KILL BILL - VOLUME 2
Quentin Tarantino, Kill Bill vol. 2, EUA, 2004

O primeiro fator que chama a atenção em Kill Bill: Vol. 2 é que a sua meia-hora inicial, comparada ao filme precedente, é quase digna de um still movie. Em nada gratuita é a lembrança do Jim Jarmusch de Ghost Dog e Dead Man – e não é preciso muito mais que o título para que Kill Bill: Vol. 2 se coloque à procura de um "homem morto" –: pelo clima modorrento do início, pela enganadora vacuidade das situações, pela amalgamação de signos aparentemente tão díspares operada por Tarantino. Se antes o espectador havia sido jogado no cerne da ação desde o primeiro minuto, e assim se mantivera até o final, este segundo filme começa com um tempo de descanso (o que resta a fazer, afinal, depois daquela seqüência antológica que envolve desde o confronto da Noiva com o exército Crazy 88 até o duelo no jardim japonês?). Tempo de sesta que é também usado para encenar algumas outras historinhas que haviam ficado mal-contadas.

Kill Bill: Vol. 2 é mais cadenciado, o que a própria trilha sonora original composta por Robert Rodriguez (cujo cinema aparece ecoado vez ou outra neste filme) corrobora em vários momentos através de melodias calmas e siderantes, que se substituem às canções pop do Vol. 1 (o tema de "Bang Bang", de Nancy Sinatra, é trazido em versão instrumental). O clima de "era uma vez", que perpassa todo o filme, rende a citação explícita – na cena ao redor da fogueira, quando Bill começa a falar do mestre Pai Mei com "Era uma vez na China..." – a Once Upon a Time in China, de Tsui Hark, e se justifica num fator muito simples: o ponto de chegada da jornada de Beatrix Kiddo (a Noiva agora possui nome próprio), mesmo que ela não saiba, é sua filha, a quem o filme, àquela altura já quase completo, é entregue como uma bedtime story.

No fundo, e já no primeiro volume isso ficava bastante nítido, há algo de extremamente lúdico na violência de Kill Bill: brutalidade e comicidade estão separadas por fronteiras móveis, que podem subitamente coadunar o espaço de uma no da outra, e um jato de sangue que jorra sem parar de um corpo decaptado se faz irresistivelmente cômico. As figuras de violência criadas por Tarantino possuem o exagero das histórias infantis (Uma Thurman arrancando e esmagando o olho de Daryl Hannah não é mais grotesco do que o Lobo Mau comendo a Vovozinha), e agora sabemos o porquê. Mas não é por ser filha de dois matadores que aquela menininha ouve histórias violentas antes de dormir, isto não é um privilégio dela – ainda que o filme demarque esse aspecto singular do contato íntimo que ela tem com o universo da violência, seja pela biografia dos pais, seja pelo filme de ninja a que assiste corriqueiramente. Muitas das histórias que ouvimos na infância estão entranhadas dessa violência, e Tarantino apenas lhes concede agora sua versão. É sem dúvida alguma por amar os universos escancaradamente ficcionais e, talvez seja desnecessário dizer, por amar o cinema de ações puras e significados diretos (do que os filmes de kung fu são o melhor exemplo) que Tarantino realizou esse filme, acreditando também na força intrínseca a qualquer entrega irrestrita e cega. A disciplina de aço exigida pelas artes marciais, as regras de fingimento levadas à mais firme seriedade pela criança que brinca de atirar, a matadora que poupa a vítima porque esta acabou de se descobrir grávida, a mulher que decide forjar nova identidade e mudar de mundo só para proteger o bebê que está a caminho: tudo isso é uma opção, e uma entrega, também do coração.

O golpe de Beatrix que atinge o coração de Bill nos "cinco pontos mortais" é silencioso, seco, praticamente a digitação de uma senha - e em se tratando de um filme-videogame, a única forma de zerar o jogo é mesmo através de um "macete". Antes eles haviam dialogado longamente, como de praxe neste filme que faz de cada frase e de cada campo-contracampo uma entusiasmante matéria de mise en scène. Não há no Vol. 2, por exemplo, um plano-seqüência tour de force como aquele que radiografa e (literalmente) desmonta o espaço durante o show do The 5, 6, 7, 8’s, logo antes da Noiva enfrentar o exército de lutadores japoneses. A decupagem de Kill Bill: Vol. 2 encontra planos-detalhe onde menos podemos esperar, chamando nosso olhar para um ponto específico do espaço sem que aquilo necessariamente represente um artifício dramático (como seria na decupagem clássica e na transparência narrativa, em que o destacamento de um objeto em meio aos outros significa uma ação importante a ele segredada pela câmera). A sucessão de diferentes procedimentos fotográficos é por vezes de difícil compreensão (como na estranha granulação e na perceptível mudança de cor da cena em que Bill deixa Beatrix na casa de Pai Mei), e inclui imagens das mais inusitadas: o formato cinemascope reduzindo para 1:1.33 (primeiro formato do cinema) na cena em que ela fica confinada na mala do carro; a imagem retornando em preto e branco depois da enorme tela escura quando ela é enterrada viva por Budd (Michael Madsen) e praticamente só nos resta o som (não um cinema mudo, mas um cinema cego); o split screen que divide a tela quando Beatrix e Elle duelam com espadas. O flashback em meio à situação adversa, que mostra como Beatrix exercitou suas habilidades guiada pelo mestre Pai Mei (artifício narrativo tão vagabundo quanto o do clímax de um filme como O Grande Dragão Branco), é a cena de tirada de chapeú definitiva para Chang Cheh (principal influência do filme, segundo Tarantino). Os vasos que comunicam Tarantino ao "universo do cinema", naturalmente, estão também presentes em Kill Bill: Vol. 2.

O processo violento, que até então dera poucas tréguas, é momentaneamente adormecido quando Beatrix chega à casa de Bill, pois é preciso que o filme deixe aflorar uma motivação que estivera oculta. A dívida se torna crédito. O que era vingança se torna resgate. A força das ações de Beatrix emanam de uma fonte que ela mesma desconhecia. O desfecho de Kill Bill revela um tremendo elogio ao amor materno. A luta com Vernita Green, que termina com a Noiva assumindo para a filha da oponente recém abatida a legitimidade de um futuro acerto de contas, não por acaso havia sido o golpe inaugural da saga, invertendo mesmo a ordem "natural" das coisas na diegese (O-Ren Ishii fora morta antes de Vernita, como de início já se mostra através da listinha com seu nome cortado). Nessa irreprimível ligação entre mãe e filha está a coluna vertebral do filme. Beatrix abraçada à filha vendo televisão, com o quarto à meia-luz e uma alternância de cores incidindo artificialmente sobre elas de forma quase onírica (para Beatrix, naquele momento, tudo é mesmo como num sonho), é a cena em cuja contenção e candura ninguém apostaria depois do Vol. 1, e que torna Kill Bill uma obra ainda maior.

O fato é que já não restava dúvida, depois da obra-prima Jackie Brown, de que Tarantino – e é incrível que essa parte de seu repertório seja pouco comentada – elabora um modo sempre singular de filmar os sentimentos que um ser humano consegue despertar no outro simplesmente ao aparecer, ao dar-se a ver a este outro. Ao final de Jackie Brown, depois de Pam Grier deixar a marca de seu batom sobre a boca de Robert Forster e ir embora, a imagem inconsolável dele se distanciando até abandoar a área de foco da câmera é de uma beleza absurda, além de revelar um domínio de mise en scène que extrapola em muito a idéia de um cineasta que aprendeu com a cultura da cinefilia e, portanto, vangloria o maneirismo e a forma acima de todas as coisas. Idem para a cena em que Beatrix vê a filha pela primeira vez. Embora as conquistas formais de Tarantino sejam inegáveis, há nele uma forte sensibilidade e uma maneira de lidar com a emoção gerada pelos mecanismos específicos do cinema (o que inclui, sim, a música) cujo paralelo hoje reside em cineastas como Sofia Coppola e Wes Anderson.

Kill Bill é um daqueles desenhos que fazemos na infância, aqueles em que distorcemos formas, exageramos volumes, damos excessivo destaque a detalhes que somente aos olhos de uma criança podem causar fixação. Um desenho que Tarantino recupera e colore com mãos de mestre, e no qual podemos sempre ver que estão gravadas, em algum lugar próximo da moldura, as inicias Q & U. Belo casamento.


Luiz Carlos Oliveira Jr.