Algo de impressionante brota
da tela ao iniciarmos a experiência de ver Días
de Santiago. Sensação também presente quando assistimos
os dois filmes de Lucrecia Martel (O
pântano e Santa menina) e os dois primeiros de Pablo
Trapero (Mundo
grua e El bonaerense): a constatação de estarmos
diante de uma modalidade bastante especial de naturalismo
e de diretores capazes de manejar a linguagem cinematográfica
de tal forma a ponto de conseguirem captar através da
câmera o que antes não era possível. Atmosferas, climas,
sugestões e sutilezas que emanam não apenas dos gestos
e expressões faciais dos atores como também da própria
mise-en-scene, das opções de enquadramento. Vemos nesses filmes a
“forma” em sua significação mais transcendental saltitar
e tornar-se substância evidente e pulsante. Substância
essa que nunca aparece como elemento transbordante ou
ocupando um espaço que não deveria preencher e sim unicamente
como recurso que se mescla de maneira perfeita ao conteúdo
que se pretende abordar, para assim transformá-lo e
amplificá-lo.
Esse momento mágico que não está em nenhuma fórmula
ou cartilha cinematográfica resulta propriamente da
plena e harmônica fusão entre “forma” e “conteúdo”.
Procedimento esse que pode parecer elementar, mas é
simplesmente o que mais está em falta na cinematografia
recente, em que abundam maneirismos ou articulações
de linguagem apenas executadas para realçar e mostrar
que a chamada sintaxe cinematográfica e suas possíveis
“subversões” existem e são pelo realizador facilmente
manuseadas. Nos filmes argentinos citados, e em Dias
de Santiago, não há espaço para esse narcisismo
formal-autoral onde forma e conteúdo ao invés de se
harmonizar se agridem e se repelem.
Aqui, Josué Mendez quer primeiramente contar a história
de um marinheiro que ingressou nas forças armadas como
único meio de escapar da pobreza, e que após seis anos
de serviço resolve abandonar a corporação e retornar
à vida civil. O detalhe é que esses anos de marinha
coincidiram com o combate ao terrorismo senderista e
com o conflito territorial travado com o Equador - a
história do homem e a história de seu país. O principal
obstáculo, porém é o estado da sociedade peruana em
sua volta, como encontrado por Santiago e a sua completa
falta de habilidade de interagir com ela. Vemos através
do olhar do personagem a atual condição social de um
país terceiro-mundista recém saído de episódios cruéis
onde todas as portas parecem estar terrivelmente fechadas.
Cruamente esse é o conteúdo. Agora, como Mendez resolve
enfrentá-lo?
Primeiramente cabe enfatizar a importância da atuação
de Pietro Sibille, que transcende o ato de atuar no
sentido usual aplicado ao termo constituindo ao lado
de Mendez um autêntico trabalho de co-autoria. Vemos
de maneira surpreendente a total afinação compartilhada
entre ator e autor em cada mínimo gesto efetivado pelo
personagem, alternando momentos de retenção e explosão.
O porte físico de Sibille, evidentemente harmônico á
composição, completa a constituição desse “ser” confuso
e angustiado, altamente tímido e sensível apesar de
sua armadura de brutamontes. Santiago parece sempre
desejar articular um gesto que nunca se completa e que
morre antes de seu nascimento. Ele ensaia a abordagem
à uma menina que em sua imaginação se concretiza perfeitamente,
quando no mundo real sequer tinha saído do lugar. Ele
verbalmente expõe para si mesmo ordens que deveria dirigir
à esposa, porém quando ela chega, repentinamente se
cala. A contenção de gestos, a “dureza” de movimentos
e a sua expressão facial rude revelam que Santiago é
uma força que guarda dentro de si um potencial não utilizado
e que está constantemente na iminência de realizar algo
que por fim não se realiza. Quando esse gesto retido
e resguardado finalmente explode, ele basicamente ocorre
nos momentos mais inoportunos. Esse eterno “fora de
lugar”, que Santiago não consegue evitar que sejam suas
relações com os demais e com o mundo, sintetiza a sua
grandiosa falta de referência. A sua figura não está
à margem de algo pois ela sequer consegue ocupá-la,
ela sim está em um não-espaço, em um local sem inicio
e sem fim.
A maneira como é usada a alternância entre o colorido
e o preto e branco traduz esse sentimento de confusão
por experimentar a situação de não pertencer a absolutamente
nada. O excelente uso da edição de som poderia render
um estudo maior sobre as mil e uma possibilidades desse
valioso recurso muitas vezes negligenciado. Ele é o
responsável por nada menos que a melhor seqüência do
filme, que por si só já o colocaria na classificação
de um dos melhores filmes de estréia dos últimos anos:
após uma situação de tensão com a esposa em que Santiago
perde a cabeça, ele surge no plano seguinte na discoteca
articulando na pista de dança gestos que se assemelham
com os anteriores. Só que agora ele está vivenciando
uma cena de aparente alegria, quando na anterior era
de fúria. Coloca-se então uma melodia que sublinha essa
ação e comenta a interação entre esses dois planos fazendo
suscitar a imensa tristeza e melancolia que respira
por trás daquela falsa euforia. O espaço da discoteca
adquire uma maior força na sua afirmação como um espaço
de fuga e alienação do que acontece no exterior. A melodia
não diegética que ouvimos na discoteca, visceralmente
oposta à diegética (que não escutamos), serve para deslocar-nos
daquele recinto e colocar-nos em outro: o tormento do
personagem.
Imagem tão potente, inquietante e emblemática quanto
à da ultima seqüência seria difícil encontrar para ser
o derradeiro canto de Días
de Santiago: Santiago, como seu último recurso tenta
se matar com um tiro na cabeça, mas ele mais uma vez
não consegue finalizar uma ação iniciada. Ele então
experimenta um desespero duplo: o de querer se matar
e o de não conseguir se matar. Essa impotência travestida
de potência, ao mesmo tempo em que resume o personagem,
desenha uma visão de mundo - ou mais precisamente, a
visão de como é viver no Peru (como poderia ser qualquer
país da América Latina ou do terceiro mundo) daqueles
dias. Dias que, de forma alguma, são muito diferentes
dos de hoje.
Estevão Garcia
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