LUZES VERMELHAS
Cédric Kahn, Feux rouges, França, 2004

No início, planos do alto criam uma estranha relação geométrica do espectador com a cidade de Paris. Nesta cidade, logo destacamos o personagem de Jean-Pierre Darrousin, que fala com a esposa pelo email, depois pelo celular, mas que parece ter dificuldade de encontrá-la pessoalmente. Na encenação deste quase desencontro, Kahn planta a semente que explora ao longo da primeira meia hora de Luzes Vermelhas: a da deterioração da relação entre Darroussin e sua esposa (interpretada por Carole Bouquet). A forma como encena e coloca em discussão este abismo entre os dois é muito bem resolvida, sem apelar a clichês dramáticos nem de mise-en-scène: é nas pequenas palavras não ditas, nos pequenos olhares desencontrados, e na incorporação de uma infernal tentativa de viagem para férias de verão, interrompida por discussões em meio a um tráfego selvagem e a constante perseguição (incorporada pela mídia – TV e rádio) por um sentimento de medo, de incômodo (constantes anúncios de acidentes, de fugas de prisão, etc).

Até este momento, Kahn tem o espectador na palma das mãos, encenando todo este clima com muito pouca obviedade, e com imagens muito bem escolhidas (inclusive das tais “luzes vermelhas” evocadas no título). É então que o filme tem sua primeira virada: a fuga da mulher, que exasperada pelo impulso do marido em se embebedar na viagem, resolve ir pegar um trem. Continuamos sempre com o personagem dele, agora numa busca desesperada por ela – busca esta que ganha contornos de filme de suspense, cada vez mais fortes. Enquanto a câmera reproduz a confusão, o desespero deste homem, o filme continua nos tendo como cúmplices. Ele embarca numa viagem por uma noite ameaçadora pelas estradas francesas – uma mistura de De Olhos Bem Fechados sem o sexo, com A Morte Pede Carona sem a ação desenfreada (ou um Depois de Horas nada engraçado).
Infelizmente, quando surge em cena o personagem do carona misterioso (que pode ou não ser um assassino fugido da cadeia), o filme começa a perder sua empatia, e ganhar contornos moralistas claros. Cada vez mais a câmera se torna não-partidária do drama de seu personagem, e começa a olhá-lo do alto. A questão da bebedeira vai se tornando cada vez mais patológica, e mais forte ainda uma idéia de punição ao personagem (aparentemente pela sua insatisfação com a mulher). O desvio rumo à violência explícita, a estas alturas, é inevitável – mas, em si, bem encenado e não problemático.

Problema mesmo se instaura no dia seguinte, sob a luz do Sol. Quando “voltamos a si”, junto com o personagem, impera a confusão (tornada encenação em especial numa longa cena dele ao telefone, tentando retomar o contato com a realidade). É aí que o filme escolhe seus tons finais: o de conto moral, de epopéia burguesa ao inferno – ressurge a personagem da mulher, ela também maculada pela noite, e vêm a culpa (“je suis desolé” é o que mais se fala) e a nostalgia pelo passado que não será mais o mesmo (“quando éramos felizes, não prestávamos atenção”).

É preciso, então, retomar a comparação com De Olhos Bem Fechados: é como se o personagem de Tom Cruise ressurgisse daquela noite não alterado, mas sim maculado e querendo retomar uma normalidade que nunca houve. E, pior: ele não tem a seu lado Nicole Kidman dizendo “Let’s fuck”, e sim Carole Bouquet o levando para pegar as crianças e exorcizar os fantasmas em férias de verão familiares. Mas, principalmente: o filme explica e articula toda a epopéia daquela noite, liga cada um dos pontos de sua narrativa e não deixa nenhum lugar para o espaço da dúvida, do delírio, da alucinação que Kubrick encena a todo momento. Não é o caso aqui de se comparar dois filmes e sim duas visões de mundo: Kahn partilha do desejo de uma retomada (mesmo que indique que ela seja impossível), acredita na felicidade original que nós (os burgueses) cismaríamos de atrapalhar. Kubrick pede o reconhecimento de que esta normalidade não existe, de que precisamos conviver com este fato e encontrar nele mesmo nossas formas de convivência. Acima de tudo, Kubrick trata de dúvidas e sensações, e Kahn de certezas e imposições. Pena, porque olho para o cinema, fica claro que ele tem – a questão é a serviço de que ele vai colocar este olhar em ação.

Eduardo Valente