O EFEITO PREMINGER

A Imagem

Otto Preminger é o mais obscuro cineasta "americano" da sua estatura e geração. A literatura sobre Preminger em livros não é numerosa, especialmente em português (o único bom material, até onde sei, é a entrevista disponível em Afinal, quem faz filmes?, de Peter Bogdanovich). O prazer com que cultivava a imagem do alemão cruel fora com muita freqüência (como costuma ocorrer com cineastas atores) confundida com seus filmes a ponto de, para muita gente, este judeu vienense que chegou nos EUA fugindo do nazismo ser mesmo o oficial nazista de Inferno No.17, de Wilder. A reputação critica do Preminger pós-Laura sempre foi baixa: mesmo nos anos 50, quando de um modo geral filmes como O Homem do Braço de Ouro ou Anatomia de um Crime eram tidos como cínicas tentativas de ganhar dinheiro causando polêmica, parte de seus fãs franceses viam nele um triunfo de forma, o que, se tinha sua parcela de verdade, não escondia uma visão limitada e limitadora do seu cinema. Mais tarde seus fãs americanos se esconderiam por trás de um manto da objetividade igualmente problemático. A partir dos anos 70, o culto a Preminger se torna limitado a uns poucos guetos cinéfilos a ponto de ele hoje provavelmente ter uma reputação pior do que na época em que alguns fãs começaram a apontá-lo como autor importante (o francamente burro verbete do dicionário de cineastas do Rubens Ewald Filho é um ótimo exemplo disso).

Em Preminger esta confusão entre figura pública e obra é bastante interessante, por ser amplamente incentivada pelo cineasta. De certa forma, Preminger sempre trabalhou em valorizar a imagem do "homem que amamos odiar". O cineasta construiu esta imagem com tamanho cuidado que se olharmos para duas cinebiografias de atrizes que devem o primeiro empurrão da carreira a ele, uma experimental (From the Journals of Jean Seberg, de Mike Rappaport) e outra bastante convencional (Dorothy Dandrige – O Brilho de uma Estrela, de Martha Coolidge), terminamos por concluir que cada uma delas traz quase a mesma versão sobre a figura do cineasta. Por que Preminger gostava de ser visto desta maneira? Muito porque uma confusão de recepção faz parte da estratégia da construção das imagens do diretor; para ele a sua imagem pública devia ser construída seguindo os mesmos preceitos da sua imagem cinematográfica. Há algo que pode ser definido como o efeito Preminger: uma imagem que trabalha a partir de correntes contraditórias, uma imagem que se auto-cancela e termina por nos deixar diante de um enigma maior do que aquele que tínhamos quando começamos. Este efeito será formalmente radicalizado a partir de A Primeira Vitória (1965), quando tem início de certa forma a melhor e mais obscura fase da carreira do cineasta. Onde muitos viam apenas uma progressiva vulgarização, atração pelo grotesco ou completo formalismo vazio, escondia-se uma das mais pessoais meditações sobre a forma cinematográfica e suas possibilidades de se relacionar com o mundo. Mas deixemos isso para mais tarde.

A carreira de Preminger pode facilmente ser dividida em fases. Primeiro, vemos os melodramas da Fox (onde se destacam, sobretudo, Laura e Agonia de Amor), quase sempre estranhos filmes policiais de baixo orçamento cuja estética, como bem observou Andrew Sarris, estava bem à frente da de outros filmes similares da época. Preminger nesta altura se vê trabalhando com a expectativa de entregar um clássico produto de gênero que vai contra a sua personalidade, e muito da força dos filmes nasce do desarranjo entre conteúdo e expectativa do espectador, além da fluida forma com que Preminger apresenta o drama, que nunca o intensifica da maneira esperada. Pensemos em Laura, geralmente visto como um clássico filme noir, com seus personagens com motivações bizarras, seu estranho ritmo e valorização da forma sobre o texto, e coloquemos-no ao lado de um Siodmak ou Dassin da mesma época. Sem negar qualidades aos dois diretores citados, mas estamos num outro universo. O estilo de Preminger já nesta fase não mostra espaço quase para a ilustração convencional (quase não veremos closes ou planos de reação, por exemplo).

No início da década de 50 duas novidades se introduziriam para o cineasta: a possibilidade funcionar como cineasta independente e o cinemascope. Num primeiro momento ele irá alternar projetos de estúdio com pessoais. Será aqui que se radicalizará a tendência anti-realista dos filmes da fase Fox. Basta pensar na forma como O Rio das Almas Perdidas supervaloriza o artifício de sua locação em estúdio. Trata-se do único faroeste 100% falso e desassociado da História americana pré-faroestes italianos, um filme tão artificial que termina por se revelar totalmente abstrato e aparte do gênero que é o mais concreto e materialista do cinema americano. Não se trata de um dos pontos altos da carreira de Preminger, mas é um filme fascinante pela forma que expõe seus pontos e dinamita as bases nas quais supostamente se constrói. É Preminger radicalizando sua proposta inicial de cinema e dando adeus à Fox, onde até então vinha desenvolvendo carreira. O processo se reproduz numa outra chave em Carmem Jones, musical com elenco negro cujo valor e importância é quase o oposto a esta curiosidade inicial. Novamente o mergulho no artifício aqui termina por denunciar o próprio projeto. O que aparenta ser o mais perfeito dos filmes politicamente carretos termina por se revelar justamente como um filme que afirma o que existe de reacionário e segregacionista na sua proposta inicial. A certa altura de seu ótimo ensaio sobre Preminger, Sarris reclama que o diretor "por vezes parece trabalhar para destruir aquilo que tão cuidadosamente criou".

Neste sentido, é perfeita a observação de Jonathan Rosenmbaum de que Diga que me Ama, Junie Moon aparenta ser um "melodrama convencional, montado por um diretor experimental". Advogado de formação e com a experiência de ter observado a ascensão nazista de perto, Otto Preminger sempre revelou uma grande preocupação para com os perigos da retórica e da construção de discursos, o que vale para o cinema tanto como para a lei (Anatomia de um Crime), a política (Tempestade sobre Washington), a Igreja (O Cardeal) ou A Guerra Fria (O Fator Humano). Passado o surto do artificialismo de meados dos anos 50, será justamente uma série de filmes bastante naturalistas e balanceados sobre grandes organizações que marcará a próxima fase do diretor. Será também o seu apogeu de popularidade, e ainda é por estes filmes (e Laura) que Preminger é lembrado hoje.

O Espaço

Otto Preminger começou a vida artística como um homem de teatro. Segundo ele mesmo, esta formação definiu a direção estética que seus filmes iriam tomar. Graças ao teatro, Preminger aprendeu a olhar todo filme como um drama espacial. Daí sua preferência por planos abertos e preferencialmente longos que dominariam toda a sua filmografia. Daí também sua atenção para a distância entre corpos e objetos e toda uma preocupação com as locações. Em Preminger, o espaço sempre expressa algo. Há um pequeno momento em Anatomia de um Crime que ilustra isso bem. O advogado de defesa (James Stewart) se irrita porque o promotor resolvera se posicionar entre a sua visão e a da testemunha (de defesa). O promotor sabe que, colocando-se entre dois olhares, prejudica a possível comunicação advogado/testemunha, ele conhece o espaço do tribunal e o domina. É um personagem típico de Preminger, ainda mais em Anatomia de um Crime, em que os dois advogados funcionam como diretores de cinema, já que o filme transforma o ato de montar um caso pró ou contra um personagem num exercício de mise en scène cinematográfico (Preminger também era advogado). A Lei em Anatomia de Um Crime não está preocupada com a verdade, mas com argumentos bem expostos. Cada um dos advogados trabalhara a estuprar os fatos de forma a lhe melhor servir (sabemos que o advogado de Stewart, apesar de ser o "herói", defende um homem culpado). É um filme bastante triste, porque Preminger sabe que a câmera mente o tempo todo, por mais que ele esteja engajado em buscar exprimir honestamente sua visão sobre qualquer que seja o assunto.

Um ainda melhor exemplo do domínio que Preminger exerce sobre o espaço pode ser buscado na última cena de seu último filme, O Fator Humano (1979). A ação é bem simples: um homem e uma mulher separados por uma longa distância conversam ao telefone. Preminger a coloca numa típica casa inglesa rodada numa locação, enquanto ele está no que deveria ser um hotel, rodado num estúdio cuja parca direção de arte não disfarça tratar-se de um cenário. O violento contraste entre estes dois espaços exprime mais sobre o isolamento e a necessidade de contato das duas partes do que os eficientes atores e o texto. O que à primeira vista podia ser um defeito, a pobreza de uma das locações, se torna parte essencial da estratégia para intensificar o melodrama que ocorre na ação. Um belo exemplo da habilidade de Preminger em transformar aquilo que seria uma limitação em virtude. Parece-me vital afirmar a importância do cinemascope nos filmes de Preminger (e é urgente um estudo sobre como o mais expressivo uso de scope dentro do cinema americano dos anos 50 veio de ex-diretores teatrais como Preminger, Ray e Cukor). Segundo o próprio diretor, ele logo se interessou pelo formato porque, apesar de tornar o trabalho mais complicado, permitia ao espectador o contato com um número maior de informações. Mais espaço equivale a uma liberdade maior para o olhar, segundo Preminger. Liberdade essa que seria essencial para os seus métodos.

Um filme-chave das relações de Preminger com o espaço cênico e também da evolução de sua carreira é O Homem do Braço de Ouro. Realizado num momento de transição na carreira do diretor, em que a fase mais bizarra e artificial começava a abrir espaço para os épicos realistas da virada 50/60, trata-se de um extremamente claustrofóbico filme sobre um viciado em heroína que tenta se afastar da droga. A atuação de Frank Sinatra é o único elemento realista, neste filme desbalanceado e barroco. Sinatra se movimenta por um bairro construído em estúdio (uma rua e meia dúzia de locações), as personagens ao seu redor são todas ou excessivamente más ou excessivamente inocentes. A atuação de Sinatra é de uma dedicação e simplicidade pungentes. Ele parece tão obcecado em mostrar que pode interpretar um viciado bem quanto seu personagem está em provar que pode viver longe da heroína. Ao mesmo tempo seu charme natural de performer e seus métodos de atuação fazem com que tudo tenda a uma certa simplicidade (caso Preminger tivesse optado por Marlon Brando, segundo o diretor o único outro ator cogitado, teria terminado com um filme bem diferente). Preminger pensa o filme todo a partir de uma estratégia de confronto personagem/ambiente e ator/espaço. Em cada plano, a câmera é posicionada de forma a atacar Sinatra. O Homem do Braço de Ouro é um sofisticadíssimo filme que termina por fazer uma paródia via falseamento de filmes-mão-pesada. Há aqui uma série de signos carregados (do texto à trilha sonora), mas, apesar de todos eles, o que termina por se sobressair é propositalmente um simples ator. O espaço asfixiante não engole Sinatra, e depois disso Preminger o abandonou, e quando finalmente o retomou no final dos anos 60 foi a partir de uma nova perspectiva.

O Contador

Uma habitual acusação usada contra Otto Preminger é de que se trataria de um diretor com a mentalidade de um produtor. Nossa cinefilia nunca se livrou de um saudável sentimento romântico que tende a gerar algumas distorções. Vibramos com as histórias de um Stroheim e torcemos o nariz para diretores cujo comportamento julgamos por demais pragmático. Pois bem, Otto Preminger nunca estourou um orçamento e desde o sucesso de Laura não se conhece histórias de seus desentendimentos com produtores. Por outro lado, desde meados dos anos 50 teve controle total sobre todos os seus filmes. Dentro desta mentalidade se esconde um diretor com completa consciência da sua posição dentro da industria cinematográfica americana. Poucos cineastas que iniciaram carreira na mesma época que ele (Huston, Wilder, Fleischer) realizaram filmes até 1979. Preminger foi uma cria do sistema de estúdios que soube muito bem se guiar por ele, assim como pelas mudanças posteriores de Hollywood.

Mover-se por sistemas é uma constante na filmografia de Preminger. Em especial no período do final dos anos 50 e início dos 60. Cada filme desta fase é realizado de forma a fazer um mergulho exploratório seja nos meandros do judiciário, da formação de Israel, do Estado ou das forças armadas. Estes filmes se constroem num espaço entre o particular e o genérico. Numa cena de A Corte Marcial de Billy Mitchel, filme sobre a formação da aeronáutica americana que serviu de ensaio para os filmes posteriores, o personagem-título fica horrorizado diante da sugestão de que sua crítica à incompetência do exército fosse um ataque aos seus superiores. O mais fascinante destes filmes-painel de Preminger é como eles negociam estas duas esferas, a das instituições públicas e a dos sentimentos privados. De forma a se guiar por elas, aproximá-las e afastá-las. São filmes que buscam uma ampla exposição que tentam ser equilibrados na sua exposição dos mais diversos pontos de vista (lembram bastante nisso Agonia de um Amor, melodrama romântico do período da Fox em que Preminger lentamente apresenta a Joan Crawford os prós e os contras de seus dois pretendentes). Noções e possibilidades de liberdade é o que está no centro de todos estes filmes.

Podemos usar qualquer um deles como exemplo, mas fiquemos com O Cardeal (1963), um estudo das relações da Igreja com um sem número de temas polêmicos na primeira metade do século que chega a seu clímax no reencontro de Preminger com a sua Áustria na ascensão do nazismo. O personagem-título, cuja subida dentro da burocracia da igreja o filme acompanha, é interpretado por Tom Tryon, ator simpático e limitado, cujas deficiências tornam-no uma figura ainda mais ambígua. Pensemos em duas passagens: na primeira, uma série de ações dele termina por levar a irmã ao suicídio após engravidar; na outra, acaba espancado ao ajudar um padre negro no sul dos EUA. Ele não é nem vilanesco na primeira, a despeito da sua intolerância, nem especialmente heróico na segunda. O Cardeal alcança seu ápice nas cenas na Áustria (em especial as com Romy Scheneider) onde a imagem panorâmica de Preminger conspira para melhor expressar a sensação de desconexão que transpassa o filme. O Cardeal é um filme de memórias em que o homem que as revisita parece nunca estar de fato nelas. É um grande épico construído a partir de uma descoberta íntima de que uma moral abstrata nem sempre funciona numa situação concreta.

O Melodrama

Ainda hoje, torcemos o nariz para o melodrama, o vemos como manipulador, pouco digno etc (basta observar as geralmente desastrosas tentativas de reescrever os filmes de Douglas Sirk). De Laura a O Fator Humano, Otto Preminger sempre se marcou como um diretor de melodramas. Quanto mais melodramática a situação mais à vontade o diretor se sente em lançar um olhar sobre ela (pensemos no senador chantageado a contemplar o suicídio em Tempestade sobre Washington). Uma das maiores falácias das análises de Preminger é aquela que o critica como diretor frio. Não há nada de frio em Preminger, assim como Rossellini – outro grande diretor de melodramas com fama de frio –, ele simplesmente chega ao drama por caminhos menos convencionais. Os filmes de Otto Preminger exigem do espectador um interesse maior de se envolver com a imagem. Dado este primeiro passo, seus filmes chegam a se revelar bastante excessivos.

Da mesma forma a tão propalada objetividade de Otto Preminger é quase o oposto. Ela nasce de uma grande identificação com todas as personagens. Se há equilíbrio em Preminger ele surge justamente de um excesso de desequilíbrio a cada ponto de vista de um personagem defendido com tamanha paixão, e o filme termina por vezes soando como tão equilibrado que termina visto como uma exposição fria e objetiva. Não que Preminger não pudesse quando de seu interesse expelir um personagem do paraíso com o máximo de crueldade. Na verdade, apesar de toda literatura sobre o equilíbrio e justiça de Otto Preminger, boa parte de seus filmes contém personagens que o diretor vê sem nenhuma simpatia, e para isso não há necessidade sequer de invocarmos as gárgulas que rodeiam Sinatra em O Homem do Braço de Ouro. Preminger se interessa por Richard Attenborough em O Fator Humano, mas os demais cabeças da inteligência britânica são tratados com desprezo. O filme, por sinal um triunfo de melodrama, é justamente sobre a crise do sentimento humano num universo frio e absurdamente abstrato. Fala sobre espiões e guerra fria, mas podia igualmente falar de nossas economistas e seus números.

O Nada

A visão de Otto Preminger sempre foi marcada por uma certa negatividade. Em meados dos anos 60, seu pensamento cinematográfico consolidou uma transformação. A sua tendência a trabalhar contradições sofre uma radicalização. A partir de A Primeira Vitória as contradições de Preminger passam a se construir num mergulho rumo ao auto-cancelamento. A fórmula da fase final de Preminger pode ser grosseiramente vista como um oposto de Eisenstein: cada imagem existe para negar outra. Cada ação trabalha para cancelar uma anterior. O resultado final é sua própria inexpressividade (Setembro Negro, de 1975, é o limite desta proposta, um filme todo pensado para expressar sua falta de expressão). Os créditos finais de A Primeira Vitória são um exemplo perfeito disso: uma série de imagens quase abstratas de ondas e tempestades se sucede até perder completo significado. O replay da trama que acompanhamos nos 160 minutos que apanham a marinha americana de Pearl Harbor até a tal primeira vitória, mas que termina no trajeto por cancelar de tal forma cada ação que o sentimento que temos no final certamente não é o de vitória.

Estes filmes de Preminger, longe de um mero niilismo, revelam sim um enorme senso de revolta. Os filmes finais de Preminger escondem na sua negatividade um olhar de profundo desconforto para com o mundo que suas imagens revelam. Pensemos em Skidoo se Faz a Dois (1968), seu filme sobre a contracultura, uma espécie de parada de caricaturas bizarras inspiradas pelas experiências do diretor com LSD e que podiam tranqüilamente se encontrar numa coletânea de Robert Crumb. Filme de profunda negatividade e confusão cujo humor está mais para o grotesco do que para engraçado (Groucho Marx interpreta um mafioso-empresário chamado Deus, por exemplo) e cujo elenco é uma parada de ex-estrelas no ostracismo. A idéia de fracasso passa pelo filme todo (Preminger parece consciente de que de certa forma o filme não tem como "funcionar") e se ele termina por se revelar um sucesso é em muito devido à sua auto-consciência sobre o que é e da forma como o diretor leva a sua proposta ao extremo. De certa forma é como se naquela altura de sua carreira Preminger se transformasse num Robert Aldrich que usasse do seu profundo controle formal para construí seu ataque.

O Fator Humano é o movimento final desta escalada e o testamento e melhor filme do cineasta. É um anti-thriller de Guerra Fria baseado num livro de Graham Greene, que inverte a premissa favorita dos livros de espionagens dito sérios: a busca pelo traidor do serviço de inteligência, só que vista pelo ponto de vista do próprio. A paisagem de O Fator Humano é de aparente harmonia e inexpressividade, enquanto Preminger vai revelando seus fragmentos de ansiedade, claustrofobia e medo. Os ingleses sabem que há um vazamento numa pequena seção voltada para a África do Sul, com apenas dois funcionários, um deles (o traidor) é um sujeito medíocre, apolítico, sem grandes ambições e casado com uma africana que ele conheceu quando trabalhou na África do Sul, seu parceiro é um jovem ambicioso com simpatias moderadamente de esquerda; os superiores fazem os cálculos e decidem, pelo perfil, tratar-se do culpado, e resolvem se livrar do problema. Preminger constrói um eficiente jogo de oposição entre arte e política, as mesmas razões que tornam a figura do traidor simpática para o espectador (o tal fator humano do título) é o que faz dele o traidor. O Fator Humano funciona como um estranho pesadelo onde o melodrama se torna a última reserva. Jogado num conflito entre duas partes que se gabam por estarem amparadas pela lógica, o protagonista – o mais decente da filmografia do diretor – só pode reagir atônito. O que se faz quando o racional desandou no irracional? Para Otto Preminger, ataca-se a sensibilidade do espectador com um filme como O Fator Humano.


Filipe Furtado