PARALELAS E TRANSVERSAIS
Com a Bola Toda, de Rawson Marshall Turber
O Âncora, de Adam McKay


Dodgeball: a true underdog story, EUA, 2004
Anchorman: the legend of Ron Burgundy, EUA, 2004


Em 2001, Ben Stiller dirigiu um filme chamado Zoolander. Para além do fato de ser uma comédia hilária, cheia de ótimos momentos, o que ninguém sabia então é que ali começava a se formar, de fato, um dos mais consistentes "grupos cômicos" de atores que agora deixam sua marca definitiva na história da comédia americana com estes dois filmes - Com a Bola Toda e O Âncora. É em Zoolander que trabalham juntos pela primeira vez os três principais nomes do grupo: Ben Stiller, Owen Wilson e Will Ferrell.

Stiller já tinha, então, uma numerosa carreira como ator (cujo ápice pode ser colocado em Quem Vai Ficar com Mary?) e diretor/escritor (tendo, por exemplo, realizado o muito estranho O Pentelho, com Jim Carrey, em 1996), tendo começado em cinema e TV no fim dos anos 80. Ele trabalhou com Owen Wilson em alguns filmes anteriores (inclusive o "sério" Uma Vida Alucinante), mas pode-se dizer que sua parceria cômica reforça-se mesmo é em Entrando numa Fria (2000), onde Wilson faz um pequeno papel como o noivo anterior da futura esposa de Stiller. Wilson é o parceiro principal do cineasta Wes Anderson, seu colega de juventude que co-escreve com ele todos os seus filmes desde Adrenalina Pura/Bottle Rocket - o ultra-independente filme de estréia de ambos, de 1997. Wilson criou uma carreira para além dos filmes de Anderson, com destaque para a parceria com Jackie Chan (claramente o cara sabe com quem se associar) em Bater ou Correr.

Mas, o que Zoolander trouxe de novo para a trupe foi o humor insano e sem limites de Will Ferrell. Filhote de uma fase não especialmente inspirada do programa televisivo (e celeiro de cômicos importantes dos EUA desde o fim dos anos 70 - Stiller inclusive tem breve passagem pelo programa no fim dos anos 80) Saturday Night Live, Ferrell vinha de uma série de papéis nas adaptações para cinema de esquetes pouco inspirados do programa, como A Night at the Roxbury (traduzido aqui como Os Estragos de Sábado à Noite), Superstar ou O Tigrão (The Ladies' Man), além de um papel de menos destaque nos dois primeiros Austin Powers. Uma vez que conseguiu se livrar de seus colegas (bem) menos engraçados de geração (Chris Kattan, Jimmy Fallon, Tim Meadows), Ferrell finalmente encontra sua verdadeira família cômica em Zoolander.

É verdade que os três juntos realizaram apenas mais um filme de fato (Starsky e Hutch, não-lançado em cinema no Brasil para além de São Paulo, mas já disponível em DVD e criticado na revista este mês), mas o que se marca daí por diante é a idéia da criação deste grupo (que conta ainda, por exemplo, com Vince Vaughn, e com o irmão de Owen, Luke), do qual Stiller, Wilson e Ferrell podem ser considerados os líderes pelo simples fato de serem aqueles que não apenas atuam como também têm uma carreira como roteiristas (e diretor, no caso de Stiller) - o que certamente nos deixa ter a certeza de que, se encontramos uma marca um tanto semelhante nos trabalhos desta "gangue", isso vem da união destes três nomes a partir de Zoolander - e cujo outro filme "coletivo" é o lançado-direto-em-locadoras-no-Brasil Dias Incríveis (Old School).

Para além de qualquer um dos filmes (e dos dois que analisaremos a seguir), o mais importante hoje é marcar a existência deste grupo (confirmada dentro do próprio O Âncora com a antológica sequência da briga de equipes de TV), porque ele nos parece tão importante na comédia americana quanto qualquer outra trupe que a marcou (pensemos na de Mel Brooks, ou na dos irmãos Zucker e Jim Abrahams, para ficar nas mais recentes a terem impacto). Afinal, se em vários filmes eles aparecem em duplas apenas (Vince Vaughn e Ben Stiller em Com a Bola Toda, Will Ferrell e Vince Vaughn em O Âncora), pode-se dizer mesmo assim que há um registro específico deste grupo que torna os filmes parte de uma mesma equipe. E a tendência é que, a continuar os resultados destes meros quatro anos de colaboração intensa, esta galera vai influenciar muita gente entre eles e em torno deles (ainda que, em termos de público, seus filmes pareçam funcionar muito mais nos EUA, onde estes dois filmes aqui criticados, por exemplo, foram grande sucesso de público - tendo passado quase desapercebidos pelo Brasil, onde Will Ferrell, por exemplo, ainda é um quase desconhecido).

* * *

Feitas as mais do que devidas apresentações, vamos então aos dois filmes em questão. O primeiro ponto em comum entre eles fica visível já no título original em inglês dos dois: ambos trazem uma peculiar formatação com um substantivo isolado, seguido de um subtítulo absolutamente inesperado. Os dois subtítulos dão um dos tons cômicos que os filmes usam com frequência: o de uma comicidade perto do absurdo, tanto mais por aparentar uma seriedade deslocada. Este, afinal, sempre foi um dos encantos dos papéis que Will Ferrell e Ben Stiller gostam de interpretar (e o fazem nestes filmes): figuras claramente deslocadas de qualquer "naturalismo", absurdamente estranhas ao mundo que as cerca, mas totalmente inconscientes de sua própria comicidade, de sua inadequação. A única diferença é que Dodgeball é mais cômico até no título (que é o nome em inglês do nosso querido jogo de queimado - para os cariocas, queimada para os paulistanos), que é tornado "sério" pelo subtítulo - que dá uma aparência de "filme com lição" ("uma autêntica história dos menos favorecidos" seria uma tradução possível). Já em O Âncora, é a conjunção das duas partes do título com o filme que dão graça a esta "Lenda" de Ron Burgundy.

Ambos, claro, criam um jogo de referencialidade com gêneros (no primeiro caso, com os chamados "filmes de esporte", onde uma equipe altamente improvável será formada, atravessará obstáculos quase impossíveis, e sairá vitoriosa no final; no segundo, os filmes biográficos, sobre personas importantes com histórias de vida "vencedoras"), mas para além disso o que importa aqui é brincar justamente com a noção de "vencedores", de "heróis". Porque Peter La Fleur (o protagonista de Com a Bola Toda) e sua trupe representam tudo aquilo que é menos prezado por uma certa visualidade moderna (um dono de academia que defende a preguiça e a falta de profissionalismo do seu espaço de exercícios), enquanto Ron Burgundy é um machista que resiste aos modernos tempos da "revolução feminina" dos anos 70. Estes são nossos heróis, aqueles para quem estaremos "torcendo". Ou seja, discretamente, ambos os filmes inserem uma estranheza bastante latente naquilo com que pedem a adesão do espectador dos anos 2000 - em muitos momentos, aliás, francamente ofensivos ao "gosto médio" de uma sociedade como a americana (basta pensarmos na revelação final da "mocinha" de Com a Bola Toda - "I'm bisexual!", comemorada por La Fleur/Vaughn). Da mesma forma, uma das piadas finais de O Âncora (quando o personagem quase demente de Chip tem seu futuro revelado - numa ironia com aqueles típicos finais "o que acontece com eles depois do filme") é a mais contundente crítica ao governo Bush vista no cinema americano ("ele se torna um dos principais conselheiros da administração Bush").

Se pensamos nesta questão dos heróis improváveis, e a juntamos com a outra grande característica do humor destes filmes (sua disposição de unir o mau gosto mais radical com piadas de uma inteligência fina), é impossível não pensar nos irmãos Farrelly como uma referência. E, de fato, embora seja possível buscar este paralelo, há importantes diferenças de tom entre os filmes - principalmente um humor um tanto mais despreocupado e "feliz", por assim dizer (enquanto os Farrelly várias vezes chegam às raias do incômodo radical, ofensivo mesmo). O "mau gosto" aqui é, na maior parte das vezes, menos visual e temático do que só cômico mesmo (a ereção de Burgundy, o jogo de queimado com as escoteiras). Desafiam a aceitação de "bom gosto" cinematográfico do espectador médio, mas não desorganizam completamente seu universo, como os Farrelly fazem. O espectador está mais para dizer "que sem-graça!" do que "que horror!".

Mas, isso não diminui em nada o humor de Ferrell/Stiller, porque eles têm uma outra qualidade que os Farrelly começaram a explorar mais funcionalmente agora, em Ligado em Você:
a estrutura narrativa que mistura o humor (furioso nos Farrelly, anárquico aqui) com um desejo de conexão com uma história a ser acompanhada e aderida pelo espectador. Neste sentido, O Âncora se estrutra como uma retomada de uma comédia romântica bastante aproximada dos casais dos anos 30/40 do cinema americano - e aqui precisamos fazer menção à interpretação inspirada de Christina Applegate, a quem é dada a ingrata tarefa de fazer não só o interesse romântico de Will Ferrell, como também contracenar com todo um elenco masculino beirando a sandice, enquanto faz uma mistura de "straight lady" (não no sentido sexual, mas em ser uma personagem "séria"). Ela se sai maravilhosamente bem neste domínio, revelando nela uma comicidade tranquila das mais desconhecidas. Já Com a Bola Toda tem sua seriedade dividida entre Vaughn e seu interesse romântico, que contracenam com personagens como "Steve, o Pirata" - uma das mais espertas piadas do filme, brincando com o típico golpe dos "filmes de esporte" onde a cada membro da equipe é dada uma característica que o distingua e o identifique com a platéia (neste caso, ele simplesmente se comporta como se estivesse num filme de piratas). E, embora Christine Taylor (aliás, a sra. Stiller na vida real) segure as pontas, é Vaughn quem dá mais o tom "deslocado" do filme.

Mas, o que não se pode perder de vista, nesta mistura com o mau gosto ostensivo, é a inteligência da comédia dos dois filmes. Inteligência esta que tem várias encarnações - talvez a principal delas o domínio do tempo cômico, do famoso timing. A maioria das piadas funciona pelo uso inesperado de pausas, silêncios, reações, inflexões e entradas de frases em momentos deslocados. É de grande sutileza, mas impossível de ignorar, o domínio deste aspecto que os filmes demonstram. Para além disso, os filmes trabalham com uma referencialidade muito fina (seja aos anos 70 no caso de O Âncora, seja ao filão esportivo em Dodgeball - a cobertura do campeonato de queimado pela ESPN 8, "the ocho", é absurdamente hilariante, assim como o filme antigo que é a origem do personagem Patches O'Houlihan) e um domínio das piadas "faladas" - que inclusive dificultam o entendimento completo dos filmes por quem domine menos o inglês (ou espanhol, no caso da piada de Ben Stiller dizendo "donde esta la biblioteca, Pedro", um dos grandes momentos de humor sutil em Dodgeball). São filmes com piadas por dentro de piadas, por dentro de piadas, que, como as bonequinhas russas, não páram de se abrir a cada palavra ou termo estranho, deslocado, que surge nas falas dos atores, a cada gesto inesperado em suas ações. Por isso mesmo, o ritmo dos filmes é incessante, incansável: as piadas brotam com uma frequência impressionante, inesgotável (nenhuma piada parece ficar perdida pelo caminho).

Mas, acima de tudo, o que talvez seja a principal sensação que os filmes feitos por esta galera passam, é a de se assistir um grupo de atores se divertindo muito - sem limites, sem medo de serem ridículos. Os filmes, neste sentido, parecem sempre uma excursão de uma afinadíssima trupe de especialistas em improvisação teatral. Não por acaso, enquanto em determinado momento um personagem em Dodgeball faça o apelo "come on, guys, let's be serious here!", no meio de O Âncora, a "straight lady" Applegate vira-se para os seus colegas de elenco e emenda um "Crianças, cresçam!". As duas frases são a explicação perfeita do sentimento que os filmes parecem passar: o de um grupo de inconsequentes moleques (muito inteligentes) que simplesmente descobriram o prazer de se divertirem juntos, e de dividirem esta diversão conosco. Tomara que não cresçam tão cedo...

Eduardo Valente