Morte da montagem
Não é por ser um sub-Jim Jarmusch (vários existem, e
alguns até realmente bons), um fraco No Decurso do
Tempo ou mais uma tentativa de jovem diretor em
"fazer o retrato de uma geração" que Sem
Rumo é um caso de parco interesse. Os momentos belos
estão lá, existe todo um interesse pelos ritos de muito
daquilo que compõe uma viagem empreendida por dois pós-adolescentes,
os encadeamentos dos longos planos hora surpreendem...
Enfim, nada parece faltar. E como já podemos ver em
alguns casos recentes (os filmes de artes marciais de
Zhang Yimou, por exemplo), é justamente esse o problema:
nada falta. Essa idéia de um cinema que se pretende
à margem de formatos e gêneros hiper-disseminados na
cultura cinematográfica contemporânea (de um lado o
filme de gênero que se opõe ao monstro "filme de
festival", de outro o filme "de arte"
que pretende responder e dialogar com toda uma iconografia
de filmes e objetos pop) se revela tão mais problemática
por na maioria das vezes resvalar no mais genérico dos
genéricos ou no mais absolutamente programático; ou,
em outros termos, a graça de um filme - eterna questão.
Nem tanto a beleza de certas imperfeições, do rigor
em certas propostas e empreendimentos artísticos de
risco, da coerência que tal filme mantém dentro da proposta
de obra de tal diretor: aquilo que move qualquer projeto
- seja este científico, político ou artístico, mesmo
existindo pouquíssimas diferenças entre estes três campos
- é a necessidade da busca, de procurar certas coisas
sabendo de antemão que não serão encontradas várias
outras. Esbarrar em algo já uma vez encontrado e dar
a isso a condição de descoberta não é em si um problema,
contanto que ainda exista essa busca, esse passo vacilante
que no cinema sempre é denunciado na passagem de um
plano para outro, na completa impossibilidade de cobertura
que é a mola de ignição da principal propriedade do
cinema: a montagem.
Assistir filmes como Sem Rumo ou House of
the Flying Daggers (para além de certos pós-Dogma
95) não é possível sem a aparição de uma sensação
estranha que num primeiro momento surge na tela e depois
povoa a sala de cinema, com os risinhos na hora certa,
a complacência nos momentos de fragilidade ou gentileza,
os comentários diante de ou durante uma cena ou uma
idéia "sofisticada". Essa sensação, ela é
simples e puramente a de que se está assistindo a filmes
em que não há montagem (não como se fossem o fracasso
ou o correlato de experiências como as de A Arca
Russa ou Festim Diabólico), que não tem em
absoluto a necessidade de montagem, onde tudo parece
fruir não mais da quebra ou do choque mas sim da vontade
de manter tudo em um só tom, num único e interminável
movimento ironicamente ditado por coisas que originalmente
tremiam, mancavam, tombavam (os filmes de Jim Jarmusch
e Gus Van Sant, as pesquisas de Andy Warhol e Michelangelo
Antonioni; os experimentos de King Hu e Tsui Hark, Chang
Cheh e John Woo). Após uma sucessão de "tudo nos
seus devidos lugares" - pouco importa se durante
83 ou 119 minutos -, é difícil reagir de qualquer maneira,
ainda mais quando se enxerga pontos de interesse. Mas
é sim o caso de um estranho novo monstro, a do filme-programa-de-filme
(ou cinema-parasita-de-cinema), que realmente exige
uma severidade crítica. Para o bem e para o mal.
Morte da câmera
Ou da vontade de a tudo dar movimento. A câmera... Ela
já foi uma vez serena (Ozu, Hellman, Oliveira), curiosa
(Godard, Pasolini, Fassbinder), hiperbólica (Fuller,
Glauber, Cimino), paciente (Leone, Kiarostami, Tarantino),
agente (Argento, Lang, De Palma). O que de tão absolutamente
aterrorizante acontece durante a metragem completa de
House of the Flying Daggers? O velho truísmo
de Jean Cocteau faz-se necessário para a compreensão
do que falha completamente no filme de Yimou: "Quando
se acompanha com um travelling um cavalo em sua
cavalgada, o cavalo não está em movimento, mas sim parado".
As verdades têm sempre duas faces: Hark ou Cimino conseguiam,
de alguma maneira, filmar o deslocamento de corpos
e objetos através de operações e movimentos de câmera
constantes, complexos e ensandecidos. Já Yimou não consegue,
por mais que tente. Qual o mistério, qual o segredo
que abre esta porta secreta? Retornar à carne, sempre:
um respeito austero, sagrado mesmo por aquilo que um
gesto, um toque, um suspiro, mesmo a maior de todas
as nuances corpóreas possa significar. Filmar
um dedo como se este tivesse a pulsão e a mecânica de
um carro, registrar um muro como se este oferecesse
a mesma riqueza e o mesmo número de expressões que o
rosto de uma bela mulher, tentar encontrar em tudo as
sombras e as presenças de outras formas.
Yimou pode bem disfarçar, até mesmo mascarar suas imagens
com uma pretensa poesia, mas nada foge do equívoco completo:
as cores, a plasticidade berrante, os jogos entre objetividade
e subjetividade da câmera, tudo surge através e a partir
de uma extrema grosseria, de uma completa anulação da
função perceptiva do objeto câmera. A impressão
que se tem é que junto com os equipamentos de câmera
e luz utilizados no filme veio um manual dizendo qual
movimento realizar em tal cena de ação, a luz com a
qual se iluminar uma floresta durante a cena de cavalgada,
qual lente se utilizar durante a cena de beijo entre
a mocinha e o herói... Não se trata do reiterativo que
vemos em Sem Rumo mas de sua radicalização, do
passo seguinte: a anulação de todas as formas de apreensão
de signos através de uma câmera de cinema, de um aparelho
que a princípio surgiu para justamente fazer a história,
a única história que pode ser feita de corpos
e gestos.
A anulação entre os movimentos de percepção e reflexão
(a câmera) e os de ação e significação (os corpos)...
Triste o fim que conhece em House of the Flying Daggers
uma arte do movimento..
Bruno Andrade
|