DE FAMÍLIA E LAÇOS

Pode-se tentar olhar para os trabalhos de Robert Guédiguian em conjunto a partir de uma série de pontos de vista iniciais. No entanto, após uma exibição completa de suas obras, como aconteceu no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio e SP) no mês de agosto último, é absolutamente impossível que o aspecto que mais chame a atenção ao longo do acúmulo de filmes na memória não seja sempre o mesmo: a familiaridade criada com os rostos do elenco, que vão se repetindo a cada filme. Atenção: não se está dizendo aqui que esta é a principal característica do cinema de Guédiguian, que precisa ser discutido sob uma série de outros pressupostos – está se dizendo apenas que é impossível que isso não seja o que mais chame a atenção, porque de fenômeno tão raro que seja (pelo menos na obssessiva repetição com que acontece), torna-se algo de bonito poder acompanhar o envelhecimento daqueles rostos ao longo de 20 anos (de 1981 a 2001 – ano dos trabalhos em longa do cineasta, com exceção de seu último, de recentíssima estréia francesa e que não passou na mostra). E é traço tão marcante que o próprio Guédiguian se aproveita dele, como na sacada de usar cenas de um filme (Ki Lo Sa? – 1985) como flashbacks dos personagens de outro (No Lugar do Coração – 1998). A beleza desta experiência única talvez fale mais da força intrínseca do cinema como meio de expressão, da sua possibilidade de eternizar os momentos e colocá-los lado a lado em perspectiva histórica, mas fala muito também do cinema de Guédiguian em particular, porque a familiaridade com que passamos a enxergar aqueles rostos, e seus personagens, nos faz criar um tal laço com aquelas pessoas que é exatamente o laço que Guédiguian quer que formemos.

Laço – taí, palavra importante. Se pegamos Marius e Jeanette (1997), possivelmente a obra-prima de Guédiguian (ou pelo menos aquela na qual sua proposta de cinema atinge seu ápice), a palavra se desdobra para além da relação entre os personagens ou dos personagens com o público, e passa a possuir presença física em cena – no clímax do filme, o personagem de Gérard Meylan (Marius) é laçado à cama pelos amigos como forma de voltar ao encontro com a mulher e a família das quais fugia. Tornado físico perante a câmera, este laço que os personagens estabelecem é o principal tema recorrente na obra de Guédiguian, para além de características e considerações formais ou sócio-econômicas. Diriam alguns que o cinema dele é um "cinema de l’attachement", para usar a expressão francesa que os próprios personagens deste filme usam.

A este conceito simples de um laço que una as pessoas, Guédiguian vai dar uma presença paradoxalmente "maior que a vida" – paradoxalmente porque quase nada em seus filmes é "maior que a vida". Na verdade, o que ele defende em quase todos os filmes é que a vida sem estes laços tem pouco, ou nenhum sentido. Uma constante do seu trabalho é a formação de uma nova família, família que muitas vezes possui laços cosanguíneos de relacionamento, mas que na maioria das vezes é formada pela simples convivência no mesmo espaço – espaço de convivência entendido aqui não apenas no sentido físico, mas essencialmente na conjugação deste com a realidade sócio-econômica que ele impõe. Onde entra uma outra característica constante nos filmes de Guédiguian: não são só os mesmos atores quase sempre em cena, mas também as mesmas paisagens – Marselha (e, na maioria dos filmes, o bairro de L’Estaque). Pode-se dizer que o diretor leva ao ápice aquela máxima de filmar "aquilo que se conhece", mas parece ser um pouco mais do que isso: L’Estaque surge menos como uma paisagem familiar e mais como uma afirmação de universo humano que importe – tanto assim que em No Lugar do Coração há uma série de cenas passadas em Sarajevo, e a Sarajevo que surge na tela em tudo lembra a forma de olhar que Guédiguian impõe ao seu L’Estaque natal. Ou seja: não é de uma paisagem externa que se fala aqui, mas do condicionante sócio-econômico que esta paisagem representa – os personagens, e Guédiguian como cineasta, carregam L’Estaque na alma, e sempre estarão lá, não importa onde estejam.

Mas, voltemos à noção de criação desta "nova família" que citamos lá em cima, porque ela adquire fascinantes formatos ao longo do obra de Guédiguian. Muitas vezes, os laços sanguíneos são determinantes nela (como vemos principalmente em Sul Vermelho – 1984), assim como a história pessoal (a infância vivida em comum pelos personagens de Ki Lo Sa? ou de Deus Vomita os Mornos – 1989). No entanto, muitas vezes os laços mais fortes desta nova família vêm mesmo do simples fato de dividirem as mesmas dificuldades sociais e econômicas que obrigam que eles não possam se limitar a entender o mundo como fenômeno individual e em separado, e sim juntando seus afetos como forma mesmo de transcender e reagir a tudo aquilo que os cerca e oprime (onde a imagem-síntese teria que ser a grande família que vai se amontoando na casa/boate de À Vida, À Morte! – 1995). Em certos momentos, Guédiguian vai usar de imagens mais amplas desta grande família, seja no condomínio de O Dinheiro Traz a Felicidade (1992), fábula moral onde os personagens só podem sobreviver ao reconhecer sua condição de semelhante e trabalharem juntos num projeto coletivo; seja na transformação da própria cidade de Marselha numa mesma "casa", por assim dizer, em A Cidade Está Tranquila (2000) – que possivelmente marca o máximo da abrngência de uma possibilidade de olhar por parte de Guédiguian (tanto assim que o único filme seguinte que pudemos ver depois deste, Marie-jo e seus Dois Amores – 2001, apresenta uma mudança bastante forte de centro dramatúrgico e social, como notado no outro texto que compõe esta pauta).

Pelo olhar essencialmente marxista de Guédiguian, as relações de trabalho são igualmente preponderantes da vida dos personagens (e o ambiente de trabalho surge constantemente como ambiente de cenas – uma raridade no cinema de forma geral), e o desemprego ou o sub-emprego surgem como preocupação em quase todos os filmes. Mas, se a luta de classes surge seguidamente como tema e como possibilidade única de superação (na qual a solução cômica de O Dinheiro Traz a Felicidade se impõe como a mais radical apreensão), é no jogo dos afetos nesta "nova família" que se garante a efetiva realização e "permanência" no mundo destes personagens. Neste sentido, as dimensões do micro e do macro nunca podem ser separadas nos filmes de Guédiguian – e em Ao Ataque (2000) ele realiza uma devastadora auto-crítica sobre sua forma de ver o mundo, sobre as limitações e eventuais cacoetes de linguagem que seu cinema adquire ao longo dos anos (tanto que parece quase impossível, tendo visto este filme, alguém achar pontos de crítica ao cineasta que passem desapercebidos por ele mesmo). Vem deste filme, aliás, a fala que talvez possa ser a epígrafe da obra do cineasta, quando um personagem afirma: "Só duas coisas importam realmente: a luta de classes e o sexo". Expressão maior na crença da conjunção entre dimensão pessoal e coletiva, impossível haver.

Se aqui tentamos jogar algumas luzes gerais sobre o trajeto de Guédiguian que pudemos assistir (deixando de lado alguns aspectos talvez importantes como a trajetória do humor dentro de seus filmes, ou o uso muitas vezes expressionista e épico da música), não devemos cometer o equívoco de pensar seus filmes como iguais – temos sempre que olhar para eles como o diretor faz com os seus personagens: garantindo que eles são parte de uma organização maior do que suas individualidades, sem contudo acreditar que eles mesmos não sejam peças independentes, cheias de nuances próprias. Cada um dos trabalhos poderia render análises em separado onde estas características acima observadas ganham tonalidades distintas e muitas vezes complementares – seja na relação dos personagens com seu ambiente, com sua história pessoal, com o ambiente macro francês contemporâneo (claro que surge tematizada na sua obra a Frente Nacional, assim como a imigração é uma constante como tema). No entanto, não era o objetivo aqui, e sim que pudéssemos traçar estes pontos essenciais de uma obra vista na sua totalidade (chance sempre rara).

Cabe fechar este texto, porém, reforçando uma noção quase impossível de medir, mas que abunda da tela em Guédiguian: não importando o quanto o mundo e suas relações sociais pareçam injustas, o quanto o jogo econômico e político seja injusto e viciado, o traçado que o cineasta cria em seus filmes, mesmo aqueles que possam terminar de forma sombria (como o suicídio em À Vida, À Morte ou o assassinato em Deus Vomita os Mornos), levam à crença de que a vida vale muito a pena ser vivida. Neste sentido talvez a cena que fecha A Cidade está Tranquila seja de fato a melhor metáfora de sua obra, com o menino tocando seu piano em meio ao ambiente fisicamente degradado que o cerca. O fato é que poucos cineastas gostam tanto de seus personagens quanto Guédiguian, e é este afeto que permite a conexão que nós estabelecemos com o que há na tela em seus filmes. Poderia-se mesmo dizer que se há um pecado repetitivo eventual em seu cinema é o de gostar DEMAIS dos personagens. Trata-se de pecado que vale a pena cometer, porém.

Eduardo Valente