Logo no início deste documentário,
ficamos um pouco preocupados com as imagens de rostos
infantis miseráveis, filmadas de cima para baixo em
câmera lenta, e com música “piedosa”, seguida de créditos
que surgem na tela vindos do fundo do quadro, como que
para causar impacto por si mesmos, ao invés de por alguma
informação relevante que tragam. A preocupação vem pelos
métodos que Solanas parece se preparar para usar neste
retrato da tragédia sócio-econômica argentina de anos
recentes – afinal, algo de que não precisamos (principalmente
nós brasileiros, já bastante acostumados a ver isso)
é uma aproximação do tema da injustiça social pelos
olhos da compaixão ou da culpabilização de todo um “meio”
– artifícios tão engajantes quanto inofensivos.
Mas, logo Solanas dissipa estes temores com uma opção
muito mais feliz: a de partir para um retrato direto
(porque o cineasta é parte deste momento, afinal esteve
inclusive envolvido na política nacional nestes anos
– fato que, ao não ser mais destacado, causa alguma
estranheza), de ganhar as ruas juntamente com o povo
argentino para os panelaços e revoltas de 2001 que acabaram
com a deposição do presidente De la Rua. São imagens
fortes, e mais do que isso, esclarecedoras de uma série
de questões. Mas, não se pode dizer que são imagens
inéditas, que não tivessem circulado de alguma forma
ou outra em 2001, então acabamos também nos preocupando
se a troca do documentário piedoso se dará pelo documentário
de contestação que vá, somente, repetir as imagens de
repressão policial e movimento popular que já vimos
tantas vezes.
Mas, mais uma vez, Solanas muda o registro e opta pelo
melhor caminho: parte, então, para uma radiografia histórica
- altamente parcial sim (mas e daí, se narrado em primeiríssima
pessoa, escancarado como tal?) – dos motivos que levam
a esta situação em 2001. Verdadeira arqueologia de um
desastre anunciado, o filme de Solanas se escuda tanto
numa variedade de depoimentos quanto, principalmente,
em vasto material audiovisual em extensa pesquisa histórica
sobre os temas relativos aos assuntos que quer abordar
– o endividamento externo argentino, a política local
pós-ditadura (e até mesmo um pouco dentro dela) e as
questões econômicas para além da cena argentina, que
criam um ambiente mundial onde esta se insira (e nisso
é muito interessante assistir ao filme pensando-o como
também um espelho do Brasil nos mesmos anos).
Solanas aponta muitos dedos, mas quando o faz dá nomes
aos bois momento após momento, e coloca a cara a tapa
sempre. Quando culpa as forças do capitalismo moderno
ou da política local e mundial pelo acontecido, ele
não se limita a falar em expressões generalizantes:
coloca na tela o nome das companhias, dos presidentes
destas, dos políticos que culpa e os motivos pelos quais
o faz. Eventualmente ele volta às imagens de exploração
da miséria – porque, afinal, esta também é assunto do
filme, mas é sempre quando o filme se parece mais com
o jornalismo banal das TVs. Em suma, Solanas faz cinema
de oposição, sim - mas é cinema de outra estirpe do
de um Michael Moore, porque em Solanas não há espaço
nem para o humor cínico (a única inserção que é marcada
por algum humor e intervenção no material é a colocação
de corvos em animação por sobre imagens da Suprema Corte),
nem muito menos para colocar sua figura acima dos fatos
– e principalmente não há espaço para achar que os fatos,
por si, não falem muito.
Solanas termina o filme com um chamamento otimista à
ação - vista como necessidade social, como objetivo
político acima de tudo, e com os olhos de quem ainda
consegue enxergar o positivo no meio de tudo aquilo
que mostra. Mais do que uma questão utópica, o que este
final representa é uma vontade do filme de intervir,
de ser parte de um momento/evento social maior do que
ele – e nisso ele acaba nos ganhando de forma indelével,
porque consegue passar a paixão de seus objetivos e
crenças. Além disso, impressiona a coerência
de seu discurso com algo que Solanas já fazia desde
os anos 60 (bastando lembrar do clássico La hora
de los hornos, que ele cita aqui), ou seja: ele
não começou agora, mas nem por isso perdeu a crença
na força do cinema – o que é sempre bom de se ver.
Eduardo Valente
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