Uma das coisas mais interessantes
de Freestyle é a exposição de toda uma parcela
do universo hip hop que está completamente desvinculada
da indústria fonográfica. À exceção de nomes como Mos
Def (que compõe o Black Star e já participou de uma
penca de discos de artistas famosos, dentre eles De
La Soul – e ainda pode ser visto no festival como um
policial em The Woodsman) e Notorius B.I.G. (que
aparece com 17 anos, arrasando um adversário numa esquina
do Brooklyn), os personagens de Freestyle são
integrantes de um mundo que, por mais que possua uma
certa coesão interna e se comunique de costa a costa,
vive à parte das grandes gravadoras e compõe uma autêntica
cultura das ruas e guetos. Até porque o praticante de
freestyling dificilmente reproduz a força do
seu verbo nos estúdios de gravação. O freestyle,
como fica claro no filme, precisa do público, precisa
responder ao público e – mais ainda – à provocação do
oponente. Não é só uma manifestação artística e um entretenimento:
é também um esporte.
Como diz Lord Finesse, figura das mais divertidas e
interessantes de Freestyle, quanto mais você
se expõe, mais é estudado, analisado. Os possíveis rivais
descobrem até detalhes da vida pessoal que podem ser
usados durante a batalha, desestabilizando o oponente
– às vezes afundando-o no chão. Assim ocorre na cena
que mostra como Craig-G derrotou Supernatural, que até
então era considerado invencível: Craig-G descobriu
que ele havia nascido em Indiana e, uma vez que a batalha
acontecia na época em que Mike Tyson lá se encontrava
preso, pediu a Supernatural que lhe desse um recado
quando retornasse à sua casa (com todo o duplo sentido
que a palavra “casa” ali assumia). Naquele momento,
Supernatural simplesmente travou, recolheu-se num canto
e foi ficando cada vez menor, até quase desaparecer.
Supernatural é o personagem que mais aparece no filme,
pois ele rendeu, além desse confronto com Craig-G, a
batalha com Juice (rapper de Chicago), considerada histórica.
As principais armas de Supernatural são a pantomina
(ele gesticula efusivamente enquanto canta) e os exercícios
que ele se impõe com rigor de atleta olímpico: decorar
palavras do dicionário e, depois, articulá-las com outras
através do dicionário de rimas. Conscientes que são
de suas habilidades de improviso, tanto Supernatural
quanto Juice são extremamente vaidosos.
Freestyle, como dificilmente se consegue em documentários
sobre atividades historicamente associadas a guetos,
solicita a presença de um estudioso do assunto sem manchar
o filme com teses que tentam enquadrar e explicar o
fenômeno sócio-culturalmente. Kevin Fitzgerald não trata
o freestyling como o estereótipo da cultura de
rua, não o mostra como uma habilidade educada em meio
à adversidade material, ou como forma de protesto pacífico.
Embora destaque a consciência viva em alguns dos seus
personagens (e nas letras destes), Freestyle é
um filme apaixonado, em primeiro lugar, pelo hip hop
nessa versão repleta de vitalidade e improvisada (“há
controvérsias!”, diriam alguns personagens que acusam
os mais famosos freestylings de terem frases
feitas).
O filme, que não cansa de ressaltar o caráter gregário
das rodas de freestyling (principalmente no cypher,
situação em que todos os membros da roda se revezam
nos versos), vai se mostrando mais e mais entrosado
com o meio por ele retratado. Freestyle não chega
aos locais de encontro dos MCs como visitante ocasional,
mas antes como freqüentador assíduo – o que faz toda
a diferença. Até o didatismo do filme acaba sendo bem-vindo,
pois a forma como se explicam as origens do freestyle,
sempre ilustrada por imagens, não se torna nunca enfadonha.
O interesse histórico e social não sobrepuja o interesse
estético, e é sempre a força criativa dos MCs o que
preenche a tela e dá ao filme o mesmo carisma exigido
a qualquer um que se aventure no freestyling.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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