É curioso notarmos que
os três filmes peruanos exibidos na Premiére
Latina do Festival do Rio (Dias de Santiago, Olhos
que não vêem e Jogo duplo) estão
diretamente conectados aos últimos acontecimentos
políticos que assolaram o país, mais precisamente
ao período dos dois mandatos de Alberto Fujimori
(1990 – 2000). Essas três produções,
juntamente com Paloma de papel (exibida no último
Cinesul), foram realizadas entre 2003 e 2004 e, levando
em conta a ainda pequena produção cinematográfica
anual do país, são filmes que vistos juntos
são capazes de nos fazer refletir sobre a grande
preocupação que ocupa a mente dessa nova
geração de cineastas peruanos - que por
esses anos tiveram a batalhada oportunidade de realizarem
os seus primeiros filmes (exceto Francisco Lombardi,
todos os outros diretores são estreantes).
Essa inquietante preocupação consiste
em tentar entender o atual estado da sociedade peruana
através da reavaliação desses anos
em que ela experimentou um de seus piores momentos.
Um período negro que podemos comparar ao que
nós brasileiros passamos a partir desse mesmo
ano, afinal, 1990 também foi o ano que assumiu
a presidência da república o nosso inesquecível
presidente Fernando Collor de Melo. Foram anos terríveis
quando, em ambas sociedades, apareciam diariamente uma
sucessão interminável de escândalos
e falcatruas envolvendo os altos escalões do
poder. Corrupção, fugas para o exterior,
todo lugar do mundo parecia ser mais oportuno de viver
do que o seu próprio país. Uma expressiva
baixa estima experimentada pelos seus cidadãos
acompanhada de uma imensa desconfiança de seus
governantes eram os sintomas mais autênticos dessa
profunda e irreparável crise. Mas, como disse
Jorge Sanjinés (ver entrevista em Contracampo
63) são desses momentos de crise que brotam as
mais potentes cinematografias. Tomemos como exemplo
o Neo-realismo italiano e o atual cinema argentino como
prova de que também das maiores experiências
de dor e desespero nascem as mais transformadoras invenções.
A crise, portanto, é a alavanca e o principal
objeto de estudo dessas realizações. No
primeiro plano de Jogo duplo, decora a tela preta
os subtítulos que nos informam sobre o período
que proliferaram os chamados "Vladivídeos"
(vídeos realizados por Vladomiro Montesinos para
extorquir altos funcionários). Após esse
plano nada no filme fará menção
explicita aos acontecimentos vividos pelo país:
os personagens não botam em pauta através
de seus diálogos os assuntos do "mundo externo"
e muito menos são invadidos pelas noticias vomitadas
pelos meios de comunicação (notadamente
a televisão), como em Dias de Santiago
e Olhos que não vêem. Aqui cada
um experimenta a sua própria vida e individualidade
independente dos escândalos que deglutem o cotidiano.
O letreiro inicial então serve somente para situar
aqueles personagens em um especifico recorte espacial
e temporal: o Peru da década de 90. Realizada
essa informação essencial, o filme dispensará
no desenrolar de sua trama qualquer outra referência
direta aos acontecimentos políticos para que
a obra não caia em uma enorme redundância.
Todas as peripécias articuladas por Salvador
(o espanhol naturalizado peruano que vive de aplicar
golpes) servem como metáfora para nos sintonizar
às tramóias confabuladas pela dupla dinâmica
Fujimori – Montesinos. O próprio Salvador é
uma caricatura do presidente Fujimori: como o ex-presidente
o personagem é também um estrangeiro,
ou seja, um elemento externo que se camufla de nativo
para apenas concretizar os seus propósitos. Adaptando-se
ao novo habitat Salvador fala, se movimenta e
come ceviche como peruano, assim como Fujimori alterava
sua nacionalidade de acordo com os seus interesses:
para ser presidente do Peru se tornou peruano e para
fugir ao exílio se tornou japonês. Utilizando
sua lábia e o seu notável poder de persuasão,
Salvador se aproveita da fragilidade dos demais personagens
(eles ou estão em graves problemas financeiros
ou aspiram subir de posição pelas vias
mais fáceis) para iludi-los e assim surripiá-los.
Todos, de uma forma ou de outra, aspiram o poder: a
adolescente quer ingressar na faculdade por intermédio
de um "pistolão", o porteiro deseja
largar o seu ofício, a namorada do porteiro o
extorque, o jovem cineasta sonha em fazer um filme com
a Madonna e por assim vai. A ambição é
a moeda corrente e muitas vezes parece que não
se deve ler a palavra ética no dicionário
para concretamente conseguir o que se deseja. Assim,
quando a adolescente quer comprar uma lingerie sem ter
dinheiro, ela simplesmente rouba. Quando o cineasta
está sem meios para levantar seu empreendimento,
ele furta o pai.
Além da ânsia de todos de "se dar bem",
há um anseio de se manter a ordem e a hierarquia.
A proprietária do edifício reprime o porteiro
por ele ler revistas de informática alegando
que essa leitura é uma perda de tempo já
que sua condição de subalterno será
eterna - ao mesmo tempo em que a elevação
de status é um desejo coletivo os que já
estão em cima não permitem que os debaixo
subam. Transformando os personagens (logo a sociedade
peruana em seu microcosmo), em um espelho do que acontece
no poder, Durant costura uma comédia ligeira
de incisiva crítica social. Mais interessante
por ser um reflexo e uma reposta a um processo político
recente, o filme é válido, sobretudo como
crônica e não por seu resultado estético.
Ao mesmo tempo em que a sua adequação
formal a um modelo estanque de comédia facilite
o desenrolar e o acabamento de sua "mensagem",
também a impede de alçar vôos mais
altos. Jogo duplo é decididamente um exemplar
que se ressalta unicamente por suas qualidades extra-cinematográficas
sendo como cinema uma mera repetição semelhante
ao ato de mascar um chiclete sem açúcar.
Estevão Garcia
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