ABBAS KIAROSTAMI, de Youssef Ishaghpour

A presença-ausência em Kiarostami

O termo empregado acima não é uma senha para uma análise heideggeriana da obra de Abbas Kiarostami, mas um empréstimo de sua utilização por Youssef Ishaghpour (1). Ele propõe uma abordagem centrada na materialidade metafísica, na qual a revelação da superfície das coisas remete a uma transcendência dessas coisas. Como se o objeto revelado fosse a presença divina, com sua harmonia de formas, às quais as imagem restituem uma virgindade perdida (ou nunca percebida), despida de preconceitos - revelando um mundo, como escreveu Andre Bazin, que não sabemos nem podemos ver, um retorno às coisas em si mesmas, sem a modelagem da pré-concepção.

O início do ensaio de Ishaghpour é centrado na atividade fotográfica do cineasta. O autor a encara como uma forma do artista partilhar do sagrado de que o homem se desvencilhou e, na contemplação da beleza e do sublime, revelar a finitude desse homem em contaste com o eterno do objeto. Essa revelação exige uma cultura superior e a capacidade de abstração, um apagamento de si mesmo, para assim tornar visível o mistério das coisas, por meio de uma presença-ausência do fotógrafo, dando ao invisível a chance de se deixar ver por meio do recolhimento do olhar. As fotos de Kiarostami teriam essa qualidade. São sóbrias, sem ênfase, sem vontade de expressão, sem efeitos do pitoresco e do bizarro. Isso só é possível com a ascese do fotógrafo, que constrói um olhar neutro, de não intervenção na natureza. O fotógrafo seleciona o que enquadrar no visor, a distância entre seu olhar e o objeto, a contextualização desse objeto no espaço e, por meio dessa operação, torna visível o fora do quadro, como se este ecoasse pelo enquadramento.

Já no cinema é preciso preparar o espaço para se criar, a partir do falso, a verdade não encontrada sem a presença da câmera. Os eventos reais, como os de Close Up e A Vida Continua, por exemplo, só existem a partir da intervenção do aparelho: essa intervenção atua sobre a realidade e a transforma. O julgamento de Sabzian em Close Up poderia ter rumo diferente se não fosse filmado, assim como as manipulações do diretor na filmagem e na montagem também podem ter ajudado o réu a pegar uma pena mais suave. No entanto, embora tenha soluções de auto-refencialidade em suas obras (Gosto de Cereja, sobretudo, na cena final), Kiarostami não busca a metalinguagem: ele persegue o simples ofuscado pela aparência, mas encontra esse simples na própria aparência. Toda a questão passa a ser então de como registrar a aparência, de como reconstrui-la, para encontrar o simples lá já presente - mas invisível sem um enquadramento a diferenciá-lo de outras imagens. Seleção é a palavra.

Ishaghpour comemora a não filiação de Kiarostami à reflexividade do cinema moderno, recusando a oposição entre o ser e sua aparência, abrindo mão da deformação da imagem para se chegar à sua verdade. A criação artística consuma a plenitude da realidade por meio da reprodução da própria realidade. Sem a reprodução, não haveria plenitude, pois não haveria recorte, reposição. Isso explicaria sua ruptura com o neorealismo zavattiniano e sua falta de pudor em resignificar o material produzido pela câmera na pós-produção. A vida regressa a si mesmo por intermédio do cinema. Kiarostami reflete sobre essa operação ao ver antagonismo entre o documentário jornalístico, que puxa as coisas para si sem devolvê-las ao mundo, e um “cinema atento”, que restitui a beleza das coisas pela encenação. O ensaísta cita aqui, com pertinência, Walter Benjamim (“Livre do aparelho que lhe acrescenta, a realidade tornou-se artificial.....”).

Kiarostami afirma que, nos momentos “reais” de seus filmes, gostaria de quebrar a ilusão (com duas setinhas piscando no canto da tela). Tem a preocupação de assumir a farsa, de não negar o aspecto de recriação, de esvaziar a impressão de câmera escondida (que em nada interfere), mas sem cair na metalinguagem, pelo contrário, afirmando o real reconstituído. O ensaísta nos lembra que, se na tradição mimética a organização dos eventos, por meio de uma história, exprime o sentido do mundo através de eventos-sínteses desse sentido, em Kiarostami o evento permanece singular, sem síntese entre o fenômeno e a idéia, sem leitura do fenômeno, sem encará-lo como reflexo de algo além dele, devolvendo dessa forma ao fenômeno a sua fenomenalidade. Cria-se assim o sentimento de um mundo em si, irredutível, com uma imagem cuja única tarefa é reproduzir o que está diante da câmera sem lhe colar legendas interpretativas, sem vontade de significar.

Ishaghpour contextualiza o cineasta no audiovisual iraniano. Se o país tinha um cinema independente, na paralela da vulgaridade e obscenidade do cinema standart do período dos Xá, esses indies eram considerados decalcados do Ocidente, sem nenhuma alteridade. Com a Revolução Islâmica, o cinema se auto-interroga, extravasa inquietação consigo próprio. Kiarostami, como começamos a conhecê-lo (a partir de Onde Está a Casa de Meu Amigo?), insere-se nesse processo crítico, de expor os limites e potencialidades da forma. Para os ocidentais, segundo o ensaísta, há novidade nessa obra. Kiarostami atenderia uma demana por uma recusa da modernidade, despida de dimensão histórico-cultural, mas também do niilismo, que celebra a felicidade simples e do presente, reagindo assim ao colapso dos discursos ideológicos por meio de uma revelação de um modo de vido antigo e virgem de imagem.  O cineasta criaria um corte no cinema moderno, às voltas com sua impossibilidade, afixiado pela história do cinema, que tanto é sua motivação como sua morte em vida.

A acolhida mundial de Kiarostami, para Ishaghapour, se dá pela desvinculação eventos-História (a do mundo onde situa a ação e a do cinema). Isso só é possível porque o cineasta ignoraria a genealogia cinematográfica, como espectador e diretor, e consequentemente se posicionaria como órfão na família do audiovisual. Por não ter sido rato de cinemateca, base da modernidade do cinema, teria mais liberdade, pois não se impõe deveres históricos-estéticos. Isso explicaria seu frescor, sua novidade. O ensaísta vale-se de uma frase de Kiarostami para legitimar sua hipótese: “Jamais vi um filme mais de uma vez, de modo que não fui influenciado por nenhum cinasta” (2). Sua dívida seria com as artes gráficas, com a publicidade e com a fotogafias, atividades a qual se dedicou. Sua formação é modelada pelas experiências diretas, por seu artesanato, não pelas horas passadas diante da tela. Seria fruto de si mesmo.

No entanto, como o próprio Kiarostami já afirmou , seu interesse pelo cinema, ainda na juventude, começou com os neo-realistas, justamente porque filmavam o mundo onde viviam, a gente simples, a poesia dos eventos cotidianos. Interesse depois ampliado por outros filmes italianos, em especial os de Fellini, com destaque para La Strada, um dos filmes de “cabeceira” do diretor, justamente por retrabalhar o real em uma chave de cinema essencialmente (“Uma realidade filmada pelo cinema é sobretudo uma realidade de cinema” – Jean Mitry). Também o programa de recusa da narrativa convencional pelo diretor só é possível como reação ao próprio cinema – do qual tem conhecimento. Portanto, Kiarostami escolheu, sim, sua família audiovisual - ou ao menos escolheu não pertencer a certas famílias. E isso o permitiu combinar as tradições fundadoras da representação, a egípcia (poética) e a grega (mimética), isso em uma cultura sem referências realistas e visuais. Um cinema da intersecção de sedimentos milenares, que assim renova a própria modernidade da mais nova das artes.

Kiarostami por Kiarostami

O programado e o imprevisto. Esses são os dois sustentáculoas do cinema de Kiarostami. Percebe-se por seus relatos sobre a realização de cada filme (3) o quanto de programado há em seu cinema, e como a impressão de improviso é apenas fruto de uma operação ficcional. O cineasta é minucioso e perfecionista, capaz de passar um dia inteiro à espera da luz certa para uma cena curta. Também não mede esforços, como construir os caminhos percorridos a pé em Onde Está Casa de Seu Amigo? e de carro em Gosto de Cereja, para erguer a ficção. Por outro lado, a filmagem não se torna, por conta dessa programação e consciência sobre o material buscado, mera ilustração do roteiro, pelo contrário: é o momento no qual o que foi previsto é remodelado pelos acontecimentos e pelos atores amadores, sobretudo, com suas expressões e sua musicalidade verbal autênticas. Tanto é verdade que, antes de rodar Gosto de Cereja, Kiarostami abandonou um projeto, Os Sonhos de Tahereh (a versão pela ótica feminina de Através das Oliveiras) porque tinha certezas demais sobre o filme. Planejar sem matar as dúvidas e o incerto é a condição de seu cinema

Nesse texto autobiográfico, publicado em Abbas Kiarostami, ele detalha as motivações de cada filme, os métodos de realização, as anedotas de bastidores, a experiência na publicidade e a relação com os filmes de formação – neorealistas, e italianos em geral, no primeiro plano. Há ainda muitas passagens sobre o Kanum (Instituto para o Desenvolvimento Intelectual das Crianças), fundado em 1965, mas no qual o cineasta entrou em 1969 depois de ter desistido de suas pretensões pictóricas e de viver a experiência como funcionário do departamento de trânsito de Teerã. Kiarostami elege o período 69-79 como a fase dourada do Kanum, com filmes reflexivos e até engajados, de obras para crianças e outras sobre crianças (mas para adultos). Destaca principalmente O Recreio (1972), o mais experimental de seus trabalhos, segundo sua visão, sem diálogos e com “ausência de encenação”. Também chama a atenção para Traje de Casamento (1976), o primeiro ambientado na cidade e, conforme diz, início de suas experiências no campo sonoro.

Já sobre a fase pós-Revolução Islâmica, com todos os limites e desconfianças do regime dos aiatolás, o cineasta vê como positivos todos os obstáculos, entre os quais os quatros anos de interrupção da produção audiovisual (de 1979 a 1983), pois levaram os cineastas a uma reflexão sobre a atividade. Onde Fica a Casa do Meu Amigo ?(1987), por ter dado ao autor o primeiro prêmio no Ocidente (Leopardo de Bronze em Locarno), tem importância estratégica em sua filmografia. É no comentário sobre sua forma de dirigir o ator-mirim desse filme que o diretor revela uma de suas “patifarias” (termo empregado por ele, salvo engano da tradução - do farsi para o italiano e deste para o português). Para arrancar lágrimas do protagonista, teve de lhe pregar uma peça, punitiva, e pôs a câmera para rodar, em variação do que teria feito Vittorio De Sicca em Ladrões de Bicicleta.

A melhor passagem é sobre Close Up: a técnica de obtenção de verossimilhança com manipulação para se conseguir efeito de realidade é desnudada. E torna-se ainda mais fascinante por conta dos próprios eventos do filme – o processo judicial contra Sabzian, o rapaz julgado por se passar por Mohnsen Makhmalbaff. Vejamos:

“Havia certas idéias próprias de Sabzian, porém inconscientes e que era preciso fazer emergir pelos diálogos. Em alguns casos, para ater-se à verdade, é necessário trair a realidade. Assim, durante as pautas do processo, eu falava com o juiz e com o acusado para explicar o que pretendia. Um processo dura apenas uma hora, enquanto esse durou 10 horas”

Havia três câmeras no tribunal. Uma quebrou. A outra teve de ser desligada por conta do barulho. Com uma única câmera, deslocava-se de um lado para outro. Após uma hora de processo, insatisfeito com as tomadas do rosto de Sabzian, filmou o réu por nove horas.

“Foi ai que nasceu uma das maiores mentiras que já contei na vida, visto que grande parte do processo foi reconstruída sem a presença do juiz. Ao inserir já na sala de montagem alguns enquadramentos deste, dava a entender que ele estava sempre presente, embora não estivesse. Não sei se o juiz foi ver o filme. Caso tenha ido, não deve ter ficado descontente com seu papel. Provavelmente foi o melhor veredito que pronunciou em toda sua vida”

Kiarostami fala com paixão de Sabzian. Admira-o por sua habilidade para criar belas mentiras, prefere suas mentiras à verdade dos outros, pois elas refletem sua interioridade melhor que as verdades de terceiros sobre ele. Nos momentos finais, quando Makhamalbaf encontra o protagonista, Kiarostami tira o som. Vemos os dois, não os ouvimos. A cena tinha som: o diretor decidiu tirar e dar a impressão de falha. Kiarostami afirma que Sabzian não sabia da câmera, ignorava que o filmavam. Já segundo o próprio Makhmalbaf, em depoimento publicado no livro de Jean-Claude Bernadet, tudo havia sido ensaiado - Sabzian sabia, então, da câmera.

Outra curiosidade sobre o filme, segundo Kiarostami, diz respeito a estrutura. A versão conhecida no Ocidente, diz, foi obra de um projecionista – o de um festival em Mônaco. Ele teria trocado os rolos e a cena do ônibus, do encontro de Sabzian com a mulher da família Ahankan (cena essa fundadora da mentira do protagonista) saiu do começo para o meio da narrativa.

O falseamento da verdade para se alcançar a verdade da arte também é tema de seu depoimento sobre E a Vida Continua (lançado no Brasil como A Vida e Nada Mais). Kiarostami viajou com o filho atrás das crianças de Onde Está Casa de Meu Amigo?, pois queria saber se elas tinham sobrevivido a um colossal terremoto. Partiu dois dias após a catástrofe. A experiência o motivou a refazer a viagem, cinco meses depois, agora reencenando situações testemunhadas, com um ator em seu papel, mas sem ter seu nome.

Em seu comentário sobre Gosto de Cereja, o cineasta revela a obsessão pelos movimentos circulares, do giro como forma de não ir a lugar algum, do estar em deslocamento para nada. Também esclarece o uso da cena final, captada em vídeo, que não foi pensada originalmente como tal. Ele havia filmado em película a cena, mas o material estragou na revelação - a solução era esperar mais um ano para se conseguir a mesma luz, da mesma estação, ou empregar as imagens de uma câmera de vídeo, que filmava os bastidores da filmagem. Assim nasceu o desfecho, dos mais analisados dos últimos anos, com toda sorte de interpretações.

Já em relação a Dez, ele destaca a escolha das mulheres como protagonistas, primeira vez em seu cinema. Compara o filme com O Círculo, de Panahi, dizendo que o seu, em relação ao Irã de hoje, é mais fiel à realidade, pois são mulheres livres e não prostitutas. Isso não significa que seja um filme documental (“As mulheres dos filmes iranianos são mulheres do cinema iraniano”). As filmagens aconteceram uma vez por semana, de acordo com a disponibilidade dos atores. Ele afirma que provoca os imprevistos, que nenhuma das atrizes sabia do texto da outra. Se a protagonista tinha um fone escondido sob o véu, ouvindo as orientações do diretor, as interlocutoras telas reagiam a seu estimulo. Kiarostami considera este o seu filme mais simples, aquele no qual tenta apagar a figura do diretor de modo a se tornar um preparador, não um condutor de cenas.

“Simplicidade não é sinônimo de felicidade. Demorei sessenta anos para ousar um filme como esse”, conclui.

Cléber Eduardo

(1) Youssef Ishaghpour tem formação em sociologia da arte e currículo composto de textos sobre Visconti, Godard e Ozu. O texto do livro faz parte um tríptico sobre a cultura persa e foi originalmente editado pela Frago Editeurs (Le Reél, Face et Pile – Le Cinema d´Abbas Kiarostami, 2001), seguido de um ensaio sobre seu ensaio.

(2) Frase retirada da entrevista publicada em Abbas Kiarostami (Paris, Les Editions de l´Étoile/Cahiers du Cinema, 1997).

(3) Os textos em primeira pessoa publicados na edição são frutos de entrevistas para Alberto Barbera e Elisa Resegotti, curadores da exposição Sulle Strade di Kiarostami, realizada no Museu Nacional de Cinema de Turim, em 2003, e complementadas por outras conversas com o cineasta.