Em 2001, Ben Stiller dirigiu um filme chamado Zoolander.
Para além do fato de ser uma comédia hilária,
cheia de ótimos momentos, o que ninguém
sabia então é que ali começava
a se formar, de fato, um dos mais consistentes "grupos
cômicos" de atores que agora deixam sua marca
definitiva na história da comédia americana
com estes dois filmes - Com a Bola Toda e O
Âncora. É em Zoolander que trabalham
juntos pela primeira vez os três principais nomes
do grupo: Ben Stiller, Owen Wilson e Will Ferrell.
Stiller já tinha, então, uma numerosa
carreira como ator (cujo ápice pode ser colocado
em Quem Vai Ficar com Mary?) e diretor/escritor
(tendo, por exemplo, realizado o muito estranho O
Pentelho, com Jim Carrey, em 1996), tendo começado
em cinema e TV no fim dos anos 80. Ele trabalhou com
Owen Wilson em alguns filmes anteriores (inclusive o
"sério" Uma Vida Alucinante),
mas pode-se dizer que sua parceria cômica reforça-se
mesmo é em Entrando numa Fria (2000),
onde Wilson faz um pequeno papel como o noivo anterior
da futura esposa de Stiller. Wilson é o parceiro
principal do cineasta Wes Anderson, seu colega de juventude
que co-escreve com ele todos os seus filmes desde Adrenalina
Pura/Bottle Rocket - o ultra-independente filme
de estréia de ambos, de 1997. Wilson criou uma
carreira para além dos filmes de Anderson, com
destaque para a parceria com Jackie Chan (claramente
o cara sabe com quem se associar) em Bater ou Correr.
Mas, o que Zoolander trouxe de novo para a trupe
foi o humor insano e sem limites de Will Ferrell. Filhote
de uma fase não especialmente inspirada do programa
televisivo (e celeiro de cômicos importantes dos
EUA desde o fim dos anos 70 - Stiller inclusive tem
breve passagem pelo programa no fim dos anos 80) Saturday
Night Live, Ferrell vinha de uma série de
papéis nas adaptações para cinema
de esquetes pouco inspirados do programa, como A
Night at the Roxbury (traduzido aqui como Os
Estragos de Sábado à Noite), Superstar
ou O Tigrão (The Ladies' Man),
além de um papel de menos destaque nos dois primeiros
Austin Powers. Uma vez que conseguiu se livrar
de seus colegas (bem) menos engraçados de geração
(Chris Kattan, Jimmy Fallon, Tim Meadows), Ferrell finalmente
encontra sua verdadeira família cômica
em Zoolander.
É verdade que os três juntos realizaram
apenas mais um filme de fato (Starsky e Hutch,
não-lançado em cinema no Brasil para além
de São Paulo, mas já disponível
em DVD e criticado na revista este mês), mas o
que se marca daí por diante é a idéia
da criação deste grupo (que conta ainda,
por exemplo, com Vince Vaughn, e com o irmão
de Owen, Luke), do qual Stiller, Wilson e Ferrell podem
ser considerados os líderes pelo simples fato
de serem aqueles que não apenas atuam como também
têm uma carreira como roteiristas (e diretor,
no caso de Stiller) - o que certamente nos deixa ter
a certeza de que, se encontramos uma marca um tanto
semelhante nos trabalhos desta "gangue", isso
vem da união destes três nomes a partir
de Zoolander - e cujo outro filme "coletivo"
é o lançado-direto-em-locadoras-no-Brasil
Dias Incríveis (Old School).
Para além de qualquer um dos filmes (e dos
dois que analisaremos a seguir), o mais importante hoje
é marcar a existência deste grupo (confirmada
dentro do próprio O Âncora com a
antológica sequência da briga de equipes
de TV), porque ele nos parece tão importante
na comédia americana quanto qualquer outra trupe
que a marcou (pensemos na de Mel Brooks, ou na dos irmãos
Zucker e Jim Abrahams, para ficar nas mais recentes
a terem impacto). Afinal, se em vários filmes
eles aparecem em duplas apenas (Vince Vaughn e Ben Stiller
em Com a Bola Toda, Will Ferrell e Vince Vaughn
em O Âncora), pode-se dizer mesmo assim
que há um registro específico deste grupo
que torna os filmes parte de uma mesma equipe. E a tendência
é que, a continuar os resultados destes meros
quatro anos de colaboração intensa, esta
galera vai influenciar muita gente entre eles e em torno
deles (ainda que, em termos de público, seus
filmes pareçam funcionar muito mais nos EUA,
onde estes dois filmes aqui criticados, por exemplo,
foram grande sucesso de público - tendo passado
quase desapercebidos pelo Brasil, onde Will Ferrell,
por exemplo, ainda é um quase desconhecido).
* * *
Feitas as mais do que devidas apresentações,
vamos então aos dois filmes em questão.
O primeiro ponto em comum entre eles fica visível
já no título original em inglês
dos dois: ambos trazem uma peculiar formatação
com um substantivo isolado, seguido de um subtítulo
absolutamente inesperado. Os dois subtítulos
dão um dos tons cômicos que os filmes usam
com frequência: o de uma comicidade perto do absurdo,
tanto mais por aparentar uma seriedade deslocada. Este,
afinal, sempre foi um dos encantos dos papéis
que Will Ferrell e Ben Stiller gostam de interpretar
(e o fazem nestes filmes): figuras claramente deslocadas
de qualquer "naturalismo", absurdamente estranhas
ao mundo que as cerca, mas totalmente inconscientes
de sua própria comicidade, de sua inadequação.
A única diferença é que Dodgeball
é mais cômico até no título
(que é o nome em inglês do nosso querido
jogo de queimado - para os cariocas, queimada para os
paulistanos), que é tornado "sério"
pelo subtítulo - que dá uma aparência
de "filme com lição" ("uma
autêntica história dos menos favorecidos"
seria uma tradução possível). Já
em O Âncora, é a conjunção
das duas partes do título com o filme que dão
graça a esta "Lenda" de Ron Burgundy.
Ambos, claro, criam um jogo de referencialidade com
gêneros (no primeiro caso, com os chamados "filmes
de esporte", onde uma equipe altamente improvável
será formada, atravessará obstáculos
quase impossíveis, e sairá vitoriosa no
final; no segundo, os filmes biográficos, sobre
personas importantes com histórias de vida "vencedoras"),
mas para além disso o que importa aqui é
brincar justamente com a noção de "vencedores",
de "heróis". Porque Peter La Fleur
(o protagonista de Com a Bola Toda) e sua trupe
representam tudo aquilo que é menos prezado por
uma certa visualidade moderna (um dono de academia que
defende a preguiça e a falta de profissionalismo
do seu espaço de exercícios), enquanto
Ron Burgundy é um machista que resiste aos modernos
tempos da "revolução feminina"
dos anos 70. Estes são nossos heróis,
aqueles para quem estaremos "torcendo". Ou
seja, discretamente, ambos os filmes inserem uma estranheza
bastante latente naquilo com que pedem a adesão
do espectador dos anos 2000 - em muitos momentos, aliás,
francamente ofensivos ao "gosto médio"
de uma sociedade como a americana (basta pensarmos na
revelação final da "mocinha"
de Com a Bola Toda - "I'm bisexual!",
comemorada por La Fleur/Vaughn). Da mesma forma, uma
das piadas finais de O Âncora (quando o
personagem quase demente de Chip tem seu futuro revelado
- numa ironia com aqueles típicos finais "o
que acontece com eles depois do filme") é
a mais contundente crítica ao governo Bush vista
no cinema americano ("ele se torna um dos principais
conselheiros da administração Bush").
Se pensamos nesta questão dos heróis improváveis,
e a juntamos com a outra grande característica
do humor destes filmes (sua disposição
de unir o mau gosto mais radical com piadas de uma inteligência
fina), é impossível não pensar
nos irmãos Farrelly como uma referência.
E, de fato, embora seja possível buscar este
paralelo, há importantes diferenças de
tom entre os filmes - principalmente um humor um tanto
mais despreocupado e "feliz", por assim dizer
(enquanto os Farrelly várias vezes chegam às
raias do incômodo radical, ofensivo mesmo). O
"mau gosto" aqui é, na maior parte
das vezes, menos visual e temático do que só
cômico mesmo (a ereção de Burgundy,
o jogo de queimado com as escoteiras). Desafiam a aceitação
de "bom gosto" cinematográfico do espectador
médio, mas não desorganizam completamente
seu universo, como os Farrelly fazem. O espectador está
mais para dizer "que sem-graça!" do
que "que horror!".
Mas, isso não diminui em nada o humor de Ferrell/Stiller,
porque eles têm uma outra qualidade que os Farrelly
começaram a explorar mais funcionalmente agora,
em Ligado em Você:
a estrutura narrativa que mistura o humor (furioso nos
Farrelly, anárquico aqui) com um desejo de conexão
com uma história a ser acompanhada e aderida
pelo espectador. Neste sentido, O Âncora se
estrutra como uma retomada de uma comédia romântica
bastante aproximada dos casais dos anos 30/40 do cinema
americano - e aqui precisamos fazer menção
à interpretação inspirada de Christina
Applegate, a quem é dada a ingrata tarefa de
fazer não só o interesse romântico
de Will Ferrell, como também contracenar com
todo um elenco masculino beirando a sandice, enquanto
faz uma mistura de "straight lady" (não
no sentido sexual, mas em ser uma personagem "séria").
Ela se sai maravilhosamente bem neste domínio,
revelando nela uma comicidade tranquila das mais desconhecidas.
Já Com a Bola Toda tem sua seriedade dividida
entre Vaughn e seu interesse romântico, que contracenam
com personagens como "Steve, o Pirata" - uma
das mais espertas piadas do filme, brincando com o típico
golpe dos "filmes de esporte" onde a cada
membro da equipe é dada uma característica
que o distingua e o identifique com a platéia
(neste caso, ele simplesmente se comporta como se estivesse
num filme de piratas). E, embora Christine Taylor (aliás,
a sra. Stiller na vida real) segure as pontas, é
Vaughn quem dá mais o tom "deslocado"
do filme.
Mas, o que não se pode perder de vista, nesta
mistura com o mau gosto ostensivo, é a inteligência
da comédia dos dois filmes. Inteligência
esta que tem várias encarnações
- talvez a principal delas o domínio do tempo
cômico, do famoso timing. A maioria das
piadas funciona pelo uso inesperado de pausas, silêncios,
reações, inflexões e entradas de
frases em momentos deslocados. É de grande sutileza,
mas impossível de ignorar, o domínio deste
aspecto que os filmes demonstram. Para além disso,
os filmes trabalham com uma referencialidade muito fina
(seja aos anos 70 no caso de O Âncora,
seja ao filão esportivo em Dodgeball -
a cobertura do campeonato de queimado pela ESPN 8, "the
ocho", é absurdamente hilariante, assim
como o filme antigo que é a origem do personagem
Patches O'Houlihan) e um domínio das piadas "faladas"
- que inclusive dificultam o entendimento completo dos
filmes por quem domine menos o inglês (ou espanhol,
no caso da piada de Ben Stiller dizendo "donde
esta la biblioteca, Pedro", um dos grandes momentos
de humor sutil em Dodgeball). São filmes
com piadas por dentro de piadas, por dentro de piadas,
que, como as bonequinhas russas, não páram
de se abrir a cada palavra ou termo estranho, deslocado,
que surge nas falas dos atores, a cada gesto inesperado
em suas ações. Por isso mesmo, o ritmo
dos filmes é incessante, incansável: as
piadas brotam com uma frequência impressionante,
inesgotável (nenhuma piada parece ficar perdida
pelo caminho).
Mas, acima de tudo, o que talvez seja a principal sensação
que os filmes feitos por esta galera passam, é
a de se assistir um grupo de atores se divertindo muito
- sem limites, sem medo de serem ridículos. Os
filmes, neste sentido, parecem sempre uma excursão
de uma afinadíssima trupe de especialistas em
improvisação teatral. Não por acaso,
enquanto em determinado momento um personagem em Dodgeball
faça o apelo "come on, guys, let's be serious
here!", no meio de O Âncora, a "straight
lady" Applegate vira-se para os seus colegas de
elenco e emenda um "Crianças, cresçam!".
As duas frases são a explicação
perfeita do sentimento que os filmes parecem passar:
o de um grupo de inconsequentes moleques (muito inteligentes)
que simplesmente descobriram o prazer de se divertirem
juntos, e de dividirem esta diversão conosco.
Tomara que não cresçam tão cedo...
Eduardo Valente
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