PARALELAS E TRANSVERSAIS
House of Flying Daggers, de Zhang Yimou
Sem Rumo, de Nobuhiro Yamashita


Shi mian mai fu, China, 2004
Riarizumi no yado, Japão, 2003


Morte da montagem

Não é por ser um sub-Jim Jarmusch (vários existem, e alguns até realmente bons), um fraco No Decurso do Tempo ou mais uma tentativa de jovem diretor em "fazer o retrato de uma geração" que Sem Rumo é um caso de parco interesse. Os momentos belos estão lá, existe todo um interesse pelos ritos de muito daquilo que compõe uma viagem empreendida por dois pós-adolescentes, os encadeamentos dos longos planos hora surpreendem... Enfim, nada parece faltar. E como já podemos ver em alguns casos recentes (os filmes de artes marciais de Zhang Yimou, por exemplo), é justamente esse o problema: nada falta. Essa idéia de um cinema que se pretende à margem de formatos e gêneros hiper-disseminados na cultura cinematográfica contemporânea (de um lado o filme de gênero que se opõe ao monstro "filme de festival", de outro o filme "de arte" que pretende responder e dialogar com toda uma iconografia de filmes e objetos pop) se revela tão mais problemática por na maioria das vezes resvalar no mais genérico dos genéricos ou no mais absolutamente programático; ou, em outros termos, a graça de um filme - eterna questão.

Nem tanto a beleza de certas imperfeições, do rigor em certas propostas e empreendimentos artísticos de risco, da coerência que tal filme mantém dentro da proposta de obra de tal diretor: aquilo que move qualquer projeto - seja este científico, político ou artístico, mesmo existindo pouquíssimas diferenças entre estes três campos - é a necessidade da busca, de procurar certas coisas sabendo de antemão que não serão encontradas várias outras. Esbarrar em algo já uma vez encontrado e dar a isso a condição de descoberta não é em si um problema, contanto que ainda exista essa busca, esse passo vacilante que no cinema sempre é denunciado na passagem de um plano para outro, na completa impossibilidade de cobertura que é a mola de ignição da principal propriedade do cinema: a montagem.

Assistir filmes como Sem Rumo ou House of the Flying Daggers (para além de certos pós-Dogma 95) não é possível sem a aparição de uma sensação estranha que num primeiro momento surge na tela e depois povoa a sala de cinema, com os risinhos na hora certa, a complacência nos momentos de fragilidade ou gentileza, os comentários diante de ou durante uma cena ou uma idéia "sofisticada". Essa sensação, ela é simples e puramente a de que se está assistindo a filmes em que não há montagem (não como se fossem o fracasso ou o correlato de experiências como as de A Arca Russa ou Festim Diabólico), que não tem em absoluto a necessidade de montagem, onde tudo parece fruir não mais da quebra ou do choque mas sim da vontade de manter tudo em um só tom, num único e interminável movimento ironicamente ditado por coisas que originalmente tremiam, mancavam, tombavam (os filmes de Jim Jarmusch e Gus Van Sant, as pesquisas de Andy Warhol e Michelangelo Antonioni; os experimentos de King Hu e Tsui Hark, Chang Cheh e John Woo). Após uma sucessão de "tudo nos seus devidos lugares" - pouco importa se durante 83 ou 119 minutos -, é difícil reagir de qualquer maneira, ainda mais quando se enxerga pontos de interesse. Mas é sim o caso de um estranho novo monstro, a do filme-programa-de-filme (ou cinema-parasita-de-cinema), que realmente exige uma severidade crítica. Para o bem e para o mal.

Morte da câmera

Ou da vontade de a tudo dar movimento. A câmera... Ela já foi uma vez serena (Ozu, Hellman, Oliveira), curiosa (Godard, Pasolini, Fassbinder), hiperbólica (Fuller, Glauber, Cimino), paciente (Leone, Kiarostami, Tarantino), agente (Argento, Lang, De Palma). O que de tão absolutamente aterrorizante acontece durante a metragem completa de House of the Flying Daggers? O velho truísmo de Jean Cocteau faz-se necessário para a compreensão do que falha completamente no filme de Yimou: "Quando se acompanha com um travelling um cavalo em sua cavalgada, o cavalo não está em movimento, mas sim parado". As verdades têm sempre duas faces: Hark ou Cimino conseguiam, de alguma maneira, filmar o deslocamento de corpos e objetos através de operações e movimentos de câmera constantes, complexos e ensandecidos. Já Yimou não consegue, por mais que tente. Qual o mistério, qual o segredo que abre esta porta secreta? Retornar à carne, sempre: um respeito austero, sagrado mesmo por aquilo que um gesto, um toque, um suspiro, mesmo a maior de todas as nuances corpóreas possa significar. Filmar um dedo como se este tivesse a pulsão e a mecânica de um carro, registrar um muro como se este oferecesse a mesma riqueza e o mesmo número de expressões que o rosto de uma bela mulher, tentar encontrar em tudo as sombras e as presenças de outras formas.

Yimou pode bem disfarçar, até mesmo mascarar suas imagens com uma pretensa poesia, mas nada foge do equívoco completo: as cores, a plasticidade berrante, os jogos entre objetividade e subjetividade da câmera, tudo surge através e a partir de uma extrema grosseria, de uma completa anulação da função perceptiva do objeto câmera. A impressão que se tem é que junto com os equipamentos de câmera e luz utilizados no filme veio um manual dizendo qual movimento realizar em tal cena de ação, a luz com a qual se iluminar uma floresta durante a cena de cavalgada, qual lente se utilizar durante a cena de beijo entre a mocinha e o herói... Não se trata do reiterativo que vemos em Sem Rumo mas de sua radicalização, do passo seguinte: a anulação de todas as formas de apreensão de signos através de uma câmera de cinema, de um aparelho que a princípio surgiu para justamente fazer a história, a única história que pode ser feita de corpos e gestos.

A anulação entre os movimentos de percepção e reflexão (a câmera) e os de ação e significação (os corpos)... Triste o fim que conhece em House of the Flying Daggers uma arte do movimento..


Bruno Andrade