Em
1960, Exodus foi produzido ciente de que tratava
de um assunto de extrema urgência – o que, ao
menos no que tange as violentas divergências entre
árabes e judeus, continua valendo para os dias
de hoje. O filme lança mão da epopéia,
modalidade narrativa que requer grandiosidade, para
trilhar os percalços de um povo – cuja ótica
do historicamente perseguido é trazida à
tona de forma dúbia, problematizando o papel
dos próprios judeus na sua história –
em busca de uma nação. O primeiro plano
de Exodus mostra o mar e as montanhas, inapreensíveis
na sua imensidão, e faz uma panorâmica
em direção ao rosto da personagem que
é o veículo do ponto de vista construído
ao longo do filme: a americana que está na ilha
de Chipre após perder o marido, um fotógrafo
de guerra (alguém que se arrisca para registrar
o sofrimento alheio). Ela fará um trajeto
que vai da simpatia em relação à
causa judaica rumo ao engajamento ativo (arriscando-se
ao ponto de se misturar ao sofrimento alheio),
passando pela condolência e pela crítica
quanto a atitudes eticamente discutíveis. Inútil
dizer que o cinema dificilmente escapa de ser uma arte
etnocêntrica, mas vale adiantar que Exodus
não condena os árabes à necessidade
cega de vilanizá-los na parte final sem antes
ter mostrado alguns personagens judeus como figuras
bastante ambíguas (o próprio personagem
de Newman entra nessa ambigüidade). Uns desses
personagens, para sobreviver ou não, dão
o braço ao inimigo em certas passagens; outros
deles, por sua vez, desenvolvem pensamentos de extermínio
perfeitamente cabíveis na mente de um nazista
(Sal Mineo dizendo que não quer deixar um só
inglês vivo na face da Terra).
Preminger coloca em cena uma relação complexa
entre os personagens e suas decisões. Nem tudo
que se diz em Exodus se comprova na ação
ou no pensamento íntimo de cada personagem (o
que as cenas de diálogo constroem de forma até
minimalista, por gestuais e expressões faciais
sutis, que a câmera menos acompanha do que simplesmente
deixa acontecer). E nem tudo que se faz em Exodus
corresponde ao que se pensa. Katherine Fremont,
a americana, decide levar a adolescente Karen para os
EUA por sentir necessidade de tirá-la daquele
martírio ou por enxergar nela uma vivacidade
de que precisa naquele momento? Ou, antes, por não
tê-la achado parecida com uma judia (Karen é
dinamarquesa, e seus pais eram adotivos), e inconscientemente
ter concluído que ela não pertence àquele
destino sofrido, merece ser levada dali? Katherine é
a todo momento atravessada por dúvidas.
Exodus pode até ser o menos hormonal dos
filmes de Preminger, sem uma figura feminina de sensualidade
evidente (Eva Marie Sant, que interpreta Katherine,
a heroína positiva, não torna o erotismo
uma inevitabilidade, como o fazem Marilyn Monroe, Lee
Remick ou Jean Seberg em O Rio das Almas Perdidas,
Anatomia de um Crime e Bom Dia Tristeza,
respectivamente), mas não é um filme desprovido
de sangue quente. Ari Ben Canaan (Paul Newman), para
começar, pouco a pouco se mostra um verdadeiro
kamikaze. "Nossa única arma é nossa
vontade de morrer", ele diz bem no início.
Numa das poucas cenas de comédia do filme, Ari
pede a um oficial inglês, que se assume anti-semita
e diz farejar judeus de longe, para que olhe bem nos
seus olhos e veja se há algum cisco, em atitude
tão cínica quanto psicótica. Em
meio a uma empreitada gigantesca, que é transportar
600 judeus dos campos de detenção de Chipre
até a Palestina, a bordo de um velho cargueiro
cujo nome é trocado de Olympia para Exodus, Ari
permanece inabalável e, por vezes, indialogável.
Da jornada olímpica ao êxodo, o filme faz
uma viagem majestosa mas também turbulenta. Apesar
do contorno épico, Preminger gasta todo o tempo
que julga necessário para tirar das entrelinhas
o complexo jogo de influências e de medidas burocráticas
que, tanto quanto os conflitos armados, fazem a história
andar.
Exodus é também um tratado sobre
um dos temas mais vivos em Preminger: o da responsabilidade.
Com toda sua frivolidade, todo seu Technicolor, Bom
Dia Tristeza (de 1959) não desiste – como
chegamos a torcer para que aconteça no meio do
caminho – de revelar o motivo da melancolia anunciada
no início do filme. A própria mise
en scène, por vezes grave e contida, avisa
que não se trata apenas de uma crônica
de um verão feliz. O final de Bom Dia Tristeza,
em que o presente em preto e branco contrapõe-se
às cores vivas do passado recente, dá-se
sob o peso do sentimento de culpa, que dependendo das
circunstâncias pode transformar o que era tórrido
e reluzente na mais fria depressão. Em Exodus
essa responsabilidade está sempre presente, às
vezes explicitamente (como na cena em que os militares
discutem sobre a autenticidade de uma assinatura, ou
seja, sobre quem é o responsável pelo
documento). No enterro do árabe que era seu amigo
desde a infância e de Karen, ao final de Exodus,
Ari discursa tristemente sobre a necessidade de árabes
e judeus pararem de misturar seus sangues debaixo da
terra, e começarem a fazê-lo em vida. Filmado
em dois únicos planos frontais, entrecortados
pela imagem dos caixões dentro da cova que lhes
é comum, esse enorme discurso é encarado
pelo diretor com profundo respeito (e até envolvimento
pela causa). Ari conclama uma conscientização
e uma prática pacificadora por parte de todos
(judeus, árabes, ingleses, a ONU, todos). O que
Preminger consegue, através da encenação
ao mesmo tempo enxuta e emotiva, é preservar
o conteúdo do discurso sem abdicar de pontuá-lo
dramaticamente (a trilha sonora de Ernest Gold, vencedora
do Oscar, auxilia nesse papel).
A câmera busca frontalidade e fluência,
os diálogos são filmados de frente, sem
corte. Exodus, na verdade, é um filme
de pré-produção grandiloqüente,
mas de realização lacônica: os milhares
de figurantes e as locações nos países
onde os eventos aconteceram – que são frisadas
por uma cartela no início – respondem a anseios
muito mais realistas do que espetaculares por parte
de Preminger. A cena que traduz a abordagem preferencial
do filme é aquela em que Dov (Sal Mineo), um
judeu polonês, conta sua experiência em
Auschwitz aos membros da organização paramilitar
clandestina a que quer se filiar. Ocorre então
o que Godard já definira como a característica
premingeriana por excelência: reduz-se o drama
à imobilidade do rosto, e a única coisa
que emerge da escuridão em que se encontra a
sala onde ocorre o interrogatório é a
face perturbada de Sal Mineo, cuja brilhante atuação
garante a eficácia da cena. Mais do que qualquer
cena de soldado alemão estourando os miolos dos
prisioneiros, ou de uma massa de pessoas peladas sendo
executa em câmaras de gás, aquela expressão
facial condensa o terror dos campos de concentração
de forma absurdamente concreta. Não se trata
do testemunho ocular das atrocidades, mas antes de seu
resultado no corpo de quem as presenciou. O terror,
ali, é comprovado por um processo fisiológico
que o corpo desencadeia tendo como centelha ninguém
menos que a memória (o roteirista é Dalton
Trumbo, que depois escreveria e dirigiria Johnny
Vai à Guerra, filme em que a experiência
de guerra é evocada pela mente confusa e traumatizada
de um soldado mutilado).
Como se essa reação de Dov representasse
sua passagem no detector de mentiras (e aí lembramos
de Anatomia de um Crime), o líder do grupo
o aceita. Preminger valoriza essa cena com um tipo de
composição, o close-up em que o rosto
é a única coisa realmente visível,
incomum em seus filmes rodados no formato largo do cinemascope,
ocasião em que ele exercita à exaustão
a profundidade de campo e a multiplicidade de significantes
dentro do quadro. A tela panorâmica permitiu a
Preminger um "enquadramento produtivo": ele
fez a imagem crescer para os lados e (ainda mais) para
o fundo, aumentado sua hospitalidade e abrigando um
número cada vez maior de eventos simultâneos
que se mostrados separadamente não provocariam
o mesmo efeito. Em Exodus há seqüências
inteiras (a exemplo da perseguição dentro
do templo) em que a imagem foi toda ela preenchida com
cuidado, sem deixar ponto morto – um retrato do cineasta
enquanto pintor panoramista (do que os planos de paisagem
são confirmações diretas).
Há quem reclame da lentidão do filme.
Para falar a verdade, há quem reclame da lentidão
de Otto Preminger. Mas essa "marcha lenta"
é simplesmente um de seus maiores méritos
em Exodus e em outros filmes – e é resultado
de uma elegância e de uma parcimônia contemplativa
que, a despeito dos impacientes, jamais pode ser quebrada.
O primeiro plano do filme diz: "Se você não
sente prazer em olhar para o horizonte por alguns segundos,
abandone a sala enquanto é tempo". Aos que
atingem esse prazer, resta maravilhar-se com três
horas e meia em que a capacidade do cinema de tele-transportar
o olhar vai ao infinito. O fato é que Exodus
às vezes instaura uma duração próxima
da pintura. E o curioso é que não se pode
falar muito em pictorialidade na obra de Preminger,
porquanto seu modo de compor e de dinamizar o plano
é sempre pautado em torno dos potenciais do cinema.
Mas suas imagens – principalmente nos filmes em cinemascope,
por óbvias implicações do próprio
formato – pedem um tempo de fruição mais
demorado, beiram a fixidez em alguns momentos, permitem
um percurso do olhar por todos os seus quadrantes. Melhor
para nós: se a cena de Dov chorando sobre o corpo
de Karen durasse um segundo a menos, seria uma pena.
Preminger não foi só um mestre da duração,
foi também um exímio encenador dos ápices
de emoção. Alegria, tristeza, amor, ódio:
esses fatores humanos, esses movimentos profundos do
coração são filmados por Preminger
de uma maneira que, dentro dos seus filmes, parece ser
a única possível.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(VHS Warner, DVD
Fox/MGM)
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