O passado de Tony Scott, de
uma maneira ou outra, é um sinal de alerta. A
menção a títulos como Top Gun,
Um Tira da Pesada 2, O Último Boy Scout
e Amor à Queima Roupa pode causar calafrios
e enjôos em muita gente. Tendo ignorado os últimos
quatro filmes do diretor, é razoável a
surpresa diante das primeiras imagens de Chamas da
Vingança. Não pela constatação
de um salto de qualidade, mas por uma suposta mudança
de estilo: vemos uma tentativa, um tanto delirante,
de aproximar-se do realismo. Areia nos olhos. Scott
continua o mesmo, mas de outra forma, com novos recursos.
Seu apelo realista só está lá para
ampliar as possibilidades de seu culto ao artifício.
Esse procedimento não é em si condenável,
se a partir dele surgir alguma potência estética,
algo de instigante na articulação do estilo,
mas vemos em poucos minutos a asfixia por overdose.
Tony Scott sofre de um mal progressivo e a caminho de
se tornar epidêmico no cinema contemporâneo:
incapaz de fazer escolhas estéticas, soma uma
porção de opções. Sua narrativa
reúne imagens aceleradas e congeladas, variações
de luz, texturas e passagens em preto-e-branco, jatos
temporais, filmagem por disparo e sobreposição
de imagens (seria homenagem a Jean Epstein?).
Pode-se entender a multiplicação de caminhos
como uma tentativa de transpor, em imagens e sons (bom
uso do som, façamos justiça), a instabilidade
permanente de um mundo ameaçador e turbulento.
A câmera balança da direita para a esquerda,
da esquerda para a direita, circula em torno dos personagens,
termina um plano em movimento brusco e começa
o seguinte em outro movimento veloz. Scott constrói
uma visão sensacionalista que ambiciona impactar
os sentidos do espectador. Persegue uma truculência
estética, que transforma o menor gesto, até
mesmo uma aula de natação para uma menininha,
em um momento de aparente risco da ordem. No entanto,
todo o excesso é conduzido de forma cool,
sem sentimentalismo, de modo a não produzir aproximação
pela emoção. Sua plasticidade frenética
tende a nos distanciar de tudo quase com aversão.
É dessa maneira agressiva, pegando-nos aos safanões
pelos braços, que ele tenta seqüestrar nossa
sensorialidade. Sua narrativa parece alimentada por
um coquetel de ecstasy, cocaína, LSD e alguns
outros aditivos, como se seu referencial fosse o inglês
Guy Ritchie. Desde os primeiros segundos, somos jogados
no inferno, em um universo de alucinação
e mal estar. Se pode às vezes parecer tudo aleatório,
sem nenhuma relação entre as opções,
na verdade há sentido quando se põe tudo
em contexto.
Chamas da Vingança passa-se na Cidade
do México. Sabemos de cara que a metrópole
está o caos, com uma onda avassaladora de seqüestros.
Denzel Washington, ex-militar com ampla folha corrida
de mortes em nome do Estado, chega lá para trabalhar:
será guarda-costas de uma menininha loira-de-olhos-azuis.
Nosso herói carrega peso na alma e não
é dado a contatos humanos. A menina vai quebrar
sua carcaça e transformar a rocha em manteiga.
Como se espera, porém, o anjinho é seqüestrado.
Policiais corruptos estão envolvidos. Dá
algo errado no pagamento do resgate. E o protagonista
irado, disposto a fazer uma lavagem em sua consciência
imunda e promover uma faxina na sujeira moral mexicana,
inicia sua redenção. Com muito sangue
e muitas chamas.
Temos assim um justiceiro tentando atenuar a desordem
do Terceiro Mundo, logo ali, no quintal do Primeiro,
para assim também punir-se pela sua colaboração
com a podridão mundial. O herói, para
não ficar assim tudo preto no branco, é
negro. E religioso. Lê a Bíblia, não
se sabe ao certo para se extrair algo dela (sua ação
nega o evangelho), ou como castigo (auto-imposto). Sua
religiosidade é diferente, contudo, do misticismo
de um dos vilões, que reza por suas finanças.
O Terceiro Mundo, está lá na tela, só
pensa em dinheiro - e para consegui-lo não mede
esforços e ignora qualquer senso moral.
A Cidade do México é exposta como um ambiente
onde cada esquina, cada automóvel e cada sem
teto acena com a possibilidade do risco de vida. Também
se promove uma alteração cromática
quando mais ao final surgem cenas aéreas de uma
área de periferia urbana. A imagem fica mais
suja, com as cores retiradas, em contraste com outros
momentos, de cores estouradas, à moda de comerciais
de produtos para jovens decolados (e não se ignora
nessa afirmação a via de mão dupla
entre cinema e publicidade, um assimilando o outro de
modo a não se identificar mais com clareza fronteira
tão nítida).
É inegável que, entre tantas matrizes
possíveis de ser identificadas ou intuídas,
Cidade de Deus está lá. César
Charlone (o fotógrafo do filme de Fernando Meirelles)
chegou a trabalhar em parte das filmagens e, se não
a completou, parece ter deixado as orientações
fundamentais. Há uma cena (de uma rave) obviamente
sugada de CDD. O Brasil também entra em
cena com dois atores, Charles Paraventi (de, entre outros,
CDD) e Gero Camilo (que teve as falas em espanhol
cortadas na montagem e é torturado pelas mãos
da justiça de Denzel Washington). Está
aí a nossa colaboração ao cinema
do Hemisfério Norte.
Cléber Eduardo
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