CAMINHOS PARA KOKTEBEL
Boris Khlebnikov e Alexey Popogrebsky, Koktebel, Rússia, 2003

Se este Koktebel fosse lançado em dois anos, seria acusado facilmente de plágio, tamanhas as semelhanças com O Retorno - o filme russo que ganhou o Leão de Ouro em Veneza em 2003. No entanto, não só são filmes do mesmo ano (o que torna as coincidências temáticas e de tratamento quase um caso a ser estudado de tão impressionantes), como fica uma constatação após ver os dois: antes a fama e a fortuna de um grande prêmio tivesse chegado para este pequeno trabalho dos dois cineastas estreantes, em muito superior ao filme de Andrey Zvyagintsev. O primeiro plano do filme já instaura um mistério no olhar sobre o mundo, pela via da mise-en-scène mesmo: demoramos para entender exatamente o que vemos (um túnel que sai de uma montanha) e, no longo plano, só o tempo mostra o verdadeiro assunto do enquadramento, e do filme em si – pai e filho que emergem de dentro do túnel. Este tipo de calma e de atenção aos detalhes ao colocar em cena é exatamente o que Koktebel terá de melhor.

Neste sentido é especialmente forte a meia hora inicial, com a viagem de trem dos dois personagens e sua primeira parada, numa estação de beira de estrada, onde tanto a relação do pai com o responsável pelo local, quanto (principalmente) a do filho com a filha deste, chamam a atenção pelo trabalho muito sutil e atento a detalhes da direção e dos atores. Cada plano parece contar uma nova história, sem nos tentar afogar com psicologismos e sim nos dando tempo de convívio com os personagens na tela. Há muita beleza em vários destes momentos (como na imagem de um radinho micro-system no exterior de um banheiro-externo, que só se entende na duração completa do plano; ou na belíssima decisão de não nos deixar ouvir o primeiro contato entre o menino e a jovem) - tudo culminando com a bela sacada que é o plano aéreo que representa um suposto “dom sobrenatural” do menino, mas que nunca entendemos exatamente o que é.

Nesta introdução do filme, tudo parece funcionar, e durante mais um tempo (até a briga entre o pai e o dono de uma casa abandonada de beira de estrada), o filme flui com enorme interesse. Daí em diante, é inegável que há uma certa quebra de ritmo e algumas das opções dos diretores começam a parecer eventualmente esquemáticas. A personagem da mulher que os “adota”, por exemplo, parece ainda não de todo bem trabalhada – mesmo tendo alguns belos momentos como o da tentativa de pendurar as cuecas do menino. Fecha esta parte do filme uma impressionante sequência de exploração da linguagem, com o garoto tirando fotos com uma câmera sem filme, onde fica marcado o desejo do registro instantâneo da realidade, mas também a impossibilidade da captura eterna destes momentos fugidios.

Daí em diante, mesmo quando o menino abandona o pai e parte para a estrada sozinho, os cineastas nunca caem no tipo de patologização que Zvyagintsev tanto exercita em O Retorno – aqui, se pai e filho não chegam a se entender, é mais por uma completa falta de intimidade do que por uma questão de tornar as relações humanas um circo de horror traumático. Recusa-se seguidamente um discurso da piedade em relação ao garoto, e isso é bem mais que apenas uma pequena qualidade. Se, ao final, há aqui também uma leitura clara e um tanto banal no registro do rito de passagem (marcada pela forte sequência do encontro com a gaivota, no final), há ainda a possibilidade, senão de uma conciliação totalizante, ao menos de um convívio. E Koktebel se fecha talvez não como um filme absolutamente marcante sobre o tema já tão explorado das relações pai e filho, mas certamente como uma estréia de dois cineastas que vale a pena acompanhar no processo de maturação de seu cinema.

Eduardo Valente