milagre há, está no fato de deixarem
o filme existir e de ter quem assine embaixo.
Cléber Eduardo
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