Quantas pistas de uma possível
auto-crítica um mesmo filme pode dar sem que
nós sequer imaginemos que ele se dê conta
disso? Didi quer ser Criança certamente
nos faz pensar nesta pergunta, antes de qualquer outra.
Se não, vejamos: o filme se estrutura como um
discurso crítico sobre as perdas de valores da
sociedade contemporânea (como são obcecados
por isso os nossos ídolos das crianças!),
essencialmente a partir de um maldoso dono de uma indústria
que quer acabar com a pequena manufatura caseira de
doces de um simpático fabricante local. Quando
este reclama do porquê precisará fechar
as portas, afirma que as crianças hoje só
querem aquilo que sai no jornal, e que se tem que ter
muito dinheiro para propaganda maciça para poder
ser consumido no mundo de hoje.
OK, OK, chega de tanta bandeira: Alexandre e Reynaldo
Boury devem ser os maiores contrabandistas da história
do cinema nacional (no sentido da expressão como
usada no cinema americano sobre aqueles cineastas que
faziam seus projetos pessoais sendo financiados pelos
estúdios, escondendo suas "agendas"
nas histórias de gênero). Afinal, não
estão fazendo um filme de Renato Aragão,
produzido por Diller Trindade e lançado pela
Globo Filmes? Então, ou o parágrafo acima,
certamente, trata de uma das mais geniais sacadas de
auto-crítica de todos os tempos ou então
trata-se de mais um caso de "faça o que
que eu digo, não faça o que eu faço".
O discurso em defesa dos pequenos (dos independentes,
porque não dizer) no meio de uma produção
Globo chega a soar ofensivo - mas preferimos pensar
que é só engraçado. Engraçado
como a cena inicial filmar (criticamente) uma linha
de montagem industrial, enquanto os créditos
do filme listam seus quatro montadores e quatro editores
de som. Deve ser piada, eles devem estar brincando,
com certeza...
Pena que nem todas as piadas do filme, porém,
sejam tão engraçadas quanto estas. É
verdade, há outras do mesmo quilate - como Claudio
Henrich cantando romanticamente para Daniela Cicarelli
num shopping, ou uma cena romântica que
quer nos convencer que há alguma verdade num
casal formado por Didi (mais infantilizado ainda do
que o normal) e a VJ da MTV Didi Wagner. Mas, na verdade
as duas cenas parecem mais de um filme de terror, mesmo
que um terror auto-irônico - digamos, algo de
Wes Craven (aliás, anote-se nesta categoria também
o fato de que o personagem de Didi é trazido
de volta dos mortos por dois santos gêmeos encarnados
- sendo, portanto, em boa parte do filme, nada mais
que um zumbi).
Mas, fora estas, infelizmente as cenas supostamente
engraçadas não têm a menor graça.
E isso acontece porque hoje Renato Aragão não
é mais o Didi (por mais que se tente dizer que
sim) - aquele comediante solto, anárquico, muitas
vezes surreal e ácido. Hoje ele é Renato
Aragão, embaixador da UNESCO, cheio de discursos
politicamente corretos (o personagem do menino de rua
aqui é grotesco pelo paternalismo com que é
filmado) e moralistas, e, enquanto comediante, completamente
domado pelas forças da produção
em série para uma platéia de "crianças
consumidoras" - e não mais imaginativas.
Foi-se o tempo das fabulações satíricas
dos Trapalhões dos anos 70/80, onde principalmente
o que valia era o desejo de se fantasiar, de se criar
universos onde um público infantil pudesse entrar
e se esbaldar na imaginação deles. Hoje,
tudo é contemporâneo, "realista"
(a realidade dos shoppings, dos showzinhos de bandas
de rockzinho emergentes, a realidade dos condomínios
de apartamentos), não há mais qualquer
espaço para o sonho.
Aliás, até há sim, mas é
um sonho muito estranho, tão mais estranho porque
validado pelo filme: Didi, como diz o título,
quer ser criança. E as crianças querem
ser adultas. Num determinado momento do filme, esta
troca se efetua, e Didi passa (boa parte do filme) a
ocupar o corpo de um garoto de 9 anos - enquanto um
outro garoto ocupa o corpo de "adulto" (no
caso, Henrich). E, ao final, o garoto vai se descobrir
mais feliz como Henrich e optar por ficar com essa idade:
ou seja, as crianças de hoje, Didi está
nos ensinando, seriam mais felizes sendo logo adultos.
Faz sentido: se tem algo que os filmes dele gritam hoje
é que "acabou a infância". Mesmo
para Didi, o infantilizado herói que nunca conseguia
uma heroína no final dos filmes, há sempre
uma Fernanda Lima surgindo do nada no final deste -
mesmo que sua única verdadeira ligação
romântica do filme seja com uma menina de 9 anos
(mensagem um tanto quanto bizarra no potencial pedófilo
que vem do embaixador da UNESCO). Pragmatismo total.
Só nos resta acreditar que os filmes de Renato
Aragão hoje são tão pouco pensados
e feitos com tanta pressa/preguiça que ninguém
está mais entendendo, na sua realização,
o que se está dizendo de fato (ou sequer estão
preocupados com isso). É isso ou então
partir para a hipótese dos cínicos ou
contrabandistas - mas seria dar cacife demais para o
filme.
Eduardo Valente
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