A última fala de Filhas do
Vento apresenta não só a chave para sua interpretação,
como ainda explicita o conhecimento auto-referencial
que o filme possui sobre tal leitura: a personagem de
Léa Garcia vira-se para a sua irmã (Ruth de Souza) e
diz que aquele momento de catarse/perdão mútuo que acabaram
de viver é "como o último capítulo de novela".
Pois bem, não há como ler o filme de Joel Zito Araújo
sem passar pela questão da dramaturgia típica da telenovela,
como este final mesmo insere no corpo do filme. Também
não será por acaso esta associação: sendo esta a primeira
incursão de Joel Zito pela ficção cinematográfica, temos
que lembrar que ele possui extensa pesquisa (da qual
inclusive resultou seu primeiro longa, o documentário
A Negação do Brasil) sobre, justamente, as telenovelas
no Brasil. Conhece então, profundamente, esta linguagem
- e não por acaso foi para ela que ele apelou ao estrear
no cinema.
Há um outro motivo pelo qual é importante mencionar
A Negação do Brasil: Filhas do Vento se
conecta diretamente com este primeiro trabalho, no qual
o diretor mapeava com viés crítico a participação dos
atores negros na teledramaturgia brasileira. Militante
da causa negra no Brasil, Joel montava ali um discurso
sobre a falta de papéis diferenciados para os atores
negros, constantemente relegados ao núcleo de escravos
ou empregados domésticos. Filhas do Vento retoma
este discurso, mas aparecendo justamente como uma tentativa
de introduzir a questão no cinema brasileiro, não mais
pela reflexão documental, e sim aqui por uma atitude
típica de ação afirmativa: a elaboração de um roteiro
que permita aos atores negros brilharem num elenco formado
quase que exclusivamente por eles, e sem papéis de escravos
ou domésticas. O tema da ação afirmativa, sabe-se, é
muito complicado, dando pano para manga para horas de
debate acirrado - e como aqui busca-se no máximo criticar
um filme, não tentaremos nos emaranhar nesta questão
(que poderia passar, inclusive, como já se discutiu
e discute ainda, por uma política de cotas baseadas
em condições raciais para os incentivos do Estado a
manifestações culturais). O importante aqui é afirmar
esta porção do trabalho de Joel, neste sentido resposta
propositiva e plenamente coerente, complementar a seu
documentário.
Só que, introduzido e contextualizado o filme dentro
da carreira de Joel, e dos temas de que não se pode
fugir (a questão racial e a telenovela como matriz de
dramaturgia) há que se partir para o filme em si. E
para fazê-lo precisamos levar em conta a verdadeiramente
corajosa resposta que o diretor e seu elenco deram à
insinuação do crítico Rubens Ewald Filho, quando presidente
do júri de Gramado, de que havia dado todos os prêmios
de atuação do Festival para o filme apenas porque eram
atores negros: recusaram favores do tipo (embora, sem
cair em mais polêmica, possa-se dizer que Rubens Ewald
apenas tentou, toscamente, realizar uma ação afirmativa),
e exigiram o óbvio - serem tratados como iguais, sem
"passadas de mão na cabeça". Assim sendo,
não será aqui que seremos preconceituosos com o filme,
tratando-o de forma diferenciada - porque não tem nada
a ver com a cor do seu elenco ou diretor a afirmação
de que o filme de Joel, com todos os seus méritos (dentre
outros de ser um filme de baixo orçamento realizado
em 35mm), é extremamente limitado como resultado cinematográfico.
O motivo principal para esta afirmação, diga-se, também
pode ser resumido em uma frase do filme, quando a personagem
da sobrinha aspirante a atriz afirma: “sou um novo tipo
de estereótipo”. Em tempos de inúteis e insossas discussões
acerca de Olga,
em torno da questão da linguagem televisiva, é importante
retomar a idéia de que não existe uma linguagem televisiva
por si (já que as “televisões” são inúmeras, assim como
são os cinemas), no máximo uma linguagem da telenovela
- que passa menos por enquadramentos específicos e mais
por um trabalho de uma dramaturgia da reiteração, do
trabalho sempre com o estereótipo, com o “tipo” muito
mais do que com o “personagem”. E aí, como dissemos,
o abraço de Joel a esta dramaturgia é expansivo (e assumido),
o que acaba criando um estranho desacordo com seu ideal
outro, o de contestação de uma ordem (no caso, racial).
Na mesma fala do filme mencionada acima, é citado logo
depois o trabalho de Spike Lee - óbvia referência contemporânea
sempre que se fala em cinema engajado na causa negra.
Pois bem, Spike Lee talvez sirva como metáfora que ajude
a explicar o que se tenta dizer aqui - e que talvez
resvale em coisas maiores do que o filme de Joel simplesmente:
Lee, desde seus primeiros filmes (e é importante afirmar
o filme de Joel como um primeiro filme), sempre cultivou
um cinema do confronto, optando pelo incômodo tanto
estético quanto conteudístico. Mesmo em seus filmes
mais “tranquilos” (pensemos aqui em Mais
e Melhores Blues ou He Got Game) a questão racial surgia sempre
com uma força inegavelmente afrontadora - e é interessante
pensar em A Hora do Show/Bamboozled, de Lee, como
uma junção em um mesmo filme dos dois trabalhos de Joel
Zito, onde a questão do uso da imagem do negro entra
em pauta de forma a mesclar uma pesquisa histórica e
a urdidura ficcional com impressionante humor cáustico
e constante incômodo. Joel Zito propõe esta questão
da representação negra em outra chave, uma chave de
perdão (no tema do filme) e de afirmação via positividade.
E, é importante frisar, para fazer isso usa a linguagem
dominante no audiovisual brasileiro, a da telenovela
(e é aí que se juntam os dois pontos mencionados no
início do texto).
O fato é que se diz que o racismo brasileiro é um dissimulado,
ao contrário do americano, que seria abertamente confrontador
(nunca tivemos no Brasil um Malcolm X, ou a instauração
de uma crise como a dos direitos civis nos EUA, anos
60). Se é verdade, e nos parece ser, a resposta audiovisual
brasileira ao racismo parece equivalente ao teor dissimulado
deste – trata-se de uma resposta um tanto conformada
em se inserir no que já existe aqui, em querer participar
positivamente do que já está estabelecido, em revoltar-se
contra a exclusão de um processo - mas não com o processo
em si. Esta proposta de cinema propositivo pode até
ser visto, com muita condescendência, como “um passo
adiante”. Mas é um passo por demais tímido, que no máximo
nos dá um acalanto mas não a sensação de uma evolução
da questão. Afinal, propõe-se a presença maior do negro
para fazer o mesmo que “os brancos” já fazem, trocando
só a cor da pele?
É neste sentido que importa menos notar uma latente
dificuldade do filme em encenar para e com a câmera
seus momentos mais “dramáticos” (como a sequência que
mostra um barco virando, ou a da morte do personagem
de Milton Gonçalves), porque podia-se ligar este domínio
claudicante da linguagem tanto ao orçamento menor quanto
ao fato de ser um primeiro filme. Mais importante é
afirmar que a diferença de Olga para Filhas do Vento
é apenas uma questão de orçamento e de cor da pele dos
personagens (“mas já é muita coisa!”, poderia-se dizer
- não me parece). Me preocupa que a voz negra que luta
para ser ouvida tenha a dizer apenas o mesmo que a voz
branca atualmente no poder já afirma: o mesmo trabalho
reiterativo e claudicante com a dramaturgia, onde se
enclausura personagens em chaves melodramáticas toscas
sem se abrir mão (algo impensável num autêntico melodrama)
de um pretendido “naturalismo” (encarnado aqui no desfile
de sotaques ou na direção de arte); o mesmo uso reiterativo
dos diálogos como forma de suprir a compreensão dos
personagens, não pelo que eles fazem, mas acima de tudo
pelo que eles dizem deles mesmos e dos outros (“vovô
acha que ser preto é ser sujo?”, “sempre fui coadjuvante
na vida dele”), ou com o mesmo desfile de truísmos (“a
vida não é feita só de pedacinho de papel”); a mesma
utilização de recursos banais de linguagem (a trilha
sonora manipulativa e exacerbada, os enquadramentos
sem vida própria). Assim, importa menos que se esteja
falando aqui de uma linguagem teledramatúrgica, e mais
que se esteja falando da mesma linguagem dominante,
repetindo todos os seus equívocos (sendo que as novelas
já foram, nos seus momentos de brilho, capazes de bem
mais do que isso).
Para fechar, voltamos a usar as palavras de uma personagem
do filme, que parece encarnar perfeitamente o resultado
final: “já me acostumei com as minhas impossibilidades”.
Pois não devíamos nos acostumar não. Joel Zito deu um
primeiríssimo passo na afirmação audiovisual do negro
no Brasil? Genial, mas vamos nos cuidar para o próximo
passo não ser para trás - como este várias vezes parece
ameaçar ser.
Eduardo Valente
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