DIDI QUER SER CRIANÇA
Alexandre e Reinaldo Boury, Brasil, 2004

Quantas pistas de uma possível auto-crítica um mesmo filme pode dar sem que nós sequer imaginemos que ele se dê conta disso? Didi quer ser Criança certamente nos faz pensar nesta pergunta, antes de qualquer outra. Se não, vejamos: o filme se estrutura como um discurso crítico sobre as perdas de valores da sociedade contemporânea (como são obcecados por isso os nossos ídolos das crianças!), essencialmente a partir de um maldoso dono de uma indústria que quer acabar com a pequena manufatura caseira de doces de um simpático fabricante local. Quando este reclama do porquê precisará fechar as portas, afirma que as crianças hoje só querem aquilo que sai no jornal, e que se tem que ter muito dinheiro para propaganda maciça para poder ser consumido no mundo de hoje.

OK, OK, chega de tanta bandeira: Alexandre e Reynaldo Boury devem ser os maiores contrabandistas da história do cinema nacional (no sentido da expressão como usada no cinema americano sobre aqueles cineastas que faziam seus projetos pessoais sendo financiados pelos estúdios, escondendo suas "agendas" nas histórias de gênero). Afinal, não estão fazendo um filme de Renato Aragão, produzido por Diller Trindade e lançado pela Globo Filmes? Então, ou o parágrafo acima, certamente, trata de uma das mais geniais sacadas de auto-crítica de todos os tempos ou então trata-se de mais um caso de "faça o que que eu digo, não faça o que eu faço". O discurso em defesa dos pequenos (dos independentes, porque não dizer) no meio de uma produção Globo chega a soar ofensivo - mas preferimos pensar que é só engraçado. Engraçado como a cena inicial filmar (criticamente) uma linha de montagem industrial, enquanto os créditos do filme listam seus quatro montadores e quatro editores de som. Deve ser piada, eles devem estar brincando, com certeza...

Pena que nem todas as piadas do filme, porém, sejam tão engraçadas quanto estas. É verdade, há outras do mesmo quilate - como Claudio Henrich cantando romanticamente para Daniela Cicarelli num shopping, ou uma cena romântica que quer nos convencer que há alguma verdade num casal formado por Didi (mais infantilizado ainda do que o normal) e a VJ da MTV Didi Wagner. Mas, na verdade as duas cenas parecem mais de um filme de terror, mesmo que um terror auto-irônico - digamos, algo de Wes Craven (aliás, anote-se nesta categoria também o fato de que o personagem de Didi é trazido de volta dos mortos por dois santos gêmeos encarnados - sendo, portanto, em boa parte do filme, nada mais que um zumbi).

Mas, fora estas, infelizmente as cenas supostamente engraçadas não têm a menor graça. E isso acontece porque hoje Renato Aragão não é mais o Didi (por mais que se tente dizer que sim) - aquele comediante solto, anárquico, muitas vezes surreal e ácido. Hoje ele é Renato Aragão, embaixador da UNESCO, cheio de discursos politicamente corretos (o personagem do menino de rua aqui é grotesco pelo paternalismo com que é filmado) e moralistas, e, enquanto comediante, completamente domado pelas forças da produção em série para uma platéia de "crianças consumidoras" - e não mais imaginativas. Foi-se o tempo das fabulações satíricas dos Trapalhões dos anos 70/80, onde principalmente o que valia era o desejo de se fantasiar, de se criar universos onde um público infantil pudesse entrar e se esbaldar na imaginação deles. Hoje, tudo é contemporâneo, "realista" (a realidade dos shoppings, dos showzinhos de bandas de rockzinho emergentes, a realidade dos condomínios de apartamentos), não há mais qualquer espaço para o sonho.

Aliás, até há sim, mas é um sonho muito estranho, tão mais estranho porque validado pelo filme: Didi, como diz o título, quer ser criança. E as crianças querem ser adultas. Num determinado momento do filme, esta troca se efetua, e Didi passa (boa parte do filme) a ocupar o corpo de um garoto de 9 anos - enquanto um outro garoto ocupa o corpo de "adulto" (no caso, Henrich). E, ao final, o garoto vai se descobrir mais feliz como Henrich e optar por ficar com essa idade: ou seja, as crianças de hoje, Didi está nos ensinando, seriam mais felizes sendo logo adultos. Faz sentido: se tem algo que os filmes dele gritam hoje é que "acabou a infância". Mesmo para Didi, o infantilizado herói que nunca conseguia uma heroína no final dos filmes, há sempre uma Fernanda Lima surgindo do nada no final deste - mesmo que sua única verdadeira ligação romântica do filme seja com uma menina de 9 anos (mensagem um tanto quanto bizarra no potencial pedófilo que vem do embaixador da UNESCO). Pragmatismo total.

Só nos resta acreditar que os filmes de Renato Aragão hoje são tão pouco pensados e feitos com tanta pressa/preguiça que ninguém está mais entendendo, na sua realização, o que se está dizendo de fato (ou sequer estão preocupados com isso). É isso ou então partir para a hipótese dos cínicos ou contrabandistas - mas seria dar cacife demais para o filme.

Eduardo Valente