Logo nos primeiros planos, Gemini
nos apresenta o que parece ser uma das duas únicas
possíveis estéticas de um filme escandinavo
atual: a estetização absoluta no trato
com a luz e as cores na tela do cinema, de preferência
em scope. Esta "escola", por assim dizer,
da qual Reconstrução de um Amor
ou Dogma do Amor são exemplos recentes
mais conhecidos, na verdade complementa a outra opção,
que pareceria ser sua oposição total -
a visualidade-Dogma com sua aparente falta de cuidado
estético (que não é verdade em
Os Idiotas, mas em todos os outros parece ser)
e "urgência". No entanto, não
importa muito qual das duas opções os
cineastas dinamarqueses pareçam usar (e claro
que aqui sabemos estar generalizando a partir do pouco
do cinema de lá que nos chega), o que importa
é que, em qualquer uma delas, o que sobressai
da tela quase sempre parece ser um profundo desprezo
por aqueles personagens que se filma. Mesmo quando,
como acontece neste Gemini, tenta-se pintá-los
com aparente simpatia (quando na verdade, trata-se de
compaixão - nada pior para se ter por seus personagens).
A pista de que esta é a visão de mundo
de Wullenweber surge no começo do filme, quando
ainda estamos sendo apresentados aos personagens e ambientes
de que o filme tratará. Ali, sem qualquer função
dramática que não o choque pelo desprezo,
surge um close de uma privada do alto, depois que o
protagonista do filme despeja ali os dejetos que sua
mãe, aparentemente paraplégica (depois
isso se complica no filme), precisa depositar em um
penico. Nada no filme até então abria
espaço para esta celebração (lembrem-se:
em scope, com cores alteradas) do asco completo, e o
plano serve como um divisor de águas na recepção
do espectador de tudo que o filme apresenta: a Wullenweber
interessa mostrar o sujo da existência humana,
o patológico em cada um dos seus personagens.
O que, alías, não tem nada de errado em
si - a não ser quando a opção de
fazê-lo vem de cima para baixo, onde o desprezo
que emana do diretor para seus personagens toma conta
da tela de maneira indelével.
Então, Lars (o protagonista) será sempre
cercado pela patologia: principalmente da parte da sua
mãe, mas também na sua relação
amorosa com uma vizinha (a cena de sexo no sofá,
filmada com grande angular, é especialmente deplorável)
e mesmo na sua relação com o trabalho
(claro que ele é uma pessoa com problemas tais
de relação com o mundo, que é representado
como um nerd completo na loja de conveniência
onde trabalha). Não sobra dúvida, para
quem queira ver, que daí para a frente o filme
não tem como não avançar (ou ir
ladeira abaixo, dependendo do ângulo que se olha)
rumo ao abjeto em cada um de seus movimentos dramáticos
- mas a entrega completa a este caminho é tal
que chega a ser surpreendente.
O filme vai se encaminhando (com direito a deploráveis
câmeras-grudadas-no-corpo do protagonista, patologizando
ainda mais sua visão de mundo) para um desfecho
que se pretende "revolucionador" dos círculos
de relações humanas mesquinhas que ele
mesmo apresentou como "a realidade", apenas
para forçar a imposição da insanidade,
da negação do mundo real (como visto no
jogo de golfe, mais até que no plano final -
supostamente "surreal", mas só brega
mesmo) como possibilidade de única de transcendência
dos seus "excluídos" - nem que ao custo
da morte da mãe afogada em seu próprio
vômito e abandonada no chão de casa.
O fato é que, se achávamos que já
tínhamos visto de tudo no que se refere a abjeção
cinematográfica no cinema dinamarquês,
Wullenweber nos mostra que sempre dá para descer
mais um pouquinho.
Eduardo Valente
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