Estamira termina com
a apresentação de um projeto apocalíptico, concebido
pela personagem-objeto do filme. A mulher de cerca de
60 anos, esquizofrênica, catadora em um lixão que dá
título ao filme, enuncia que para “as coisas terem jeito”,
a única solução é a destruição de tudo e uma reconstrução
do zero. E dá sua contribuição a este projeto: “se tiver
que me queimar para as pessoas terem lucidez, tudo bem”.
O efeito dessa afirmação é produzido por contraste,
pela montagem: no começo do filme, ela havia lançado
um manifesto, uma carta de princípios: “A Minha missão,
além de ser a Estamira, é mostrar a verdade e capturar
a mentira”. Entre um momento e outro, somos apresentados
a um rosário de falas que põem em xeque, ou pelo menos
complexificam a relação da personagem com seu projeto:
seu vocabulário singular, seu verdadeiro idioleto, remetem
a uma condição fantasiosa e a uma visão de mundo desligada
da realidade.
Mas o que poderia ser apenas a exótica apresentação
de uma figura de sanidade discutível, graças à montagem
ganha uma vida impressionante. De imediato, o filme
trabalha com um jogo entre a apresentação e a reconstituição
de sua personagem. Mostra-a em sua particularidade,
mas faz ao mesmo tempo a autópsia, universalizante,
de sua problemática. Com isso, traços de seu curioso
vocabulário vão deixando de ser herméticas construções
de loucura e passam a ser signos, pontas de iceberg
de processos. Figuras como o “trocadilo” e os “espertos
ao contrário” começam a fazer sentido não apenas na
cosmogonia de sua loucura, como também na lógica de
sua história. Cada objeto de sua estranha taxonomia
passa a ser conectado a um caso ou personagem de seu
passado, e cada manifestação passa a ser uma postura
em relação ao que lhe aconteceu.
E isso só se torna possível por conta do sistema criado
pelo filme em sua montagem. Diferentemente do que se
pode imaginar até aqui, ele não faz isso legendando
com imagens do passado falas como “aquele que revelou
o homem com o único condicional”, “estou com controle
remoto” ou “não existe inocente, só esperto ao contrário”.
Em vez disso, opta por uma estética do ato-falho. Espelha
no contraplano traços das falas que são revelados nas
histórias. De repente, por conta da junção de imagens
colhidas em momentos diferentes, faz-se uma junção improvável
em um fluxo normal de pensamento.
Por outro lado, entretanto, Estamira padece de
um problema bastante incômodo. A vontade de poesia visual
de seu diretor - um fotógrafo de origem - impõe ao filme
uma forte enciclopédia de clichês imagéticos, o que,
por vezes, acaba por desviar a obra de suas mais fortes
potencialidades. O desejo de fazer um documentário sociologizante
- um dos elementos de origem do projeto, que nasceu
de um ensaio fotográfico do diretor no Aterro Sanitário
de Jardim Gramacho - por vezes se sobrepõe à mecânica
de construção do próprio filme e acaba por recair em
um sistema de glamourização do sofrimento e de estetização
da pobreza que se tornaram standards (veja-se,
por exemplo, o uso dos planos em preto-e-branco do final
de Diário de motocicleta, de Walter Salles).
Isso faz com se tenha que se deparar com trocas de bitola
e formato, ângulos “desafiadores” e imagens de conteúdo
“expressivo” (como o plano que faz dialogarem no céu
sacos plástico ao vento e urubus ou as imagens do lixo
sendo deitado fora de um caminhão, aguardado pelos catadores).
E tudo isso é acompanhado por música grandiloqüente,
por vezes com uma inclinação new age, por outras
com exageros sinfônicos.
Descontados esses arroubos estetizantes, o filme se
prende naquilo que tem de melhor, seus critérios de
edição. Faz isso segundo um processo de construção de
uma memória que não é constituída de fatos, mas de referências.
E num campo de referenciais particulares. Ora, nesse
sentido, Estamira é um filme parente de Spider:
uma narração cujo único narrador é uma figura sem credibilidade
para narrar. O testemunho da personagem é a fonte dos
dados, das informações - são comprovadas apenas por
testemunhos de indução. Uma filha que reconta a mesma
história, um vizinho que reapresenta um caso, fotos
guardadas por um filho. Mas há com um componente a mais:
diferentemente do personagem de Dennis Clegg, Estamira
tem o peso do documental nas costas. O filme, em tese,
é um recorte “do real”; o outro, pretende-se uma cinebiografia.
Mas é, estruturalmente, uma ficção: seu testemunho de
si mesma não pode ser, mas é. E é assim porque seus
absurdos, dentro de sua cabeça e da do montador, fazem
sentido. Não um sentido referenciado no mundo, mas numa
lógica interna, inaugurada pela colagem de planos.
Alexandre Werneck
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