Meninices
Domingos de Oliveira é uma criança.
De todos os veteranos cineastas brasileiros, ele foi
aquele que melhor fez uso da câmera digital. Não
porque suas imagens sejam melhores ou mais bonitas do
que aquelas de outros cineastas o que não
são , mas porque elas se encaixam perfeitamente
na estética e na dramaturgia deste meninão
quase septuagenário. Baixos orçamentos,
locações reais em praças e interiores
de apartamentos da zona sul carioca, e a narrativa da
vida cotidiana da classe artística do Rio de
Janeiro. É um cinema do íntimo e da vivacidade,
filmado com a pressa e com a intensidade de um menino
que ganhou um brinquedinho novo e está ávido
para usar. São assim os três filmes que
retomam uma carreira cinematográfica interrompida
no final dos anos 70 e salva, nos 90, pelas facilidades
de produção e filmagem da tecnologia digital:
Amores (1998), Separações (2002)
e este Feminices. É um cinema imperfeito,
com todas as características desejáveis
que esta palavra carrega consigo. Um cinema muito aproximado
da vida, dos diálogos corriqueiros que falamos
no corredor passando de um aposento para outro, dos
gestos impensados que produzimos uma vez confrontados
com situações que não esperávamos,
mas também um cinema da neurose de um intelectual
filho do século XX, de Freud e Bergman, que coloca
na tela os impasses existenciais e as feridas emocionais
produzidas pela passagem do tempo, pela vida em família
e/ou grupo e, principalmente, pela necessidade de amar
e ser amado. A imperfeição tão
adorável de seus filmes deriva, mais do que da
forma de filmar, desta falta de controle sobre um material
humano largo demais para ser fechado num todo friamente
bem ordenado a vida.
Feminices, de seus filmes recentes, é
talvez o mais imperfeito. E, também, aquele em
que a imperfeição mais ajuda a produzir
uma tomada da realidade que é visceral, que se
instala em cada corte, cada cena, cada fala de personagem
(que os atores estejam menos ensaiados do que de costume
e falem linhas de diálogo por vezes mais do que
as vivam, tanto mais apropriado). Os créditos
iniciais, opcionalmente a "um filme de", também
oferecem "uma brincadeira de" Domingos de
Oliveira. Uma brincadeira, mais do que em seus outros
filmes, pela improvisação das filmagens
e pelo senso de aventura em produzir um filme a partir
não de uma história a ser contada, mas
pela crise que se instala quando uma história
não é possível aquela que
as personagens anjoexterminadorescamente tentam
produzir numa reunião eternamente interrompida
mas à qual elas sempre voltam, inutilmente
trazer à tela. Mas essa brincadeira do possível,
essa experiência a partir da impossibilidade de
uma ficção que regula, ordena e prepara
tudo aquilo que será visto na tela é um
jogo também muito sério em que a parte
definitivamente passa a importar mais que o todo, ou
em que a soma das partes excede em força
o todo.
O que nos agrada tanto nos filmes de Domingos de Oliveira
não é tanto a história que está
sendo contada, mas os momentos, os instantes, os nacos
de sensibilidade e emoção que essa história
proporciona. No caso de Feminices, com uma história-mais-que-pretexto
para alinhavar a narrativa quatro mulheres que
sentam numa mesa para redigir uma peça de teatro
sobre confissões de mulheres de quarenta anos
, estamos diante de situações nuas,
momentos puros tomados de modo quase documentário
numa apreensão viva de instantes de realdiade.
Nada, no entanto, a ver com o verismo daquelas filmagens
que tentam "dar a impressão de verdade"
no registro ao tremer a câmera ou outros truques
semelhantes. O que está em jogo aqui não
é documentar as cenas, mas as emoções
e os instantes. Mais que isso, os comportamentos. Vai
daí que, entregue a um fio de história
muito tênue que só serve para fazer caber
esses nacos de sensibilidade que Domingos de Oliveira
sabe filmar tão bem, Feminices seja, ao
contrário do mais descompromissado, o mais ambicioso
de seus filmes até a presente data.
O princípio ficcional não poderia se estabelecer
de forma mais batida: os atores falam sobre o filme
que vai ser feito, e o filme se faz ora confirmando
ora contradizendo aquilo que os personagens verbalizam.
Além disso, o filme insere depoimentos de homens
falando sobre as mulheres. Nesse caldo do "já
visto, já conhecido", surge o que realmente
importa: histórias de paixão, envelhecimento,
trabalho, ciúmes, relacionamentos emocionais
e pequenas aventuras. Tal como no Banda de Ipanema
- Folia de Albino de Paulo Cezar Saraceni, estamos
diante de um material bruto, quase antropológico
por sua impressão (falsa) de falta de manuseio,
em que os instantes vêm à tona e à
tela com uma carga emocional incomum. O "documental"
do filme não é está no inventário
dos problemas de meia-idade feminina que as quatro mulheres-roteiristas-personagens
do filme listam em seus alfarrábios e declamam
umas para as outras, mas no frescor e na agilidade em
trazer para a tela os registros de gestos e de fala
mais corriqueiros, fazer dessa odisséia do cotidiano
o foco principal: o material pregnante e pessoal de
um cineasta que ama sua vida é raro um
diretor de cinema fazer de seu egocentrismo um material
tão interessante de se ver e se empenha
em trazê-la à tela em seus mais belos momentos.
Domingos de Oliveira interpreta a si mesmo, um diretor
de teatro e cinema, marido de uma das atrizes-dramaturgas
instaladas em reunião. Ele diz que o material
é superficial, que elas não conseguem
fazer o que estão tentando porque não
chegam a verdadeiramente confessar seus desejos e seus
medos. É aí que Feminices prega
uma peça, tanto na idéia de confissão
quanto no registro ficcional de uma história
se fazendo na dimensão de sua impossibilidade.
É porque Domingos de Oliveira, ao censurar como
personagem a falta de confissão de suas dramaturgas,
confessa como realizador sua profissão de fé
ao delirar como nunca o material bruto em cima do qual
trabalha. A falência de uma história, a
brincadeira de uma filmagem rápida em que as
atrizes não estão tão bem quanto
poderiam, a idéia e a realização
de um filme feito às pressas só jogam
mais luz para aquilo que é a essência de
uma visão de cinema e de arte. Eis como Domingos
de Oliveira faz seu 8½.
Ruy Gardnier
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