FAMÍLIA RODANTE
Pablo Trapero, Familia rodante, Argentina, 2004

Por um cinema do “cofrinho”

Todo mundo conhece o “cofrinho”: sim, ele mesmo, o resultado visual que causa a descida de uma calça ou bermuda quando uma pessoa se abaixa, ou se posiciona para a frente. A nesga de bunda que deste ato resulta visível, tanto para o desagrado da pessoa em questão quanto para o dos que assistem a cena na maioria das vezes. Pois é, o “cofrinho” é fenômeno tão bizarro quanto banal, tão desagradável quanto absolutamente humano. Num mundo onde cada vez mais se afirma a importância da aparência, da encenação, o “cofrinho” é o momento onde vem abaixo o personagem que criamos na vida real e se afirma a materialidade mais tosca e inegável dos corpos humanos e suas características.

Pois bem, recentemente muitos têm defendido que o cinema argentino recente tem mais força do que o cinema brasileiro, e que isso teria uma série de explicações. Embora precise ser melhor conceituada (afinal, de que cinema argentino se fala, já que ele todo não chega até nós), a afirmação tem sentido, em especial, se formos atrás do cinema de uma Lucrecia Martel, e também de um Pablo Trapero cujo terceiro longa nos chega agora. E este filme de Trapero nos faz conseguir, talvez pela primeira vez com a clareza de uma imagem, atingir um conceito que explique esta força: é tudo uma questão de “cofrinho”. O cinema brasileiro padece de uma vergonha incrível de mostrar o seu, cobrindo-o muitas vezes com roupas suntuosas, mas mesmo quando usando uma humilde calça jeans e camiseta, preocupando-se muito ao se abaixar em dobrar as pernas ou esticar a camisa – com medo de que seu “cofrinho” revele apenas as suas falhas, a sua condição um tanto patética de sustentação. Pois Trapero mostra, mais uma vez (seu Bonaerense já tinha nos permitido sentir o mesmo) que tudo que nos resta, muitas vezes, é o nosso “cofrinho” - e o melhor que podemos fazer é orgulharmo-nos dele, vendo que nossa diferença (se podemos afirmar alguma) é a capacidade de mostrá-lo sem medo. E é o que ele faz aqui neste filme – neste caso tornando a metáfora imagem mesmo de seu filme, onde um personagem (não por acaso o “Gordo”) se abaixa pelo menos três vezes revelando o seu “cofrinho” para o espectador, e de lambuja revelando muito mais do que isso sobre um conceito de cinema.

Sim, porque o que Trapero realiza aqui é uma operação complementar à de El Bonaerense (infelizmente não vimos seu primeiro filme, Mundo Grua), que opera no mesmo registro de olhar, ainda que em construções dramáticas completamente distintas. Trapero busca um cinema do pequeno gesto, um cinema onde cada parte significa mais do que o todo, onde a aproximação da câmera com os personagens beira o absurdo. Seu cinema é um cinema pulsante, e um cinema onde a dramaturgia se constrói não só pela urdidura de uma sequência de ações (o roteiro), mas acima de tudo pela forma como cada uma destas ações é encenada pelo elenco e pela câmera que filma este elenco. Neste sentido, importa bem menos que Bonaerense fosse uma tragédia moderna, a afirmação de um não-personagem como protagonista único de sua própria vida, enquanto em Família Rodante a chave predominante é a da comédia, e da afirmação coletiva da existência, simbolizada pela família que viaja toda junta num trailer. As diferenças entre os projetos servem para mostrar que se a vida (e o cinema) não são uma coisa só, a ética de um olhar para ela pode manter-se constante mesmo de formas bastante distintas.

Trata-se aqui de uma ética do olhar sim, porque a afirmação de um ultra-realismo pelos filmes de Trapero (neste sentido, se diferenciando completamente em forma de encenação da compatriota Martel) nunca cai na esparrela da condescendência com seus personagens, mas também nunca cai na tolice da condenação a eles. Voltando à imagem do “cofrinho”: eventualmente ela até tenta surgir em alguns filmes (até brasileiros), mas aqui o “cofrinho” surge sempre com uma enorme carga simbólica – onde sua feiúra é a imagem-síntese de uma decadência, de um olhar sobre algo sórdido. Em Trapero, um “cofrinho” é apenas um “cofrinho”: não afirma nada para além de um momento de despreocupação com sua própria imagem. O que Trapero filma em Bonaerense não é nada “doce”, assim como Família Rodante não doura a pílula, nem na comédia, de tantas das atribulações da vida em família. No entanto, seu olhar sobre tudo isso nunca é o da patologização, seja ela social ou familiar: as coisas são como são e delas advêm o mais belo e o mais daninho – separar os dois, porém, é operação impossível. Um exemplo disso é o personagem do “cunhado” neste filme – aparentemente o único que podia se dizer que é “culpabilizado” pelas suas obsessões. No entanto, há uma operação essencial de Trapero: depois de expulso da família (portanto, saindo do escopo dramático de interesse do filme – a viagem até o casamento), ainda assim voltamos duas vezes a acompanhar este personagem. Ou seja: quem o expulsa por seus atos (compreensivelmente) é o personagem do Gordo, nunca o diretor do filme. Trata-se, afinal, de apenas mais um personagem.

Se é necessário dar conta de todas estas dimensões, importantes de se afirmar positivamente no cinema de Trapero, o que não se pode cair é no erro de, com um discurso teórico e para além do filme, perder de vista a alegria que emana de Família Rodante - e que é sua principal característica. Assiste-se ao filme com um inevitável sorriso no rosto, sorriso este que se torna muitas vezes sonora gargalhada. O ultra-realismo de Trapero consegue criar momentos antológicos de comédia e de identificação, seja na trama que envolve os pré-adolescentes do filme (cheia de sensualidade e inocência), seja nas participações da criança, seja (talvez acima de tudo) nas intervenções da personagem central do filme, a avó. Aliás, saber que quem interpreta esta personagem é a própria avó de Trapero dá uma dimensão extra de significado ao filme, que se termina com um belíssimo plano fechado no rosto desta personagem. Autêntica homenagem (já afirmada também com a dedicatória que abre o filme) não só a uma pessoa, mas a um olhar sobre a vida passado de geração em geração, e que Trapero hoje representa como poucos no cinema do mundo.

Eduardo Valente