Assim que sai da tela a última
imagem de O Diabo a Quatro, enérgica estréia
de Alice de Andrade na direção de longas,
surge o crédito que dá uma das principais
pistas de entendimentos do que acabamos de assistir:
nos créditos de roteiro surgem o nome de sete
profissionais diferentes. Sete roteiristas significa
muita gente tendo idéias e mexendo nas idéias
dos outros, e o filme de Alice de Andrade tem exatamente
esta sensação: a de que se está
mexendo nele constantemente, mudando na tela, na hora
em que assistimos, qualquer noção de encaminhamento
narrativo ou dramatúrgico. Não é
sem interesse esta característica num filme que,
justamente, busca evidenciar a extrema confusão
de conceitos e papéis da sociedade brasileira
contemporânea, a dificuldade de se simplificar
ou montar um discurso para além das impressões
e dos excessos. No entanto, este desconjuntamento que
o filme tem não pode jamais ser lido só
numa tal chave teórica, como simples parte de
um conceito, e precisa sim ser enxergado nos seus efeitos
diretos sobre a fruição do filme: claudicante
como narrativa, tropeçando em momentos e andando
a mil por hora em outros, desigual como um filme em
episódios - sendo que não o é.
Há mais do que apenas um bom filme em Diabo
a Quatro - há pelo menos uns três ou
quatro. Infelizmente em alguns momentos eles parecem
perdidos no meio de uns três ou quatro maus filmes
que também estão na tela.
Nada disso, porém, serve para negar a força
ímpar que estes bons momentos do filme possuem.
Para começar, a capacidade de criar na tela uma
Copacabana viva, pulsante, cheia de sentimento em todas
as suas encarnações: a praia, os apartamentos
de classe alta na Avenida Atlântica, os muquifos
e prédios comerciais de baixo poder aquisitivo,
as ruas. A diretora consegue, inegavelmente, nos colocar
em meio a esta Copacabana como nenhum dos filmes recentes
que tentaram o mesmo (Copacabana, O Outro
Lado da Rua) chegou a conseguir. Esta "verdade"
da encenação (a não ser confundida
com realismo naturalista, que passa longe do filme)
transborda nos seus melhores personagens, como a travesti
Monike ou o trambiqueiro Tim Mais. E é esta mesma
verdade que falta muitas vezes aos personagens que nunca
chegam a existir como tais no filme, como o menino de
rua (que só se torna um personagem no longo epílogo
do filme em Minas Gerais) ou o surfista-malandro de
Marcelo Faria (que num determinado momento fica sumido
da trama por mais de meia hora, sem que sua ausência
chegue a ser sentida).
Claro que se o filme tem uma dona, é a personagem
de Maria Rita/Mistery, interpretada pela então
estreante (porque desde a filmagem do filme, já
participou de outros trabalhos) Maria Flor. Infelizmente,
ela é a que mais sofre com as quebras de ritmo
da narrativa, porque seus momentos mais esfuziantes
(de atuação e de premência da personagem
na história) acabam sendo diminuídos na
força pela confusão reinante em torno
dela. Mas, nos momentos de brilho, é a personagem
que mais nos apresenta seguidas facetas, seguidas leituras,
nenhuma delas de fácil explicação/entendimento.
Devemos destacar em especial o trabalho da sexualidade
da personagem, que consegue fazer o trajeto de virgem
moça do interior a prostituta de Coapacabana
sem nunca cair em nenhum dos clichês que a simples
menção desta trajetória pode evocar.
E, ao final, fica claro que o filme de fato trata da
transformação desta menina numa mulher,
cujo valor não virá nunca mais de nenhum
dos homens que a cercam e sim de sua própria
capacidade de dar rumo a sua vida. Trata-se, possivelmente,
da grande personagem feminina positiva do cinema brasileiro
recente.
Como retrato de comentário social da verdadeira
chanchada que muitas vezes é o Brasil, O Diabo
a Quatro vem servir como exemplo exato de porquê
Seja o que Deus Quiser! não funcionava.
O problema ali nunca foi um de impôr um clima
de carnavalização aos conflitos sociais
e às relações entre as classes
e ambientes físicos diferenciados onde estas
habitam, e sim a de nunca conseguir passar de um certo
cinismo que se misturava a comentários tipificantes
um tanto óbvios. A chanchada (ou seria melhor,
o caos) em Diabo a Quatro supera com galhardia
todas essas dificuldades, e se subaproveita algumas
idéias (a participação de Ney Latorraca,
por exemplo, parece um exemplo claro) ou apela para
soluções questionáveis eventuais
(o uso de algumas canções pop na
narrativa, como fundo musical, adiciona pouco como piada
ou como comentário), nunca deixa de soar surpreendente
e (de alguma importância numa comédia)
engraçada, ao contrário do filme de Murilo
Salles. O retrato disso talvez seja o momento-ápice
do entrecho chanchadesco no filme, com o grito do vizinho
de Copacabana: "Viado no secador de roupas e criança
no puteiro já é demais!" Esta sensação
do auge do absurdo, que esta voz emite no próprio
filme, é muito bem resolvida, sem nunca ser limitada
nem por um discurso politicamente correto nem por um
niilismo superior que coloque os personagens como micos
de um circo. Pelo contrário, se há confusão
e caos, o filme e seu discurso se assumem o tempo todo
(para o bem e para o mal) como parte deles.
Assim, o referido epílogo final em Minas Gerais
serve como desfecho perfeito para o filme em mais de
um sentido. Momento condensado de inacreditáveis
doçuras e simpatia (especialmente dentro da casa
do menino) e de sucessivas quebras de ritmo para além
das intencionadas pelo filme. Ali, o filme parece acabar
pelo menos umas quatro vezes (que vêm se somar
a alguns outros "falsos finais" antes mesmo
da ida a Minas), e se no final escolhe pela melhor opção
de desfecho, isso não impede que ela já
venha numa sensação forte de anti-clímax.
Sinal claro das irregularidades e deficiências
do filme são as soluções fáceis
que arranja para ir se desfazendo dos personagens como
parte da trama, antes do seu desfecho, o que para além
de parecer preguiçoso como elaboração,
acaba deixando claro como alguns deles não faziam
mesmo muita falta no enredo. Após o plano final
(belíssimo, diga-se, com a imagem no vidro do
caminhão "flutuando" sobre a estrada
aberta que é o Brasil), a sensação
é a mesma que em boa parte do filme: um misto
de uma enorme alegria de ver um filme brasileiro que
não mistura a necessidade de falar do Brasil
de hoje com o simplismo de discursos e conclusões,
com a leve decepção de não ver
este mesmo filme realizar de todo suas próprias
possibilidades. Mas, que não se enganem: no panorama
recente do cinema brasileiro (especialmente o de 2004),
Diabo a Quatro está com certeza na coluna
dos ganhos.
Eduardo Valente
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