O DIABO A QUATRO
Alice de Andrade, Brasil, 2004

Assim que sai da tela a última imagem de O Diabo a Quatro, enérgica estréia de Alice de Andrade na direção de longas, surge o crédito que dá uma das principais pistas de entendimentos do que acabamos de assistir: nos créditos de roteiro surgem o nome de sete profissionais diferentes. Sete roteiristas significa muita gente tendo idéias e mexendo nas idéias dos outros, e o filme de Alice de Andrade tem exatamente esta sensação: a de que se está mexendo nele constantemente, mudando na tela, na hora em que assistimos, qualquer noção de encaminhamento narrativo ou dramatúrgico. Não é sem interesse esta característica num filme que, justamente, busca evidenciar a extrema confusão de conceitos e papéis da sociedade brasileira contemporânea, a dificuldade de se simplificar ou montar um discurso para além das impressões e dos excessos. No entanto, este desconjuntamento que o filme tem não pode jamais ser lido só numa tal chave teórica, como simples parte de um conceito, e precisa sim ser enxergado nos seus efeitos diretos sobre a fruição do filme: claudicante como narrativa, tropeçando em momentos e andando a mil por hora em outros, desigual como um filme em episódios - sendo que não o é. Há mais do que apenas um bom filme em Diabo a Quatro - há pelo menos uns três ou quatro. Infelizmente em alguns momentos eles parecem perdidos no meio de uns três ou quatro maus filmes que também estão na tela.

Nada disso, porém, serve para negar a força ímpar que estes bons momentos do filme possuem. Para começar, a capacidade de criar na tela uma Copacabana viva, pulsante, cheia de sentimento em todas as suas encarnações: a praia, os apartamentos de classe alta na Avenida Atlântica, os muquifos e prédios comerciais de baixo poder aquisitivo, as ruas. A diretora consegue, inegavelmente, nos colocar em meio a esta Copacabana como nenhum dos filmes recentes que tentaram o mesmo (Copacabana, O Outro Lado da Rua) chegou a conseguir. Esta "verdade" da encenação (a não ser confundida com realismo naturalista, que passa longe do filme) transborda nos seus melhores personagens, como a travesti Monike ou o trambiqueiro Tim Mais. E é esta mesma verdade que falta muitas vezes aos personagens que nunca chegam a existir como tais no filme, como o menino de rua (que só se torna um personagem no longo epílogo do filme em Minas Gerais) ou o surfista-malandro de Marcelo Faria (que num determinado momento fica sumido da trama por mais de meia hora, sem que sua ausência chegue a ser sentida).

Claro que se o filme tem uma dona, é a personagem de Maria Rita/Mistery, interpretada pela então estreante (porque desde a filmagem do filme, já participou de outros trabalhos) Maria Flor. Infelizmente, ela é a que mais sofre com as quebras de ritmo da narrativa, porque seus momentos mais esfuziantes (de atuação e de premência da personagem na história) acabam sendo diminuídos na força pela confusão reinante em torno dela. Mas, nos momentos de brilho, é a personagem que mais nos apresenta seguidas facetas, seguidas leituras, nenhuma delas de fácil explicação/entendimento. Devemos destacar em especial o trabalho da sexualidade da personagem, que consegue fazer o trajeto de virgem moça do interior a prostituta de Coapacabana sem nunca cair em nenhum dos clichês que a simples menção desta trajetória pode evocar. E, ao final, fica claro que o filme de fato trata da transformação desta menina numa mulher, cujo valor não virá nunca mais de nenhum dos homens que a cercam e sim de sua própria capacidade de dar rumo a sua vida. Trata-se, possivelmente, da grande personagem feminina positiva do cinema brasileiro recente.

Como retrato de comentário social da verdadeira chanchada que muitas vezes é o Brasil, O Diabo a Quatro vem servir como exemplo exato de porquê Seja o que Deus Quiser! não funcionava. O problema ali nunca foi um de impôr um clima de carnavalização aos conflitos sociais e às relações entre as classes e ambientes físicos diferenciados onde estas habitam, e sim a de nunca conseguir passar de um certo cinismo que se misturava a comentários tipificantes um tanto óbvios. A chanchada (ou seria melhor, o caos) em Diabo a Quatro supera com galhardia todas essas dificuldades, e se subaproveita algumas idéias (a participação de Ney Latorraca, por exemplo, parece um exemplo claro) ou apela para soluções questionáveis eventuais (o uso de algumas canções pop na narrativa, como fundo musical, adiciona pouco como piada ou como comentário), nunca deixa de soar surpreendente e (de alguma importância numa comédia) engraçada, ao contrário do filme de Murilo Salles. O retrato disso talvez seja o momento-ápice do entrecho chanchadesco no filme, com o grito do vizinho de Copacabana: "Viado no secador de roupas e criança no puteiro já é demais!" Esta sensação do auge do absurdo, que esta voz emite no próprio filme, é muito bem resolvida, sem nunca ser limitada nem por um discurso politicamente correto nem por um niilismo superior que coloque os personagens como micos de um circo. Pelo contrário, se há confusão e caos, o filme e seu discurso se assumem o tempo todo (para o bem e para o mal) como parte deles.

Assim, o referido epílogo final em Minas Gerais serve como desfecho perfeito para o filme em mais de um sentido. Momento condensado de inacreditáveis doçuras e simpatia (especialmente dentro da casa do menino) e de sucessivas quebras de ritmo para além das intencionadas pelo filme. Ali, o filme parece acabar pelo menos umas quatro vezes (que vêm se somar a alguns outros "falsos finais" antes mesmo da ida a Minas), e se no final escolhe pela melhor opção de desfecho, isso não impede que ela já venha numa sensação forte de anti-clímax. Sinal claro das irregularidades e deficiências do filme são as soluções fáceis que arranja para ir se desfazendo dos personagens como parte da trama, antes do seu desfecho, o que para além de parecer preguiçoso como elaboração, acaba deixando claro como alguns deles não faziam mesmo muita falta no enredo. Após o plano final (belíssimo, diga-se, com a imagem no vidro do caminhão "flutuando" sobre a estrada aberta que é o Brasil), a sensação é a mesma que em boa parte do filme: um misto de uma enorme alegria de ver um filme brasileiro que não mistura a necessidade de falar do Brasil de hoje com o simplismo de discursos e conclusões, com a leve decepção de não ver este mesmo filme realizar de todo suas próprias possibilidades. Mas, que não se enganem: no panorama recente do cinema brasileiro (especialmente o de 2004), Diabo a Quatro está com certeza na coluna dos ganhos.

Eduardo Valente