MEMORIA DEL SAQUEO
Fernando Solanas, Memoria del saqueo, Argentina, 2004

Logo no início deste documentário, ficamos um pouco preocupados com as imagens de rostos infantis miseráveis, filmadas de cima para baixo em câmera lenta, e com música “piedosa”, seguida de créditos que surgem na tela vindos do fundo do quadro, como que para causar impacto por si mesmos, ao invés de por alguma informação relevante que tragam. A preocupação vem pelos métodos que Solanas parece se preparar para usar neste retrato da tragédia sócio-econômica argentina de anos recentes – afinal, algo de que não precisamos (principalmente nós brasileiros, já bastante acostumados a ver isso) é uma aproximação do tema da injustiça social pelos olhos da compaixão ou da culpabilização de todo um “meio” – artifícios tão engajantes quanto inofensivos.

Mas, logo Solanas dissipa estes temores com uma opção muito mais feliz: a de partir para um retrato direto (porque o cineasta é parte deste momento, afinal esteve inclusive envolvido na política nacional nestes anos – fato que, ao não ser mais destacado, causa alguma estranheza), de ganhar as ruas juntamente com o povo argentino para os panelaços e revoltas de 2001 que acabaram com a deposição do presidente De la Rua. São imagens fortes, e mais do que isso, esclarecedoras de uma série de questões. Mas, não se pode dizer que são imagens inéditas, que não tivessem circulado de alguma forma ou outra em 2001, então acabamos também nos preocupando se a troca do documentário piedoso se dará pelo documentário de contestação que vá, somente, repetir as imagens de repressão policial e movimento popular que já vimos tantas vezes.

Mas, mais uma vez, Solanas muda o registro e opta pelo melhor caminho: parte, então, para uma radiografia histórica - altamente parcial sim (mas e daí, se narrado em primeiríssima pessoa, escancarado como tal?) – dos motivos que levam a esta situação em 2001. Verdadeira arqueologia de um desastre anunciado, o filme de Solanas se escuda tanto numa variedade de depoimentos quanto, principalmente, em vasto material audiovisual em extensa pesquisa histórica sobre os temas relativos aos assuntos que quer abordar – o endividamento externo argentino, a política local pós-ditadura (e até mesmo um pouco dentro dela) e as questões econômicas para além da cena argentina, que criam um ambiente mundial onde esta se insira (e nisso é muito interessante assistir ao filme pensando-o como também um espelho do Brasil nos mesmos anos).

Solanas aponta muitos dedos, mas quando o faz dá nomes aos bois momento após momento, e coloca a cara a tapa sempre. Quando culpa as forças do capitalismo moderno ou da política local e mundial pelo acontecido, ele não se limita a falar em expressões generalizantes: coloca na tela o nome das companhias, dos presidentes destas, dos políticos que culpa e os motivos pelos quais o faz. Eventualmente ele volta às imagens de exploração da miséria – porque, afinal, esta também é assunto do filme, mas é sempre quando o filme se parece mais com o jornalismo banal das TVs. Em suma, Solanas faz cinema de oposição, sim - mas é cinema de outra estirpe do de um Michael Moore, porque em Solanas não há espaço nem para o humor cínico (a única inserção que é marcada por algum humor e intervenção no material é a colocação de corvos em animação por sobre imagens da Suprema Corte), nem muito menos para colocar sua figura acima dos fatos – e principalmente não há espaço para achar que os fatos, por si, não falem muito.

Solanas termina o filme com um chamamento otimista à ação - vista como necessidade social, como objetivo político acima de tudo, e com os olhos de quem ainda consegue enxergar o positivo no meio de tudo aquilo que mostra. Mais do que uma questão utópica, o que este final representa é uma vontade do filme de intervir, de ser parte de um momento/evento social maior do que ele – e nisso ele acaba nos ganhando de forma indelével, porque consegue passar a paixão de seus objetivos e crenças. Além disso, impressiona a coerência de seu discurso com algo que Solanas já fazia desde os anos 60 (bastando lembrar do clássico La hora de los hornos, que ele cita aqui), ou seja: ele não começou agora, mas nem por isso perdeu a crença na força do cinema – o que é sempre bom de se ver.

Eduardo Valente