O primeiro fator que chama a
atenção em Kill Bill: Vol. 2 é
que a sua meia-hora inicial, comparada ao filme precedente,
é quase digna de um still movie. Em nada
gratuita é a lembrança do Jim Jarmusch
de Ghost Dog e Dead Man – e não
é preciso muito mais que o título para
que Kill Bill: Vol. 2 se coloque à procura
de um "homem morto" –: pelo clima modorrento
do início, pela enganadora vacuidade das situações,
pela amalgamação de signos aparentemente
tão díspares operada por Tarantino. Se
antes o espectador havia sido jogado no cerne da ação
desde o primeiro minuto, e assim se mantivera até
o final, este segundo filme começa com um tempo
de descanso (o que resta a fazer, afinal, depois daquela
seqüência antológica que envolve desde
o confronto da Noiva com o exército Crazy 88
até o duelo no jardim japonês?). Tempo
de sesta que é também usado para encenar
algumas outras historinhas que haviam ficado mal-contadas.
Kill Bill: Vol. 2 é mais cadenciado, o
que a própria trilha sonora original composta
por Robert Rodriguez (cujo cinema aparece ecoado vez
ou outra neste filme) corrobora em vários momentos
através de melodias calmas e siderantes, que
se substituem às canções pop do
Vol. 1 (o tema de "Bang Bang", de Nancy
Sinatra, é trazido em versão instrumental).
O clima de "era uma vez", que perpassa todo
o filme, rende a citação explícita
– na cena ao redor da fogueira, quando Bill começa
a falar do mestre Pai Mei com "Era uma vez na China..."
– a Once Upon a Time in China, de Tsui Hark,
e se justifica num fator muito simples: o ponto de chegada
da jornada de Beatrix Kiddo (a Noiva agora possui nome
próprio), mesmo que ela não saiba, é
sua filha, a quem o filme, àquela altura já
quase completo, é entregue como uma bedtime
story.
No fundo, e já no primeiro volume isso ficava
bastante nítido, há algo de extremamente
lúdico na violência de Kill Bill:
brutalidade e comicidade estão separadas por
fronteiras móveis, que podem subitamente coadunar
o espaço de uma no da outra, e um jato de sangue
que jorra sem parar de um corpo decaptado se faz irresistivelmente
cômico. As figuras de violência criadas
por Tarantino possuem o exagero das histórias
infantis (Uma Thurman arrancando e esmagando o olho
de Daryl Hannah não é mais grotesco do
que o Lobo Mau comendo a Vovozinha), e agora sabemos
o porquê. Mas não é por ser filha
de dois matadores que aquela menininha ouve histórias
violentas antes de dormir, isto não é
um privilégio dela – ainda que o filme demarque
esse aspecto singular do contato íntimo que ela
tem com o universo da violência, seja pela biografia
dos pais, seja pelo filme de ninja a que assiste corriqueiramente.
Muitas das histórias que ouvimos na infância
estão entranhadas dessa violência, e Tarantino
apenas lhes concede agora sua versão. É
sem dúvida alguma por amar os universos escancaradamente
ficcionais e, talvez seja desnecessário dizer,
por amar o cinema de ações puras e significados
diretos (do que os filmes de kung fu são o melhor
exemplo) que Tarantino realizou esse filme, acreditando
também na força intrínseca a qualquer
entrega irrestrita e cega. A disciplina de aço
exigida pelas artes marciais, as regras de fingimento
levadas à mais firme seriedade pela criança
que brinca de atirar, a matadora que poupa a vítima
porque esta acabou de se descobrir grávida, a
mulher que decide forjar nova identidade e mudar de
mundo só para proteger o bebê que está
a caminho: tudo isso é uma opção,
e uma entrega, também do coração.
O golpe de Beatrix que atinge o coração de Bill nos
"cinco pontos mortais" é silencioso, seco, praticamente
a digitação de uma senha - e em se tratando de um filme-videogame,
a única forma de zerar o jogo é mesmo através de um
"macete". Antes eles haviam dialogado longamente, como
de praxe neste filme que faz de cada frase e de cada
campo-contracampo uma entusiasmante matéria de
mise en scène. Não há no
Vol. 2, por exemplo, um plano-seqüência
tour de force como aquele que radiografa e (literalmente)
desmonta o espaço durante o show do The 5, 6,
7, 8’s, logo antes da Noiva enfrentar o exército
de lutadores japoneses. A decupagem de Kill Bill:
Vol. 2 encontra planos-detalhe onde menos podemos
esperar, chamando nosso olhar para um ponto específico
do espaço sem que aquilo necessariamente represente
um artifício dramático (como seria na
decupagem clássica e na transparência narrativa,
em que o destacamento de um objeto em meio aos outros
significa uma ação importante a ele segredada
pela câmera). A sucessão de diferentes
procedimentos fotográficos é por vezes
de difícil compreensão (como na estranha
granulação e na perceptível mudança
de cor da cena em que Bill deixa Beatrix na casa de
Pai Mei), e inclui imagens das mais inusitadas: o formato
cinemascope reduzindo para 1:1.33 (primeiro formato
do cinema) na cena em que ela fica confinada na mala
do carro; a imagem retornando em preto e branco depois
da enorme tela escura quando ela é enterrada
viva por Budd (Michael Madsen) e praticamente só
nos resta o som (não um cinema mudo, mas um cinema
cego); o split screen que divide a tela quando
Beatrix e Elle duelam com espadas. O flashback em meio
à situação adversa, que mostra
como Beatrix exercitou suas habilidades guiada pelo
mestre Pai Mei (artifício narrativo tão
vagabundo quanto o do clímax de um filme como
O Grande Dragão Branco), é a cena
de tirada de chapeú definitiva para Chang Cheh
(principal influência do filme, segundo Tarantino).
Os vasos que comunicam Tarantino ao "universo do
cinema", naturalmente, estão também
presentes em Kill Bill: Vol. 2.
O processo violento, que até então dera
poucas tréguas, é momentaneamente adormecido
quando Beatrix chega à casa de Bill, pois é
preciso que o filme deixe aflorar uma motivação
que estivera oculta. A dívida se torna crédito.
O que era vingança se torna resgate. A força
das ações de Beatrix emanam de uma fonte
que ela mesma desconhecia. O desfecho de Kill Bill
revela um tremendo elogio ao amor materno.
A luta com Vernita Green, que termina com a Noiva assumindo
para a filha da oponente recém abatida a legitimidade
de um futuro acerto de contas, não por acaso
havia sido o golpe inaugural da saga, invertendo mesmo
a ordem "natural" das coisas na diegese (O-Ren
Ishii fora morta antes de Vernita, como de início
já se mostra através da listinha com seu
nome cortado). Nessa irreprimível ligação
entre mãe e filha está a coluna vertebral
do filme. Beatrix abraçada à filha vendo
televisão, com o quarto à meia-luz e uma
alternância de cores incidindo artificialmente
sobre elas de forma quase onírica (para Beatrix,
naquele momento, tudo é mesmo como num sonho),
é a cena em cuja contenção e candura
ninguém apostaria depois do Vol. 1, e
que torna Kill Bill uma obra ainda maior.
O fato é que já não restava dúvida,
depois da obra-prima Jackie Brown, de que Tarantino
– e é incrível que essa parte de seu repertório
seja pouco comentada – elabora um modo sempre singular
de filmar os sentimentos que um ser humano consegue
despertar no outro simplesmente ao aparecer, ao dar-se
a ver a este outro. Ao final de Jackie Brown,
depois de Pam Grier deixar a marca de seu batom sobre
a boca de Robert Forster e ir embora, a imagem inconsolável
dele se distanciando até abandoar a área
de foco da câmera é de uma beleza absurda,
além de revelar um domínio de mise
en scène que extrapola em muito a idéia
de um cineasta que aprendeu com a cultura da cinefilia
e, portanto, vangloria o maneirismo e a forma acima
de todas as coisas. Idem para a cena em que Beatrix
vê a filha pela primeira vez. Embora as conquistas
formais de Tarantino sejam inegáveis, há
nele uma forte sensibilidade e uma maneira de lidar
com a emoção gerada pelos mecanismos específicos
do cinema (o que inclui, sim, a música) cujo
paralelo hoje reside em cineastas como Sofia Coppola
e Wes Anderson.
Kill Bill é um daqueles desenhos que fazemos
na infância, aqueles em que distorcemos formas,
exageramos volumes, damos excessivo destaque a detalhes
que somente aos olhos de uma criança podem causar
fixação. Um desenho que Tarantino recupera
e colore com mãos de mestre, e no qual podemos
sempre ver que estão gravadas, em algum lugar
próximo da moldura, as inicias Q & U. Belo
casamento.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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