No início, planos do alto criam
uma estranha relação geométrica do espectador com a
cidade de Paris. Nesta cidade, logo destacamos o personagem
de Jean-Pierre Darrousin, que fala com a esposa pelo
email, depois pelo celular, mas que parece ter dificuldade
de encontrá-la pessoalmente. Na encenação deste quase
desencontro, Kahn planta a semente que explora ao longo
da primeira meia hora de Luzes Vermelhas: a da
deterioração da relação entre Darroussin e sua esposa
(interpretada por Carole Bouquet). A forma como encena
e coloca em discussão este abismo entre os dois é muito
bem resolvida, sem apelar a clichês dramáticos nem de
mise-en-scène: é nas pequenas palavras não ditas,
nos pequenos olhares desencontrados, e na incorporação
de uma infernal tentativa de viagem para férias de verão,
interrompida por discussões em meio a um tráfego selvagem
e a constante perseguição (incorporada pela mídia –
TV e rádio) por um sentimento de medo, de incômodo (constantes
anúncios de acidentes, de fugas de prisão, etc).
Até este momento, Kahn tem o espectador na palma das
mãos, encenando todo este clima com muito pouca obviedade,
e com imagens muito bem escolhidas (inclusive das tais
“luzes vermelhas” evocadas no título). É então que o
filme tem sua primeira virada: a fuga da mulher, que
exasperada pelo impulso do marido em se embebedar na
viagem, resolve ir pegar um trem. Continuamos sempre
com o personagem dele, agora numa busca desesperada
por ela – busca esta que ganha contornos de filme de
suspense, cada vez mais fortes. Enquanto a câmera reproduz
a confusão, o desespero deste homem, o filme continua
nos tendo como cúmplices. Ele embarca numa viagem por
uma noite ameaçadora pelas estradas francesas – uma
mistura de De Olhos Bem Fechados sem o sexo,
com A Morte Pede Carona sem a ação desenfreada
(ou um Depois de Horas nada engraçado).
Infelizmente, quando surge em cena o personagem do carona
misterioso (que pode ou não ser um assassino fugido
da cadeia), o filme começa a perder sua empatia, e ganhar
contornos moralistas claros. Cada vez mais a câmera
se torna não-partidária do drama de seu personagem,
e começa a olhá-lo do alto. A questão da bebedeira vai
se tornando cada vez mais patológica, e mais forte ainda
uma idéia de punição ao personagem (aparentemente pela
sua insatisfação com a mulher). O desvio rumo à violência
explícita, a estas alturas, é inevitável – mas, em si,
bem encenado e não problemático.
Problema mesmo se instaura no dia seguinte, sob a luz
do Sol. Quando “voltamos a si”, junto com o personagem,
impera a confusão (tornada encenação em especial numa
longa cena dele ao telefone, tentando retomar o contato
com a realidade). É aí que o filme escolhe seus tons
finais: o de conto moral, de epopéia burguesa ao inferno
– ressurge a personagem da mulher, ela também maculada
pela noite, e vêm a culpa (“je suis desolé” é o que
mais se fala) e a nostalgia pelo passado que não será
mais o mesmo (“quando éramos felizes, não prestávamos
atenção”).
É preciso, então, retomar a comparação com De Olhos
Bem Fechados: é como se o personagem de Tom Cruise
ressurgisse daquela noite não alterado, mas sim maculado
e querendo retomar uma normalidade que nunca houve.
E, pior: ele não tem a seu lado Nicole Kidman dizendo
“Let’s fuck”, e sim Carole Bouquet o levando para pegar
as crianças e exorcizar os fantasmas em férias de verão
familiares. Mas, principalmente: o filme explica e articula
toda a epopéia daquela noite, liga cada um dos pontos
de sua narrativa e não deixa nenhum lugar para o espaço
da dúvida, do delírio, da alucinação que Kubrick encena
a todo momento. Não é o caso aqui de se comparar dois
filmes e sim duas visões de mundo: Kahn partilha do
desejo de uma retomada (mesmo que indique que ela seja
impossível), acredita na felicidade original que nós
(os burgueses) cismaríamos de atrapalhar. Kubrick pede
o reconhecimento de que esta normalidade não existe,
de que precisamos conviver com este fato e encontrar
nele mesmo nossas formas de convivência. Acima de tudo,
Kubrick trata de dúvidas e sensações, e Kahn de certezas
e imposições. Pena, porque olho para o cinema, fica
claro que ele tem – a questão é a serviço de que ele
vai colocar este olhar em ação.
Eduardo Valente
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