FILHAS DO VENTO
Joel Zito Araújo, Brasil, 2004

A última fala de Filhas do Vento apresenta não só a chave para sua interpretação, como ainda explicita o conhecimento auto-referencial que o filme possui sobre tal leitura: a personagem de Léa Garcia vira-se para a sua irmã (Ruth de Souza) e diz que aquele momento de catarse/perdão mútuo que acabaram de viver é "como o último capítulo de novela". Pois bem, não há como ler o filme de Joel Zito Araújo sem passar pela questão da dramaturgia típica da telenovela, como este final mesmo insere no corpo do filme. Também não será por acaso esta associação: sendo esta a primeira incursão de Joel Zito pela ficção cinematográfica, temos que lembrar que ele possui extensa pesquisa (da qual inclusive resultou seu primeiro longa, o documentário A Negação do Brasil) sobre, justamente, as telenovelas no Brasil. Conhece então, profundamente, esta linguagem - e não por acaso foi para ela que ele apelou ao estrear no cinema.

Há um outro motivo pelo qual é importante mencionar A Negação do Brasil: Filhas do Vento se conecta diretamente com este primeiro trabalho, no qual o diretor mapeava com viés crítico a participação dos atores negros na teledramaturgia brasileira. Militante da causa negra no Brasil, Joel montava ali um discurso sobre a falta de papéis diferenciados para os atores negros, constantemente relegados ao núcleo de escravos ou empregados domésticos. Filhas do Vento retoma este discurso, mas aparecendo justamente como uma tentativa de introduzir a questão no cinema brasileiro, não mais pela reflexão documental, e sim aqui por uma atitude típica de ação afirmativa: a elaboração de um roteiro que permita aos atores negros brilharem num elenco formado quase que exclusivamente por eles, e sem papéis de escravos ou domésticas. O tema da ação afirmativa, sabe-se, é muito complicado, dando pano para manga para horas de debate acirrado - e como aqui busca-se no máximo criticar um filme, não tentaremos nos emaranhar nesta questão (que poderia passar, inclusive, como já se discutiu e discute ainda, por uma política de cotas baseadas em condições raciais para os incentivos do Estado a manifestações culturais). O importante aqui é afirmar esta porção do trabalho de Joel, neste sentido resposta propositiva e plenamente coerente, complementar a seu documentário.

Só que, introduzido e contextualizado o filme dentro da carreira de Joel, e dos temas de que não se pode fugir (a questão racial e a telenovela como matriz de dramaturgia) há que se partir para o filme em si. E para fazê-lo precisamos levar em conta a verdadeiramente corajosa resposta que o diretor e seu elenco deram à insinuação do crítico Rubens Ewald Filho, quando presidente do júri de Gramado, de que havia dado todos os prêmios de atuação do Festival para o filme apenas porque eram atores negros: recusaram favores do tipo (embora, sem cair em mais polêmica, possa-se dizer que Rubens Ewald apenas tentou, toscamente, realizar uma ação afirmativa), e exigiram o óbvio - serem tratados como iguais, sem "passadas de mão na cabeça". Assim sendo, não será aqui que seremos preconceituosos com o filme, tratando-o de forma diferenciada - porque não tem nada a ver com a cor do seu elenco ou diretor a afirmação de que o filme de Joel, com todos os seus méritos (dentre outros de ser um filme de baixo orçamento realizado em 35mm), é extremamente limitado como resultado cinematográfico.

O motivo principal para esta afirmação, diga-se, também pode ser resumido em uma frase do filme, quando a personagem da sobrinha aspirante a atriz afirma: “sou um novo tipo de estereótipo”. Em tempos de inúteis e insossas discussões acerca de Olga, em torno da questão da linguagem televisiva, é importante retomar a idéia de que não existe uma linguagem televisiva por si (já que as “televisões” são inúmeras, assim como são os cinemas), no máximo uma linguagem da telenovela - que passa menos por enquadramentos específicos e mais por um trabalho de uma dramaturgia da reiteração, do trabalho sempre com o estereótipo, com o “tipo” muito mais do que com o “personagem”. E aí, como dissemos, o abraço de Joel a esta dramaturgia é expansivo (e assumido), o que acaba criando um estranho desacordo com seu ideal outro, o de contestação de uma ordem (no caso, racial).

Na mesma fala do filme mencionada acima, é citado logo depois o trabalho de Spike Lee - óbvia referência contemporânea sempre que se fala em cinema engajado na causa negra. Pois bem, Spike Lee talvez sirva como metáfora que ajude a explicar o que se tenta dizer aqui - e que talvez resvale em coisas maiores do que o filme de Joel simplesmente: Lee, desde seus primeiros filmes (e é importante afirmar o filme de Joel como um primeiro filme), sempre cultivou um cinema do confronto, optando pelo incômodo tanto estético quanto conteudístico. Mesmo em seus filmes mais “tranquilos” (pensemos aqui em Mais e Melhores Blues ou He Got Game) a questão racial surgia sempre com uma força inegavelmente afrontadora - e é interessante pensar em A Hora do Show/Bamboozled, de Lee, como uma junção em um mesmo filme dos dois trabalhos de Joel Zito, onde a questão do uso da imagem do negro entra em pauta de forma a mesclar uma pesquisa histórica e a urdidura ficcional com impressionante humor cáustico e constante incômodo. Joel Zito propõe esta questão  da representação negra em outra chave, uma chave de perdão (no tema do filme) e de afirmação via positividade. E, é importante frisar, para fazer isso usa a linguagem dominante no audiovisual brasileiro, a da telenovela (e é aí que se juntam os dois pontos mencionados no início do texto).

O fato é que se diz que o racismo brasileiro é um dissimulado, ao contrário do americano, que seria abertamente confrontador (nunca tivemos no Brasil um Malcolm X, ou a instauração de uma crise como a dos direitos civis nos EUA, anos 60). Se é verdade, e nos parece ser, a resposta audiovisual brasileira ao racismo parece equivalente ao teor dissimulado deste – trata-se de uma resposta um tanto conformada em se inserir no que já existe aqui, em querer participar positivamente do que já está estabelecido, em revoltar-se contra a exclusão de um processo - mas não com o processo em si. Esta proposta de cinema propositivo pode até ser visto, com muita condescendência, como “um passo adiante”. Mas é um passo por demais tímido, que no máximo nos dá um acalanto mas não a sensação de uma evolução da questão. Afinal, propõe-se a presença maior do negro para fazer o mesmo que “os brancos” já fazem, trocando só a cor da pele?

É neste sentido que importa menos notar uma latente dificuldade do filme em encenar para e com a câmera seus momentos mais “dramáticos” (como a sequência que mostra um barco virando, ou a da morte do personagem de Milton Gonçalves), porque podia-se ligar este domínio claudicante da linguagem tanto ao orçamento menor quanto ao fato de ser um primeiro filme. Mais importante é afirmar que a diferença de Olga para Filhas do Vento é apenas uma questão de orçamento e de cor da pele dos personagens (“mas já é muita coisa!”,  poderia-se dizer - não me parece). Me preocupa que a voz negra que luta para ser ouvida tenha a dizer apenas o mesmo que a voz branca atualmente no poder já afirma: o mesmo trabalho reiterativo e claudicante com a dramaturgia, onde se enclausura personagens em chaves melodramáticas toscas sem se abrir mão (algo impensável num autêntico melodrama) de um pretendido “naturalismo” (encarnado aqui no desfile de sotaques ou na direção de arte); o mesmo uso reiterativo dos diálogos como forma de suprir a compreensão dos personagens, não pelo que eles fazem, mas acima de tudo pelo que eles dizem deles mesmos e dos outros (“vovô acha que ser preto é ser sujo?”, “sempre fui coadjuvante na vida dele”), ou com o mesmo desfile de truísmos (“a vida não é feita só de pedacinho de papel”); a mesma utilização de recursos banais de linguagem (a trilha sonora manipulativa e exacerbada, os enquadramentos sem vida própria). Assim, importa menos que se esteja falando aqui de uma linguagem teledramatúrgica, e mais que se esteja falando da mesma linguagem dominante, repetindo todos os seus equívocos (sendo que as novelas já foram, nos seus momentos de brilho, capazes de bem mais do que isso).

Para fechar, voltamos a usar as palavras de uma personagem do filme, que parece encarnar perfeitamente o resultado final: “já me acostumei com as minhas impossibilidades”. Pois não devíamos nos acostumar não. Joel Zito deu um primeiríssimo passo na afirmação audiovisual do negro no Brasil? Genial, mas vamos nos cuidar para o próximo passo não ser para trás - como este várias vezes parece ameaçar ser.

Eduardo Valente