O último protagonista-artista
de Almodóvar era a escritora de A Flor do
Meu Segredo. É um filme capital na obra de
seu cineasta, uma vez que instaura um outro tom em seus
filmes, uma maneira mais nuançada de tratar os
dramas de cada personagem, um ritmo mais lento que se
aproxima muito mais do melodrama do que das comédias
screwball que constituíam boa parte da primeira
fase de sua carreira (Mulheres à Beira de
um Ataque de Nervos, Kika). A Flor do
Meu Segredo é um filme de transição,
que abre para um momento de sua carreira que está
repleto de obra-primas (Carne Trêmula,
Tudo Sobre Minha Mãe, Fale Com Ela).
Pois Má Educação também
tem um artista-protagonista. É Ernesto, cineasta
em crise de inspiração que não
sabe mais que filme fazer, e recorta reportagens em
jornais que possam virar tema de sua próxima
realização. Seria fácil demais
aproximar a figura de Ernesto da de Almodóvar.
Um não sabe mais a história que tem para
contar, enquanto o outro sofre de excesso de histórias.
O esboço de Má Educação
data da época de adolescência do diretor,
como um conto muito pessoal sobre prestação
de contas com a educação religiosa. Mas
a história só é retomada em 1992,
e desde então Almodóvar grama para criar
uma aproximação menos maniqueísta
de seus personagens, principalmente a figura do padre.
Ora, um projeto dessa proveniência acaba curto-circuitando
momentos diferentes de um percurso pessoal de artista,
e Má Educação acaba aparecendo
a nossos olhos como um novo filme de transição
para um outro momento, talvez outra fase na carreira.
Ou ao menos uma tomada de fôlego.
Não que Má Educação
possa ser encarado como um "filme menor" -
embora não seja tão forte e cheio de ressonâncias
quanto seus últimos filmes. Há nele uma
tal gama de sentimentos frustrados, um cara-a-cara com
histórias do passado que definiram situações
do presente, e um novo questionamento de uma geração
(sua própria) que trabalham pesado com todas
as problemáticas que interessam a Almodóvar
e que nos encantam há pelo menos vinte anos.
A paixão arrebatadora, pela qual se vive e morre,
pela qual se comete loucuras e gestos terríveis,
essa ainda está no cerne de Má Educação.
No cerne e no fim, porque é com ela, bem grande,
que Almodóvar decide fechar o último plano
do filme. Só que, dessa vez, mais do que tentar
seguir o percurso dessa paixão, o realizador
prefere pesquisar todos os caminhos que fizeram com
que uma grande paixão (a dos colegas de escola
Ignacio e Ernesto) não tenha podido se realizar.
Tarefa de arqueólogo a que Almodóvar se
propõe: escavar um momento do passado, fazê-lo
brotar inesperado à superfície, observar
atentamente que tipo de reviravoltas ele pode concretizar
no presente. Momento também de prestar contas
com seu próprio passado, o passado coletivo de
uma geração que é educada com determinados
valores de punição e culpabilidade que
acabam frustrando a vida tanto dos desviantes (Juan
que se torna um travesti junkie) quanto dos repressores
(Padre Manolo que se apaixona loucamente por uma criança).
Muita gente viu, não sem certa preguiça,
Má Educação como um simples
libelo contra a educação religiosa, ou
como um filme que diz que os padres são todos
depravados. Ou então, e talvez de uma forma pior,
deplorou que o filme não tivesse se fixado no
comportamento dos padres pedófilos, num momento
em que estouram escândalo atrás de escândalo
sobre a recorrência de padres que se apaixonam
por seus coroinhas ou por seus alunos. Ora, Almodóvar
não é Louis Malle, e sua vontade não
é a de parasitar temas "polêmicos"
para adicionar à agenda dos questionamentos culturais
mais um assunto que estará na moda discutir.
Seu interesse é compreender e maravilhar-se em
como certos corpos se aproximam uns dos outros, e que
conseqüências podem decorrer desses encontros.
A moral, que estabelece quais destes encontros são
válidos e quais não são, esta moral
não é aquilo que explica um determinado
comportamento, mas antes é algo que deve ser
explicado. A moral é algo que vem sempre depois
-- como "polícia dos costumes" que
jamais impede os sentimentos, mas pode impedir a ação
--, numa tentativa de frear a inexorável "lei
do desejo" na qual agem e padecem os personagens.
Ser, num filme de Almodóvar, é ter paixão.
E há muito tempo só os personagens apaixonados
o interessam.
Três histórias, três personagens
(ou melhor, quatro), muitas paixões: Padre Manolo
que ama um de seus alunos, Ignacio e Ernesto que se
amaram, um novo Ignacio agora chamado Angel que renasce
das profundezas do passado para fazer delirar novamente
o mundo de Ernesto. Mas também paixão
pela arte: Ernesto, o cineasta; Juan, o ator; o amor
das duas crianças pelos filmes de Sara Montiel,
e o próprio amor de Almodóvar pelas histórias
que se acavalam uma dentro da outra, um relato que dá
origem a outros relatos.
Má Educação é também,
em muitos aspectos, um filme sobre o ator. Sobre como
ser ator na vida, primeiramente: Manolo que precisa
interpretar um papel social que não condiz com
sua paixão, Juan que precisar interpretar na
vida o papel de seu irmão para fazer com que
Ernesto rode o filme que pode saciar sua vingança,
ou Ignacio/Angel que se traveste para ser o personagem
que seu corpo não permite.
Se Má Educação não
encanta tanto quanto os filmes precedentes de Almodóvar,
é menos pelo tratamento dos personagens (todos,
em alguma medida, encantadores por suas paixões,
mesmo o Padre Manolo) do que uma mudança de perspectiva
que talvez não tenha encontrado o ritmo e o tom
exatos de seu encadeamento. Filmar aquilo que trunca
uma paixão demanda talvez um outro "colocar
em cena", algo mais frio com o que Almodóvar
parece não ter se acostumado completamente (a
cena da piscina, por exemplo, em que o corpo de Juan
desperta curiosidade e suspeita em Ernesto, talvez seja
a que mais se ressinta disso: a cena é filmada
para acender centelhas, e nenhuma acende). Depois de
fazer em Fale Com Ela um filme em que a beleza
daquilo que provoca paixões dispõe e organiza
tudo aquilo que vai se ver na tela – o que faz com que
até uma apresentação de Caetano
Veloso ou um homem nadando na piscina tenham seu lugar
inquestionável dentro dele –, a mudança
de guinada em Má Educação,
onde só há paixões frustradas,
pede uma outra aproximação dos corpos
que se realiza em parte (o que dá grandeza ao
filme), mas ainda não completamente. Se essa
ligeira mudança de percurso será continuada
e depurada em suas próximas realizações,
cabe somente ao futuro dizer. No momento, cabe assistir
a Má Educação com a certeza
de que Almodóvar ainda choca a moralidade com
aquilo que, para ele e para nós, é ainda
o que dá motivação e sentido na
atividade humana: a paixão.
Ruy Gardnier
|