FREESTYLE
Kevin Fitzgerald, Freestyle - The art of rhyme, EUA, 2003

Uma das coisas mais interessantes de Freestyle é a exposição de toda uma parcela do universo hip hop que está completamente desvinculada da indústria fonográfica. À exceção de nomes como Mos Def (que compõe o Black Star e já participou de uma penca de discos de artistas famosos, dentre eles De La Soul – e ainda pode ser visto no festival como um policial em The Woodsman) e Notorius B.I.G. (que aparece com 17 anos, arrasando um adversário numa esquina do Brooklyn), os personagens de Freestyle são integrantes de um mundo que, por mais que possua uma certa coesão interna e se comunique de costa a costa, vive à parte das grandes gravadoras e compõe uma autêntica cultura das ruas e guetos. Até porque o praticante de freestyling dificilmente reproduz a força do seu verbo nos estúdios de gravação. O freestyle, como fica claro no filme, precisa do público, precisa responder ao público e – mais ainda – à provocação do oponente. Não é só uma manifestação artística e um entretenimento: é também um esporte.

Como diz Lord Finesse, figura das mais divertidas e interessantes de Freestyle, quanto mais você se expõe, mais é estudado, analisado. Os possíveis rivais descobrem até detalhes da vida pessoal que podem ser usados durante a batalha, desestabilizando o oponente – às vezes afundando-o no chão. Assim ocorre na cena que mostra como Craig-G derrotou Supernatural, que até então era considerado invencível: Craig-G descobriu que ele havia nascido em Indiana e, uma vez que a batalha acontecia na época em que Mike Tyson lá se encontrava preso, pediu a Supernatural que lhe desse um recado quando retornasse à sua casa (com todo o duplo sentido que a palavra “casa” ali assumia). Naquele momento, Supernatural simplesmente travou, recolheu-se num canto e foi ficando cada vez menor, até quase desaparecer. Supernatural é o personagem que mais aparece no filme, pois ele rendeu, além desse confronto com Craig-G, a batalha com Juice (rapper de Chicago), considerada histórica. As principais armas de Supernatural são a pantomina (ele gesticula efusivamente enquanto canta) e os exercícios que ele se impõe com rigor de atleta olímpico: decorar palavras do dicionário e, depois, articulá-las com outras através do dicionário de rimas. Conscientes que são de suas habilidades de improviso, tanto Supernatural quanto Juice são extremamente vaidosos.

Freestyle, como dificilmente se consegue em documentários sobre atividades historicamente associadas a guetos, solicita a presença de um estudioso do assunto sem manchar o filme com teses que tentam enquadrar e explicar o fenômeno sócio-culturalmente. Kevin Fitzgerald não trata o freestyling como o estereótipo da cultura de rua, não o mostra como uma habilidade educada em meio à adversidade material, ou como forma de protesto pacífico. Embora destaque a consciência viva em alguns dos seus personagens (e nas letras destes), Freestyle é um filme apaixonado, em primeiro lugar, pelo hip hop nessa versão repleta de vitalidade e improvisada (“há controvérsias!”, diriam alguns personagens que acusam os mais famosos freestylings de terem frases feitas).

O filme, que não cansa de ressaltar o caráter gregário das rodas de freestyling (principalmente no cypher, situação em que todos os membros da roda se revezam nos versos), vai se mostrando mais e mais entrosado com o meio por ele retratado. Freestyle não chega aos locais de encontro dos MCs como visitante ocasional, mas antes como freqüentador assíduo – o que faz toda a diferença. Até o didatismo do filme acaba sendo bem-vindo, pois a forma como se explicam as origens do freestyle, sempre ilustrada por imagens, não se torna nunca enfadonha. O interesse histórico e social não sobrepuja o interesse estético, e é sempre a força criativa dos MCs o que preenche a tela e dá ao filme o mesmo carisma exigido a qualquer um que se aventure no freestyling.

Luiz Carlos Oliveira Jr.