Há
um plano exemplar, que deixa muito clara a intenção
de Otto Preminger – nessa fase de sua carreira – de
concentrar suas ambições humanistas em
dois ou três personagens, deixando os outros com
um tratamento propositadamente superficial: Frankie,
recém saído de uma cadeia especial para
recuperação de drogados, observa pelo
lado de fora da janela o seu passado. O contraplano
de extrema riqueza mostra o traficante com seu antigo
empregador, um dono de casa clandestina de carteado.
Mas o olhar de Frankie é desviado para a proximidade
da janela, onde está seu amigo ingênuo,
Sparrow, capaz de segui-lo onde ele for. Ele se emociona
com a presença do velho amigo e decide entrar.
Em um só plano vemos o mal e o bem que assolavam
o seu passado de dependência. Vemos, no rosto
de Frankie, toda a sua dor sendo substituída
pelo prazer do reencontro.
Frankie Machine (Frank Sinatra), antes de viciado em
heroína, é um ser humano, com todas as
suas fraquezas. Mas Preminger não estava nem
um pouco preocupado em evitar o maniqueísmo.
Nunca esteve. Seus filmes sempre têm os maus,
ou os muito maus, e esse não é exceção.
Mais para frente, a partir de Bom Dia Tristeza,
seu cinema ganha contornos mais sutis, com mais personagens
tendo tratamento aprofundado (e um belo exemplo disso
é Tempestade Sobre Washington, drama político
lamentavelmente ausente das locadoras).
Em O Homem do Braço de Ouro, para podermos
adentrar a magnífica personalidade de Frankie,
temos de vê-lo às voltas com o traficante
Louie, que o assedia e incomoda, um crápula prestes
a enterrar alguém sem piedade para ganhar grana.
Não há a preocupação em
contextualizar o traficante como um mal da sociedade.
Preminger parte do pressuposto de que seu espectador
é inteligente, e que um personagem com esse tratamento
não precisa de justificativa.
Sempre é mais fácil angariar a simpatia
dos críticos quando se tem uma preocupação
social, às vezes falsa, freqüentemente disfarçada
em humana, em tornar todo e qualquer personagem justificável
por sua vida pregressa. Preminger se esquiva dessas
justificativas. Assim como John Ford, para quem todo
banqueiro era um câncer da sociedade, e assim
era tratado em seus filmes. Foi justamente essa tipificação,
tão enriquecedora e propulsora de grandes momentos
cinematográficos, que impediu o devido apreço
aos filmes de Ford em sua época.
Mas por que essa tipificação pode ser
enriquecedora? É uma pergunta mais complexa e
complicada de se responder em um texto sobre um filme
específico, mas arrisco um breve resumo: porque
permite que enxerguemos apenas um personagem de cinema,
com um tratamento propositadamente de superfície,
necessário somente ao filme, ao invés
de um simulacro do ser humano. Quando Tarantino diz
em entrevistas que Kill Bill é seu primeiro
filme no mundo do cinema, está apenas radicalizando
um dos princípios básicos de certo cinema
americano: o foco de amostragem. Um certo esquematismo
na construção do filme, fazendo com que
alguns personagens sejam planificados, parecendo existir
só para o filme, pode tornar mais fácil
a compreensão das idéias do diretor, desde
que este saiba manipular o espectador através
do enquadramento e do corte. Preminger, assim como Ford,
sabe, e geralmente o faz muito bem, como provado no
plano descrito no início do texto.
Voltando ao filme, é notório que o foco
esteja em Frankie, na sua amante Molly (Kim Novak) e
em seu amigo ingênuo (Sparrow). É neles
que Preminger deposita sua fé no ser humano.
É com eles que o filme se encerra, com a câmera
se fechando no casal (Sparrow ficando ao fundo), primeiro
com os dois dividindo igualmente o plano, para, assim
que nos damos conta de que Frankie parece decidido a
seguir em frente, realizar um sutil movimento de câmera,
movimento que pouco modifica o quadro, mas conduz nosso
olhar para Molly. É com a mudança de sua
fisionomia de angustiada para também decidida
que o filme se encerra. Prova maior da capacidade do
diretor de encerrar o sentido de uma vida (com aceitação,
redenção, hesitação, afeição...)
em um único plano. E de enriquecer a leitura
possível do filme, desde que se disponha a vê-lo
como algo muito maior que um retrato da recuperação
de um drogado.
Sérgio Alpendre
(VHS Breno Rossi,
DVD Continental)
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