CHAMAS DA VINGANÇA
Tony Scott, Man on fire, EUA, 2004

O passado de Tony Scott, de uma maneira ou outra, é um sinal de alerta. A menção a títulos como Top Gun, Um Tira da Pesada 2, O Último Boy Scout e Amor à Queima Roupa pode causar calafrios e enjôos em muita gente. Tendo ignorado os últimos quatro filmes do diretor, é razoável a surpresa diante das primeiras imagens de Chamas da Vingança. Não pela constatação de um salto de qualidade, mas por uma suposta mudança de estilo: vemos uma tentativa, um tanto delirante, de aproximar-se do realismo. Areia nos olhos. Scott continua o mesmo, mas de outra forma, com novos recursos. Seu apelo realista só está lá para ampliar as possibilidades de seu culto ao artifício.

Esse procedimento não é em si condenável, se a partir dele surgir alguma potência estética, algo de instigante na articulação do estilo, mas vemos em poucos minutos a asfixia por overdose. Tony Scott sofre de um mal progressivo e a caminho de se tornar epidêmico no cinema contemporâneo: incapaz de fazer escolhas estéticas, soma uma porção de opções. Sua narrativa reúne imagens aceleradas e congeladas, variações de luz, texturas e passagens em preto-e-branco, jatos temporais, filmagem por disparo e sobreposição de imagens (seria homenagem a Jean Epstein?).

Pode-se entender a multiplicação de caminhos como uma tentativa de transpor, em imagens e sons (bom uso do som, façamos justiça), a instabilidade permanente de um mundo ameaçador e turbulento. A câmera balança da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, circula em torno dos personagens, termina um plano em movimento brusco e começa o seguinte em outro movimento veloz. Scott constrói uma visão sensacionalista que ambiciona impactar os sentidos do espectador. Persegue uma truculência estética, que transforma o menor gesto, até mesmo uma aula de natação para uma menininha, em um momento de aparente risco da ordem. No entanto, todo o excesso é conduzido de forma cool, sem sentimentalismo, de modo a não produzir aproximação pela emoção. Sua plasticidade frenética tende a nos distanciar de tudo quase com aversão.

É dessa maneira agressiva, pegando-nos aos safanões pelos braços, que ele tenta seqüestrar nossa sensorialidade. Sua narrativa parece alimentada por um coquetel de ecstasy, cocaína, LSD e alguns outros aditivos, como se seu referencial fosse o inglês Guy Ritchie. Desde os primeiros segundos, somos jogados no inferno, em um universo de alucinação e mal estar. Se pode às vezes parecer tudo aleatório, sem nenhuma relação entre as opções, na verdade há sentido quando se põe tudo em contexto.

Chamas da Vingança passa-se na Cidade do México. Sabemos de cara que a metrópole está o caos, com uma onda avassaladora de seqüestros. Denzel Washington, ex-militar com ampla folha corrida de mortes em nome do Estado, chega lá para trabalhar: será guarda-costas de uma menininha loira-de-olhos-azuis. Nosso herói carrega peso na alma e não é dado a contatos humanos. A menina vai quebrar sua carcaça e transformar a rocha em manteiga. Como se espera, porém, o anjinho é seqüestrado. Policiais corruptos estão envolvidos. Dá algo errado no pagamento do resgate. E o protagonista irado, disposto a fazer uma lavagem em sua consciência imunda e promover uma faxina na sujeira moral mexicana, inicia sua redenção. Com muito sangue e muitas chamas.

Temos assim um justiceiro tentando atenuar a desordem do Terceiro Mundo, logo ali, no quintal do Primeiro, para assim também punir-se pela sua colaboração com a podridão mundial. O herói, para não ficar assim tudo preto no branco, é negro. E religioso. Lê a Bíblia, não se sabe ao certo para se extrair algo dela (sua ação nega o evangelho), ou como castigo (auto-imposto). Sua religiosidade é diferente, contudo, do misticismo de um dos vilões, que reza por suas finanças. O Terceiro Mundo, está lá na tela, só pensa em dinheiro - e para consegui-lo não mede esforços e ignora qualquer senso moral.

A Cidade do México é exposta como um ambiente onde cada esquina, cada automóvel e cada sem teto acena com a possibilidade do risco de vida. Também se promove uma alteração cromática quando mais ao final surgem cenas aéreas de uma área de periferia urbana. A imagem fica mais suja, com as cores retiradas, em contraste com outros momentos, de cores estouradas, à moda de comerciais de produtos para jovens decolados (e não se ignora nessa afirmação a via de mão dupla entre cinema e publicidade, um assimilando o outro de modo a não se identificar mais com clareza fronteira tão nítida).

É inegável que, entre tantas matrizes possíveis de ser identificadas ou intuídas, Cidade de Deus está lá. César Charlone (o fotógrafo do filme de Fernando Meirelles) chegou a trabalhar em parte das filmagens e, se não a completou, parece ter deixado as orientações fundamentais. Há uma cena (de uma rave) obviamente sugada de CDD. O Brasil também entra em cena com dois atores, Charles Paraventi (de, entre outros, CDD) e Gero Camilo (que teve as falas em espanhol cortadas na montagem e é torturado pelas mãos da justiça de Denzel Washington). Está aí a nossa colaboração ao cinema do Hemisfério Norte.

Cléber Eduardo