De saída, Los Muertos
nos apresenta um enigma: aberto com um plano-sequência
que viaja por uma mata tropical fechada (ambiente um
tanto inesperado e desconhecido, em se tratando de Argentina),
passando o foco de maneira quase instintiva por entre
as árvores, o filme cria uma sensação de imersão num
espaço misterioso, onde se vêem, de passagem e perdidos
em meio às árvores (sem maiores destaques), dois corpos
jovens ensangüentados e uma mão que passa na frente
da câmera. Ao final deste plano, temos um altamente
incomum fade para o verde, que aparentemente
fecha este ciclo imersivo na natureza onipresente. Cortamos
então para a imagem de um homem deitado numa cama, o
que cria o problema: o que vimos é um sonho? Um pesadelo?
Passado? Projeção futura? Os próximos minutos não ajudarão
muito, porque se neles a câmera acompanha esta figura
de Argentino Vargas (nome do ator e do personagem, em
simbiose um tanto interessante), ainda assim levamos
quase 10 minutos de ações prosaicas e trocas de conversas
para entender finalmente que Vargas encontra-se numa
prisão, de onde logo será libertado por ter cumprido
sua pena.
Se toda esta primeira parte do filme impõe um jogo de
constante questionamento pelo espectador de cada imagem
que assiste, tentando buscar o estatuto narrativo que
as relaciona, com a saída de Vargas da cadeia tem início
uma segunda parte um tanto distinta. Nela, acompanhamos
Vargas na sua volta para casa, após sabe-se lá quantos
anos (a pena nunca é discutida, supomos apenas que é
longa). O que esta volta tem de peculiar é que Vargas
morava (e agora, quem lá mora é sua filha) embrenhado
na mata, aonde só se chega de barco (no caso, uma canoa
navegada por ele mesmo). Portanto, esta segunda parte
se assemelha muito a uma odisséia (não a de Ulisses,
mas a referência faz sentido), onde o processo que nos
cabe acompanhar é o da re-naturalização de Vargas, após
anos na cadeia, no ambiente onde supomos que sempre
viveu e foi criado. Neste trajeto, o que Lisandro Alonso
destaca é a simbiose que vai se criando entre personagem
e ambiente, entre Vargas e a mata à sua volta (e os
poucos personagens com quem cruza no caminho).
A quase divisão do filme em duas partes, sendo a segunda
na mata, inevitavelmente traz à mente os dois filmes
de Apichatpong Weerasethakul exibidos no Brasil (Eternamente
Sua e Mal dos Trópicos). Mas, se inegável
contato cinematográfico há, é importante dizer que o
registro de Alonso é bem diferente - pois ainda que
de semelhante potencial hipnótico nas cenas da mata,
a ele interessa muito mais o desvelamento de uma realidade
pouco conhecida do que um mergulho completo numa sensorialidade
distinta, quase irreal, plena de sexualidade, como é
o caso do cineasta tailandês.
Cinematograficamente, Alonso vai trabalhar eminentemente
com os longos planos, respeitando (ou se fundindo a)
o tempo do lugar – vários deles em belíssimos travellings
aquáticos que acompanham Vargas enquanto ele navega
pelos rios e riachos. Alonso cria uma série de planos
onde o desvelamento do fora de quadro se dá de forma
paciente e com autêntico encantamento - como na primeira
vez que vemos o rio, partindo de um plano médio um tanto
prosaico em um pescador ribeirinho, até a virada de
90 graus da câmera que nos deixa ver a totalidade da
paisagem que os cerca. Mas não será apenas pelos movimentos
de câmera que Alonso cria momentos de revelação de uma
situação: também o faz várias vezes pelos cortes (talvez
o mais belo seja aquele no qual vemos Vargas comprando
uma camiseta para a filha, e no plano seguinte ele chega
numa casa erma em busca de uma mulher – achamos que
se trata da filha, mas no corte seguinte a mulher está
aplicando sexo oral em Vargas, e descobrimos que se
trata da prostituta local). O que se mantém constante,
portanto, nas duas partes, é a crença do diretor na
impossibilidade de totalizar a experiência de um ser
humano – nunca sabemos tudo, ou mais ainda, sabemos
sempre quase nada mesmo (seja de cada plano, seja daquele
ambiente, seja de Vargas). Tudo o que descobrirmos será
por ações, ao invés do que qualquer contextualização
histórico-psicológica (quando perguntado do passado,
Vargas balbucia: “já esqueci tudo, já esqueci tudo...”).
Há um momento em Los Muertos, porém, que eleva
o que até então pode ser visto como apenas um exercício
formal-pictórico de acompanhamento de um personagem
em algo bastante mais impressionante. Estamos mais uma
vez acompanhando as remadas de Vargas, agora bem próximas
à margem. Já tendo passado da câmera, ele dá meia volta
na canoa de forma súbita, e parte em decididas remadas
até a margem, por onde a câmera já havia passado revelando
apenas verde, e lá se encontra uma cabra. Tudo no mesmo
longo plano, Vargas pula para fora da canoa, e procede
em agarrar o animal, em seguida matando-a com uma estocada
certeira no pescoço para sangrá-la até a morte. O plano
todo se desenvolve com uma mistura de selvageria e naturalidade
que não o torna, nem por um segundo, algo violento –
pelo contrário, sua característica maior é um certo
lirismo. Porque, ali, vemos finalmente Vargas em sua
autêntica encarnação (já previamente adiantada quando
ele busca mel numa colméia com as mãos): uma força da
natureza, pura reação física ao ambiente no seu entorno.
É especialmente forte a maneira como não vemos a cabra
na primeira passada da câmera, e apenas Vargas parece
pressenti-la – a surpresa constante que marcará o plano
já se instaura ali.
Dali para a frente, enquanto nos aproximamos finalmente
da chegada de Vargas à sua casa, quase tudo que é visto
é enquadrado e encenado de maneira especialmente precisa:
o menino em cima da árvore chupando manga; sua ida até
o rio para se limpar (quando se revela Vargas chegando
ao fundo); a constatação por Vargas, completamente desprovida
de emotividade-clichê (como tudo no filme), de que o
menino é seu neto; a caminhada até a casa, onde tanto
daquela maneira de viver do local se revela pelo simples
fato do menino (de não mais do que oito, nove anos)
estar sozinho cuidando da casa e da irmã-bebê. Tudo
isso até o plano final, onde os personagens de neto
e avô se igualam quando o menino apanha com um braço
a irmã e com o outro um facão (com o qual demonstra
intimidade semelhante à já vista por parte do avô),
e o avô brinca nas mãos com um bonequinho articulado
de jogador de futebol (estranhamente anacrônico), completando
seu trajeto de volta. O filme termina, então, com uma
destemporialização interna neste mesmo plano, com a
lenta ida da câmera para o chão de terra, onde vemos
o boneco jogado e as galinhas que cruzam preguiçosamente
o quadro. Já não estamos mais no presente factual onde
aqueles personagens pisam, e sim na atemporalidade dos
espectros onde neto e avô se fundem e viram parte de
um ambiente maior que eles – e é então que se completa
a outra jornada do filme, a do espectador rumo a este
lugar sem tempo, sem “mundo” para além de si mesmo.
Não é pouca coisa a capacidade de Alonso e seu filme
de, em menos de 80 minutos, nos transportar desta maneira.
Eduardo Valente
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