LOS MUERTOS
Lisandro Alonso, Los muertos, Argentina, 2004

De saída, Los Muertos nos apresenta um enigma: aberto com um plano-sequência que viaja por uma mata tropical fechada (ambiente um tanto inesperado e desconhecido, em se tratando de Argentina), passando o foco de maneira quase instintiva por entre as árvores, o filme cria uma sensação de imersão num espaço misterioso, onde se vêem, de passagem e perdidos em meio às árvores (sem maiores destaques), dois corpos jovens ensangüentados e uma mão que passa na frente da câmera. Ao final deste plano, temos um altamente incomum fade para o verde, que aparentemente fecha este ciclo imersivo na natureza onipresente. Cortamos então para a imagem de um homem deitado numa cama, o que cria o problema: o que vimos é um sonho? Um pesadelo? Passado? Projeção futura? Os próximos minutos não ajudarão muito, porque se neles a câmera acompanha esta figura de Argentino Vargas (nome do ator e do personagem, em simbiose um tanto interessante), ainda assim levamos quase 10 minutos de ações prosaicas e trocas de conversas para entender finalmente que Vargas encontra-se numa prisão, de onde logo será libertado por ter cumprido sua pena.

Se toda esta primeira parte do filme impõe um jogo de constante questionamento pelo espectador de cada imagem que assiste, tentando buscar o estatuto narrativo que as relaciona, com a saída de Vargas da cadeia tem início uma segunda parte um tanto distinta. Nela, acompanhamos Vargas na sua volta para casa, após sabe-se lá quantos anos (a pena nunca é discutida, supomos apenas que é longa). O que esta volta tem de peculiar é que Vargas morava (e agora, quem lá mora é sua filha) embrenhado na mata, aonde só se chega de barco (no caso, uma canoa navegada por ele mesmo). Portanto, esta segunda parte se assemelha muito a uma odisséia (não a de Ulisses, mas a referência faz sentido), onde o processo que nos cabe acompanhar é o da re-naturalização de Vargas, após anos na cadeia, no ambiente onde supomos que sempre viveu e foi criado. Neste trajeto, o que Lisandro Alonso destaca é a simbiose que vai se criando entre personagem e ambiente, entre Vargas e a mata à sua volta (e os poucos personagens com quem cruza no caminho).

A quase divisão do filme em duas partes, sendo a segunda na mata, inevitavelmente traz à mente os dois filmes de Apichatpong Weerasethakul exibidos no Brasil (Eternamente Sua e Mal dos Trópicos). Mas, se inegável contato cinematográfico há, é importante dizer que o registro de Alonso é bem diferente - pois ainda que de semelhante potencial hipnótico nas cenas da mata, a ele interessa muito mais o desvelamento de uma realidade pouco conhecida do que um mergulho completo numa sensorialidade distinta, quase irreal, plena de sexualidade, como é o caso do cineasta tailandês.

Cinematograficamente, Alonso vai trabalhar eminentemente com os longos planos, respeitando (ou se fundindo a) o tempo do lugar – vários deles em belíssimos travellings aquáticos que acompanham Vargas enquanto ele navega pelos rios e riachos. Alonso cria uma série de planos onde o desvelamento do fora de quadro se dá de forma paciente e com autêntico encantamento - como na primeira vez que vemos o rio, partindo de um plano médio um tanto prosaico em um pescador ribeirinho, até a virada de 90 graus da câmera que nos deixa ver a totalidade da paisagem que os cerca. Mas não será apenas pelos movimentos de câmera que Alonso cria momentos de revelação de uma situação: também o faz várias vezes pelos cortes (talvez o mais belo seja aquele no qual vemos Vargas comprando uma camiseta para a filha, e no plano seguinte ele chega numa casa erma em busca de uma mulher – achamos que se trata da filha, mas no corte seguinte a mulher está aplicando sexo oral em Vargas, e descobrimos que se trata da prostituta local). O que se mantém constante, portanto, nas duas partes, é a crença do diretor na impossibilidade de totalizar a experiência de um ser humano – nunca sabemos tudo, ou mais ainda, sabemos sempre quase nada mesmo (seja de cada plano, seja daquele ambiente, seja de Vargas). Tudo o que descobrirmos será por ações, ao invés do que qualquer contextualização histórico-psicológica (quando perguntado do passado, Vargas balbucia: “já esqueci tudo, já esqueci tudo...”).

Há um momento em Los Muertos, porém, que eleva o que até então pode ser visto como apenas um exercício formal-pictórico de acompanhamento de um personagem em algo bastante mais impressionante. Estamos mais uma vez acompanhando as remadas de Vargas, agora bem próximas à margem. Já tendo passado da câmera, ele dá meia volta na canoa de forma súbita, e parte em decididas remadas até a margem, por onde a câmera já havia passado revelando apenas verde, e lá se encontra uma cabra. Tudo no mesmo longo plano, Vargas pula para fora da canoa, e procede em agarrar o animal, em seguida matando-a com uma estocada certeira no pescoço para sangrá-la até a morte. O plano todo se desenvolve com uma mistura de selvageria e naturalidade que não o torna, nem por um segundo, algo violento – pelo contrário, sua característica maior é um certo lirismo. Porque, ali, vemos finalmente Vargas em sua autêntica encarnação (já previamente adiantada quando ele busca mel numa colméia com as mãos): uma força da natureza, pura reação física ao ambiente no seu entorno. É especialmente forte a maneira como não vemos a cabra na primeira passada da câmera, e apenas Vargas parece pressenti-la – a surpresa constante que marcará o plano já se instaura ali.

Dali para a frente, enquanto nos aproximamos finalmente da chegada de Vargas à sua casa, quase tudo que é visto é enquadrado e encenado de maneira especialmente precisa: o menino em cima da árvore chupando manga; sua ida até o rio para se limpar (quando se revela Vargas chegando ao fundo); a constatação por Vargas, completamente desprovida de emotividade-clichê (como tudo no filme), de que o menino é seu neto; a caminhada até a casa, onde tanto daquela maneira de viver do local se revela pelo simples fato do menino (de não mais do que oito, nove anos) estar sozinho cuidando da casa e da irmã-bebê. Tudo isso até o plano final, onde os personagens de neto e avô se igualam quando o menino apanha com um braço a irmã e com o outro um facão (com o qual demonstra intimidade semelhante à já vista por parte do avô), e o avô brinca nas mãos com um bonequinho articulado de jogador de futebol (estranhamente anacrônico), completando seu trajeto de volta. O filme termina, então, com uma destemporialização interna neste mesmo plano, com a lenta ida da câmera para o chão de terra, onde vemos o boneco jogado e as galinhas que cruzam preguiçosamente o quadro. Já não estamos mais no presente factual onde aqueles personagens pisam, e sim na atemporalidade dos espectros onde neto e avô se fundem e viram parte de um ambiente maior que eles – e é então que se completa a outra jornada do filme, a do espectador rumo a este lugar sem tempo, sem “mundo” para além de si mesmo. Não é pouca coisa a capacidade de Alonso e seu filme de, em menos de 80 minutos, nos transportar desta maneira.

Eduardo Valente