ESTAMIRA
Marcos Prado, Brasil, 2004

Estamira termina com a apresentação de um projeto apocalíptico, concebido pela personagem-objeto do filme. A mulher de cerca de 60 anos, esquizofrênica, catadora em um lixão que dá título ao filme, enuncia que para “as coisas terem jeito”, a única solução é a destruição de tudo e uma reconstrução do zero. E dá sua contribuição a este projeto: “se tiver que me queimar para as pessoas terem lucidez, tudo bem”. O efeito dessa afirmação é produzido por contraste, pela montagem: no começo do filme, ela havia lançado um manifesto, uma carta de princípios: “A Minha missão, além de ser a Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira”. Entre um momento e outro, somos apresentados a um rosário de falas que põem em xeque, ou pelo menos complexificam a relação da personagem com seu projeto: seu vocabulário singular, seu verdadeiro idioleto, remetem a uma condição fantasiosa e a uma visão de mundo desligada da realidade.

Mas o que poderia ser apenas a exótica apresentação de uma figura de sanidade discutível, graças à montagem ganha uma vida impressionante. De imediato, o filme trabalha com um jogo entre a apresentação e a reconstituição de sua personagem. Mostra-a em sua particularidade, mas faz ao mesmo tempo a autópsia, universalizante, de sua problemática. Com isso, traços de seu curioso vocabulário vão deixando de ser herméticas construções de loucura e passam a ser signos, pontas de iceberg de processos. Figuras como o “trocadilo” e os “espertos ao contrário” começam a fazer sentido não apenas na cosmogonia de sua loucura, como também na lógica de sua história. Cada objeto de sua estranha taxonomia passa a ser conectado a um caso ou personagem de seu passado, e cada manifestação passa a ser uma postura em relação ao que lhe aconteceu.

E isso só se torna possível por conta do sistema criado pelo filme em sua montagem. Diferentemente do que se pode imaginar até aqui, ele não faz isso legendando com imagens do passado falas como “aquele que revelou o homem com o único condicional”, “estou com controle remoto” ou “não existe inocente, só esperto ao contrário”. Em vez disso, opta por uma estética do ato-falho. Espelha no contraplano traços das falas que são revelados nas histórias. De repente, por conta da junção de imagens colhidas em momentos diferentes, faz-se uma junção improvável em um fluxo normal de pensamento.

Por outro lado, entretanto, Estamira padece de um problema bastante incômodo. A vontade de poesia visual de seu diretor - um fotógrafo de origem - impõe ao filme uma forte enciclopédia de clichês imagéticos, o que, por vezes, acaba por desviar a obra de suas mais fortes potencialidades. O desejo de fazer um documentário sociologizante - um dos elementos de origem do projeto, que nasceu de um ensaio fotográfico do diretor no Aterro Sanitário de Jardim Gramacho - por vezes se sobrepõe à mecânica de construção do próprio filme e acaba por recair em um sistema de glamourização do sofrimento e de estetização da pobreza que se tornaram standards (veja-se, por exemplo, o uso dos planos em preto-e-branco do final de Diário de motocicleta, de Walter Salles). Isso faz com se tenha que se deparar com trocas de bitola e formato, ângulos “desafiadores” e imagens de conteúdo “expressivo” (como o plano que faz dialogarem no céu sacos plástico ao vento e urubus ou as imagens do lixo sendo deitado fora de um caminhão, aguardado pelos catadores). E tudo isso é acompanhado por música grandiloqüente, por vezes com uma inclinação new age, por outras com exageros sinfônicos.

Descontados esses arroubos estetizantes, o filme se prende naquilo que tem de melhor, seus critérios de edição. Faz isso segundo um processo de construção de uma memória que não é constituída de fatos, mas de referências. E num campo de referenciais particulares. Ora, nesse sentido, Estamira é um filme parente de Spider: uma narração cujo único narrador é uma figura sem credibilidade para narrar. O testemunho da personagem é a fonte dos dados, das informações - são comprovadas apenas por testemunhos de indução. Uma filha que reconta a mesma história, um vizinho que reapresenta um caso, fotos guardadas por um filho. Mas há com um componente a mais: diferentemente do personagem de Dennis Clegg, Estamira tem o peso do documental nas costas. O filme, em tese, é um recorte “do real”; o outro, pretende-se uma cinebiografia. Mas é, estruturalmente, uma ficção: seu testemunho de si mesma não pode ser, mas é. E é assim porque seus absurdos, dentro de sua cabeça e da do montador, fazem sentido. Não um sentido referenciado no mundo, mas numa lógica interna, inaugurada pela colagem de planos.

Alexandre Werneck