O HOMEM DO BRAÇO DE OURO
Otto Preminger, The man with the golden arm, EUA, 1955

Há um plano exemplar, que deixa muito clara a intenção de Otto Preminger – nessa fase de sua carreira – de concentrar suas ambições humanistas em dois ou três personagens, deixando os outros com um tratamento propositadamente superficial: Frankie, recém saído de uma cadeia especial para recuperação de drogados, observa pelo lado de fora da janela o seu passado. O contraplano de extrema riqueza mostra o traficante com seu antigo empregador, um dono de casa clandestina de carteado. Mas o olhar de Frankie é desviado para a proximidade da janela, onde está seu amigo ingênuo, Sparrow, capaz de segui-lo onde ele for. Ele se emociona com a presença do velho amigo e decide entrar. Em um só plano vemos o mal e o bem que assolavam o seu passado de dependência. Vemos, no rosto de Frankie, toda a sua dor sendo substituída pelo prazer do reencontro.

Frankie Machine (Frank Sinatra), antes de viciado em heroína, é um ser humano, com todas as suas fraquezas. Mas Preminger não estava nem um pouco preocupado em evitar o maniqueísmo. Nunca esteve. Seus filmes sempre têm os maus, ou os muito maus, e esse não é exceção. Mais para frente, a partir de Bom Dia Tristeza, seu cinema ganha contornos mais sutis, com mais personagens tendo tratamento aprofundado (e um belo exemplo disso é Tempestade Sobre Washington, drama político lamentavelmente ausente das locadoras).

Em O Homem do Braço de Ouro, para podermos adentrar a magnífica personalidade de Frankie, temos de vê-lo às voltas com o traficante Louie, que o assedia e incomoda, um crápula prestes a enterrar alguém sem piedade para ganhar grana. Não há a preocupação em contextualizar o traficante como um mal da sociedade. Preminger parte do pressuposto de que seu espectador é inteligente, e que um personagem com esse tratamento não precisa de justificativa.

Sempre é mais fácil angariar a simpatia dos críticos quando se tem uma preocupação social, às vezes falsa, freqüentemente disfarçada em humana, em tornar todo e qualquer personagem justificável por sua vida pregressa. Preminger se esquiva dessas justificativas. Assim como John Ford, para quem todo banqueiro era um câncer da sociedade, e assim era tratado em seus filmes. Foi justamente essa tipificação, tão enriquecedora e propulsora de grandes momentos cinematográficos, que impediu o devido apreço aos filmes de Ford em sua época.

Mas por que essa tipificação pode ser enriquecedora? É uma pergunta mais complexa e complicada de se responder em um texto sobre um filme específico, mas arrisco um breve resumo: porque permite que enxerguemos apenas um personagem de cinema, com um tratamento propositadamente de superfície, necessário somente ao filme, ao invés de um simulacro do ser humano. Quando Tarantino diz em entrevistas que Kill Bill é seu primeiro filme no mundo do cinema, está apenas radicalizando um dos princípios básicos de certo cinema americano: o foco de amostragem. Um certo esquematismo na construção do filme, fazendo com que alguns personagens sejam planificados, parecendo existir só para o filme, pode tornar mais fácil a compreensão das idéias do diretor, desde que este saiba manipular o espectador através do enquadramento e do corte. Preminger, assim como Ford, sabe, e geralmente o faz muito bem, como provado no plano descrito no início do texto.

Voltando ao filme, é notório que o foco esteja em Frankie, na sua amante Molly (Kim Novak) e em seu amigo ingênuo (Sparrow). É neles que Preminger deposita sua fé no ser humano. É com eles que o filme se encerra, com a câmera se fechando no casal (Sparrow ficando ao fundo), primeiro com os dois dividindo igualmente o plano, para, assim que nos damos conta de que Frankie parece decidido a seguir em frente, realizar um sutil movimento de câmera, movimento que pouco modifica o quadro, mas conduz nosso olhar para Molly. É com a mudança de sua fisionomia de angustiada para também decidida que o filme se encerra. Prova maior da capacidade do diretor de encerrar o sentido de uma vida (com aceitação, redenção, hesitação, afeição...) em um único plano. E de enriquecer a leitura possível do filme, desde que se disponha a vê-lo como algo muito maior que um retrato da recuperação de um drogado.


Sérgio Alpendre

(VHS Breno Rossi, DVD Continental)