João Moreira Salles talvez seja
o único cineasta brasileiro, hoje, a dialogar diretamente
com uma certa cartilha de cinema de não-ficção que se
convencionou citar como “cinema-direto”. Profundo admirador
de um filme essencial (Primary, de Robert Drew
- 1960), do qual bebe diretamente da fonte neste novo
trabalho, Salles se lança ao encontro de um personagem
que vive (diferentemente da rotina do pianista Nelson
Freire, no filme homônimo) o momento de maior crise
e possibilidade de reviravolta de sua vida. O Lula,
desenhado nos moldes dos personagens típicos dessa escola
“documentarista”, é um personagem que traça o trajeto
de um homem às vésperas de sua maior realização, do
momento deflagrador de um projeto cultivado ao longo
de décadas.
Essa ênfase na figura de Lula enquanto um ator-personagem
vivendo os instantes finais do maior papel de sua vida,
é que dá ao filme suas características e seu eixo de
montagem/roteiro, e que o lança para além das ferramentas
da mera reportagem. Salles e Walter Carvalho perseguem
os passos e os territórios de Lula construindo uma coleção
de instantes elipsados que narram o último mês de campanha
do candidato, buscando não o espetáculo pronto dos palanques
e dos grandes discursos, mas um certo artesanato discreto
de posturas, de articulações políticas, de tensões e
alívios, de intimidades fortuitas com a família, de
momentos de irritação e alegria – como quem flagra os
bastidores, os ensaios-gerais (talvez até um
título possível para o filme...) de uma grande ópera
em erupção fora-de-quadro.
Nesse jogo de observação constante, Salles deixa de
lado alguns ideais de um cinema espião (já aqui negando
o idealismo do cinema-direto da velha escola), deixando
à vista circunstâncias em que a câmera e o aparato técnico
são cerceados ou mesmo cerceiam a atuação de seus personagens.
Assim como instantes em que ela se torna uma espécie
de cúmplice dos presentes, catalisando o dom de oratória
de seus personagens (um flerte com o cinema de Rouch).
Da assinatura do diretor que aparece em um primeiro
momento em que uma porta é cerrada para a equipe do
filme ao momento em que José Dirceu se incomoda com
a câmera e pergunta quem afinal “é esse João Salles?”,
Entreatos presentifica a tensão existente quando
o ato-cinema quer transformar em cena justamente os
bastidores de construção de outras cenas.
Os limites (im)possíveis entre os atos e os entreatos,
entre o homem público que se insinua vitorioso e o personagem
cheio de manias – vontades e hábitos adquiridos ao longo
de sua trajetória. Nesse sentido, a cena em que Lula
dá uma entrevista sobre o crescimento econômico do país
enquanto corta o cabelo e faz a barba em um pequeno
salão, é digna de uma boa sátira política, mas também
um momento de delicadeza – versando sobre a manutenção
do corpo e dos gestos banais diante de uma maratona
eleitoral de proporções épicas (não são poucas as cenas
em que Lula reclama de algum incômodo corporal, de dores
no braço, de nariz congestionado, de cansaço...). Somado
a esse painel da máquina política (no qual o personagem
de Duda Mendonça aparece sempre como uma espécie de
regente) figuram ainda diversos flagrantes memoráveis
e crônicas de situações (como o do telefonema de Serra
para Lula quando de sua vitória, ou o constrangimento
sutil de Heloísa Helena em meio a uma espécie de “culto
de marketing” armado por Duda Mendonça para promover
a candidatura Lula).
É certo que, em alguns momentos, o filme sofre com o
peso do “objeto” que filma, fazendo com que algumas
passagens sejam centralizadas majoritariamente pelos
conteúdos políticos e retóricos dessa ou daquela fala,
ao invés de se focar em sua estruturação estética de
imagem e som. Há depoimentos marcantes sobre o MST,
sobre Sarney, sobre a relação Governo-Partido e que
acabam se sobressaindo à fruição do filme em certos
momentos. Um exemplo claro disso é o flash-back equivocado
que Salles promove para contar a história do jovem que
ganha uma carona no avião de Lula – típica anedota interessante,
mas que foge da estruturação de um roteiro que no geral
está muito bem amarrado.
Mesmo assim, em terreno minado, Salles e Lacerda (montador)
conseguem modular com habilidade as passagens de impostação
verbal do “político” e os devaneios mais pessoais (Lula
brincando de telefonar para Bush), brincadeiras com
os amigos, pequenos afetos possíveis em meio ao turbilhão
de estratégias e compromissos. Em um filme construído
por fragmentos de 240 horas de material, o trabalho
de roteiro, se sobressai pela habilidade sutil de estabelecer
comentários, de variar aspectos, de pontuar personalidades,
sem precisar optar por um encaminhamento sintético.
O tempo no filme aposta em planos que respeitam a cadência
e os silêncios dos personagens, mas que não têm pudores
com os momentos de explosão e titubeios: como quando
Lula é advertido por um amigo por sempre citar a ladainha
de sua “falta de diploma” ou quando o próprio se irrita
com o texto cheio de firulas que lhe colocam no “teleprompter”.
Em dois planos mais diretamente encenados do filme,
essa paciência do olhar que espera por pequenas cenas
se armando diante da câmera (prontas para serem enquadradas!),
se faz soberana:
Primeiro, no momento em que, depois da vitória, Lula
se senta no chão do apartamento ao lado da mulher e
ouve (em um profundo e longo silêncio) a sua biografia
sendo condensada por um telejornal que anuncia a sua
eleição. O olhar do personagem para o vazio é de uma
glória angustiada, que o plano sabe respeitar mantendo-se
em distância média e sem movimentos. Segundo, no plano
final, quando Lula é engolido pela massa de jornalistas
(afoitos por cobrir sua primeira aparição pública já
eleito) e desaparece da imagem, ficando inalcançável
para a câmera de Carvalho. É o flagrante de um Lula
que deixa de ser personagem de seu filme e é engolido
por algo muito maior. Algo ainda sem quadro possível.
Uma imagem que aquela narrativa não pode alcançar. E
o filme se encerra nessa (bem-vinda) falta.
Nesse desfecho incompleto, fica exposta uma obra em
que Salles aponta, de uma vez por todas, seu talento
maior como um cineasta (o termo “documentarista” me
parece limitador) da observação paciente e da crônica
de personagens do que como um investigador de temáticas.
Entreatos é, desde já, um marco de maturidade possível
na carreira de um cineasta que por vezes patinou nos
vícios das descrições “conteudistas” e que agora nos
traz essa interessante continuação do gesto ensaiado
em Nelson Freire. Um gesto que, se ainda não
encontrou a sua grande arte (a maior beleza do filme
certamente não se está em uma destreza autoral), já
demonstra firmeza e paixão verdadeira por seu artesanato.
O desafio de esboçar a figura de um futuro presidente
da república sem cair em uma frágil celebração da personalidade
ou do carisma de seu protagonista, era bem grande. Em
algumas cenas, o diretor se rende a armadilha de se
preocupar antes com a exposição de artefatos históricos
do que com o cinema – momentos em que um sentido de
cidadania parece deixar um pouco de lado a expressividade
estética do filme e que, não por acaso, podem se tornar
monótonos passada a curiosidade do registro. Mesmo assim,
João Moreira Salles, sua equipe e seu cinema acabaram
por conseguir sair dessa arapuca com apenas alguns (mas
bem poucos) arranhões... e, sem dúvida, com um belo
filme.
Felipe Bragança
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