ENTREATOS
João Moreira Salles, Brasil, 2004

João Moreira Salles talvez seja o único cineasta brasileiro, hoje, a dialogar diretamente com uma certa cartilha de cinema de não-ficção que se convencionou citar como “cinema-direto”. Profundo admirador de um filme essencial (Primary, de Robert Drew - 1960), do qual bebe diretamente da fonte neste novo trabalho, Salles se lança ao encontro de um personagem que vive (diferentemente da rotina do pianista Nelson Freire, no filme homônimo) o momento de maior crise e possibilidade de reviravolta de sua vida. O Lula, desenhado nos moldes dos personagens típicos dessa escola “documentarista”, é um personagem que traça o trajeto de um homem às vésperas de sua maior realização, do momento deflagrador de um projeto cultivado ao longo de décadas.   

Essa ênfase na figura de Lula enquanto um ator-personagem vivendo os instantes finais do maior papel de sua vida, é que dá ao filme suas características e seu eixo de montagem/roteiro, e que o lança para além das ferramentas da mera reportagem. Salles e Walter Carvalho perseguem os passos e os territórios de Lula construindo uma coleção de instantes elipsados que narram o último mês de campanha do candidato, buscando não o espetáculo pronto dos palanques e dos grandes discursos, mas um certo artesanato discreto de posturas, de articulações políticas, de tensões e alívios, de intimidades fortuitas com a família, de momentos de irritação e alegria – como quem flagra os bastidores, os ensaios-gerais (talvez até um título possível para o filme...) de uma grande ópera em erupção fora-de-quadro.

Nesse jogo de observação constante, Salles deixa de lado alguns ideais de um cinema espião (já aqui negando o idealismo do cinema-direto da velha escola), deixando à vista circunstâncias em que a câmera e o aparato técnico são cerceados ou mesmo cerceiam a atuação de seus personagens. Assim como instantes em que ela se torna uma espécie de cúmplice dos presentes, catalisando o dom de oratória de seus personagens (um flerte com o cinema de Rouch). Da assinatura do diretor que aparece em um primeiro momento em que uma porta é cerrada para a equipe do filme ao momento em que José Dirceu se incomoda com a câmera e pergunta quem afinal “é esse João Salles?”, Entreatos presentifica a tensão existente quando o ato-cinema quer transformar em cena justamente os bastidores de construção de outras cenas.

Os limites (im)possíveis entre os atos e os entreatos, entre o homem público que se insinua vitorioso e o personagem cheio de manias – vontades e hábitos adquiridos ao longo de sua trajetória. Nesse sentido, a cena em que Lula dá uma entrevista sobre o crescimento econômico do país enquanto corta o cabelo e faz a barba em um pequeno salão, é digna de uma boa sátira política, mas também um momento de delicadeza – versando sobre a manutenção do corpo e dos gestos banais diante de uma maratona eleitoral de proporções épicas (não são poucas as cenas em que Lula reclama de algum incômodo corporal, de dores no braço, de nariz congestionado, de cansaço...). Somado a esse painel da máquina política (no qual o personagem de Duda Mendonça aparece sempre como uma espécie de regente) figuram ainda diversos flagrantes memoráveis e crônicas de situações (como o do telefonema de Serra para Lula quando de sua vitória, ou o constrangimento sutil de Heloísa Helena em meio a uma espécie de “culto de marketing” armado por Duda Mendonça para promover a candidatura Lula).

É certo que, em alguns momentos, o filme sofre com o peso do “objeto” que filma, fazendo com que algumas passagens sejam centralizadas majoritariamente pelos conteúdos políticos e retóricos dessa ou daquela fala, ao invés de se focar em sua estruturação estética de imagem e som. Há depoimentos marcantes sobre o MST, sobre Sarney, sobre a relação Governo-Partido e que acabam se sobressaindo à fruição do filme em certos momentos. Um exemplo claro disso é o flash-back equivocado que Salles promove para contar a história do jovem que ganha uma carona no avião de Lula – típica anedota interessante, mas que foge da estruturação de um roteiro que no geral está muito bem amarrado.

Mesmo assim, em terreno minado, Salles e Lacerda (montador) conseguem modular com habilidade as passagens de impostação verbal do “político” e os devaneios mais pessoais (Lula brincando de telefonar para Bush), brincadeiras com os amigos, pequenos afetos possíveis em meio ao turbilhão de estratégias e compromissos. Em um filme construído por fragmentos de 240 horas de material, o trabalho de roteiro, se sobressai pela habilidade sutil de estabelecer comentários, de variar aspectos, de pontuar personalidades, sem precisar optar por um encaminhamento sintético.

O tempo no filme aposta em planos que respeitam a cadência e os silêncios dos personagens, mas que não têm pudores com os momentos de explosão e titubeios: como quando Lula é advertido por um amigo por sempre citar a ladainha de sua “falta de diploma” ou quando o próprio se irrita com o texto cheio de firulas que lhe colocam no “teleprompter”. Em dois planos mais diretamente encenados do filme, essa paciência do olhar que espera por pequenas cenas se armando diante da câmera (prontas para serem enquadradas!), se faz soberana:

Primeiro, no momento em que, depois da vitória, Lula se senta no chão do apartamento ao lado da mulher e ouve (em um profundo e longo silêncio) a sua biografia sendo condensada por um telejornal que anuncia a sua eleição. O olhar do personagem para o vazio é de uma glória angustiada, que o plano sabe respeitar mantendo-se em distância média e sem movimentos. Segundo, no plano final, quando Lula é engolido pela massa de jornalistas (afoitos por cobrir sua primeira aparição pública já eleito) e desaparece da imagem, ficando inalcançável para a câmera de Carvalho. É o flagrante de um Lula que deixa de ser personagem de seu filme e é engolido por algo muito maior. Algo ainda sem quadro possível. Uma imagem que aquela narrativa não pode alcançar. E o filme se encerra nessa (bem-vinda) falta.

Nesse desfecho incompleto, fica exposta uma obra em que Salles aponta, de uma vez por todas, seu talento maior como um cineasta (o termo “documentarista” me parece limitador) da observação paciente e da crônica de personagens do que como um investigador de temáticas. Entreatos é, desde já, um marco de maturidade possível na carreira de um cineasta que por vezes patinou nos vícios das descrições “conteudistas” e que agora nos traz essa interessante continuação do gesto ensaiado em Nelson Freire. Um gesto que, se ainda não encontrou a sua grande arte (a maior beleza do filme certamente não se está em uma destreza autoral), já demonstra firmeza e paixão verdadeira por seu artesanato.

O desafio de esboçar a figura de um futuro presidente da república sem cair em uma frágil celebração da personalidade ou do carisma de seu protagonista, era bem grande. Em algumas cenas, o diretor se rende a armadilha de se preocupar antes com a exposição de artefatos históricos do que com o cinema – momentos em que um sentido de cidadania parece deixar um pouco de lado a expressividade estética do filme e que, não por acaso, podem se tornar monótonos passada a curiosidade do registro. Mesmo assim, João Moreira Salles, sua equipe e seu cinema acabaram por conseguir sair dessa arapuca com apenas alguns (mas bem poucos) arranhões... e, sem dúvida, com um belo filme.

Felipe Bragança