Daniel (Jean-Pierre Darrousin),
proprietário de pequena empresa de construção
civil, discute com seus empregados, que se consideram
explorados pelo patrão. Revoltado com a atitude
dos subalternos, Daniel os manda embora, não
sem antes discursar acerca dos salários justos
que paga, e sobre o treinamento profissional que oferece,
permitindo aos trabalhadores, no futuro, abrirem seus
próprios negócios. A seqüência
marca a diferença fundamental entre Marie-Jo
e Seus Dois Amores (Marie-Jo et Ses Deux Amours,
França, 2001) e os filmes anteriores de Robert
Guédiguian: pela primeira vez, os protagonistas
da trama não pertencem à classe operária,
mas à burguesia, de maneira que a passagem já
anunciada pelo cineasta em sua obra – o nascimento da
nova economia de mercado, em que as relações
de trabalho se complexificam para além da dialética
marxista clássica – finalmente se completa.
Robert Guédiguian filma sempre com os mesmos
atores, sempre no bairro L’Estaque, na região
norte de Marselha, e sempre enfocando os trabalhadores.
O jovem Gilbert e seus três amigos que, desempregados,
vivem de pequenas contravenções e de farras
noturnas em O Último Verão (Dernier
Éte, França, 1981). As três
gerações de imigrantes italianos em Sul
Vermelho (Rouge midi, Fraca, 1984). O jardineiro
Dada e os companheiros de infância, que de reencontram
em Ki lo sa? (Ki lo sa?, França,
1985). Cochise, que abandona carreira de sucesso como
escritor e que retorna à Marselha natal para
reviver o passado de luta contra o capitalismo e a desigualdade
em Deus Vomita os Mornos (Dieu vomit les tiédes,
França, 1989). O padre e as mães que,
a fim de livrarem as crianças das drogas, da
violência e da marginalidade, ensinam-nas a roubar
dos ricos em O Dinheiro Traz a Felicidade (L’Argent
fait le bonheur, França, 1992). A inusitada
família que se forma ao redor do cabaré
Perroquet Bleu em À Vida, À Morte!
(À la Vie, à la mort!, França,
1995). O amor entre o vigia da fábrica de cimento
e a caixa de supermercado em Marius e Jeannette (Marius
et Jeannette, França, 1997). Os pais, trabalhadores
subempregados, do jovem casal Chin e Bebé, que
recorrem a todos os meios quando este é preso
injustamente por um policial racista em No Lugar
do Coração (À la Place du
coeur, França, 1998). A família de
garagistas da oficina mecânica Moliterno &
Cia., que enfrenta, para não fechar as portas,
a grande empresa que lhe deve dinheiro em Ao Ataque
(À L’Attaque, França, 2000).
Michèle, empregada no mercado de peixes, que
compra drogas para a filha a fim de que não se
prostitua, enquanto o pai, desempregado e eleitor da
extrema direita, nega a realidade em A Cidade Está
Tranqüila (La Ville est tranquille,
França, 2000).
Assim, mesmo nesta Marselha infestada pelo desemprego,
pelo racismo contra negros e imigrantes árabes,
pelo tráfico de drogas e pela marginalidade juvenil
– problemas decorrentes do abismo sócio-econômico
que existe entre empregados e patrões –, onde
impera o fracasso, a solidão e a desilusão
com os rumos da sociedade capitalista, Guédiguian
nutre imenso carinho e compreensão por seus heróis
à margem, pois, em resposta às atribulações
do cotidiano, preenche-os com a nostalgia por uma época
em que havia laços de amizade e de entendimento
entre as pessoas, a qual, paradoxalmente, manifesta-se
na aspiração por um futuro melhor. Sobretudo
em O Dinheiro Traz a Felicidade, À
Vida, À Morte!, Marius e Jeannette
e Ao Ataque, o cineasta materializa essa esperança
por meio da comédia, em que os personagens –
teia que engloba parentes, amigos, vizinhos, agregados,
colegas de trabalho, conhecidos – unem-se para, edificando
verdadeira família comunal extraída do
ideário socialista utópico, solidarizarem-se
e apoiarem-se mutuamente, com bom humor, nas desgraças
que se abatem sobre todos.
Marie-Jo (Ariane Ascaride), contudo, está proibida
de participar da felicidade comum, na medida em que,
ao ascender socialmente, passa a integrar a classe pequeno-burguesa.
De sorte que, se na obra pregressa de Guédiguian
fala-se sobre a construção de um novo
contexto familiar acima de quaisquer dispositivos legais
e regulatórios, em Marie-Jo e Seus Dois Amores,
ao inverso, a paixão da protagonista pelo marido
Daniel e pelo amante Marco (Gerard Meylan) destrói
e subverte a família nuclear tradicional, base
não apenas da sociedade capitalista (forma de
garantir a herança), como também característica
do processo civilizatório ocidental, judaico-cristão.
Em diálogo com a filha, que a rejeita após
a descoberta da traição, Marie-Jo afirma
que, enquanto amar somente um homem satisfaz-lhe o coração,
amar dois o esvazia, restando a dor e o sofrimento que
se originam do agir dissimulado (ser incapaz de dividir
com Daniel a alegria de estar apaixonada por Marco),
bem como a consciência de que suas atitudes afetam
negativamente tanto o marido quanto o amante.
As ações de Marie-Jo, entretanto, não
significam inconstância ou falta de caráter,
e não têm como conseqüência
sentimento de culpa ou aflições psicológicas.
Elas, na verdade, lembram à heroína o
passado proletário, quando as emoções
podiam ser compartilhadas entre a comunidade, quando
o amor não havia se transformado em propriedade,
em mera extensão dos mecanismos capitalistas
de controle e de sujeição dos corpos,
dos sentimentos e das subjetividades.
Trata-se da principal característica de Guédiguian,
que permeia e atravessa sua filmografia: a capacidade
de reverter nas micro-relações pessoais
e afetivas as pressões e demandas sócio-econômicas
que, em curso, alteram a estrutura burguesa convencional
(clara confrontação entre trabalhadores
e proprietários) em direção a esta
nova sociedade, mais fluida, mais flexível, mais
descentralizada, onde a inserção através
do incentivo à livre iniciativa e ao individualismo
é acompanhada pela exclusão por meio do
subemprego e, em especial, do desemprego.
Desse modo, Marie-Jo está presa nesta transição,
pois ao mesmo tempo em que vive a revolução
através da pluralidade emotiva, também
experimenta a adequação em virtude da
impossibilidade de amar plenamente Daniel e Marco. Como
a protagonista, ao contrário de Jean-Christophe
(Jacques Boudet) – velho a quem busca de ambulância
e o qual foge da realidade por intermédio do
álcool, na nostalgia e dos sonhos –, não
pode escapar de sua condição intrinsecamente
burguesa, resta-lhe somente o desenlace trágico:
a morte, evasão definitiva, que desconhece códigos
sociais, igualando a todos na finitude.
Em Marie-Jo e Seus Dois Amores, a comédia
é substituída pela tragédia, a
utopia pela morte, a proximidade dos afetos pela distância
das regras de conduta: o mar de Marselha, que separa
os amantes, mas que, igualmente, serve de túmulo
para o casal.
Paulo Ricardo de Almeida
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