CONTRA-REGRA
coluna semanal de televisão

Retomando...

Passo algumas semanas quieto e vou anotando coisas. É admirável observar a movimentação causada na programação da Rede Globo de Televisão pela "ameaça" concreta das propostas que giram em torno do projeto da ANCINAV.

Como quem não quer nada, querendo tudo, a emissora começa a movimentar seus pauzinhos em direção a uma maquiagem das mais elementares das questões que giram em torno da regulação das porcentagens de produto audiovisual independente (em especial, o cinema brasileiro) dentro das grades de programação das TVs abertas.

De um mês para cá, começaram a pulular pequenas iniciativas de programação que visam, claramente, desviar a atenção do projeto da ANCINAV, através de uma simulação dirigida das mais precárias do que seriam sinais de uma democracia audiovisual supostamente em prática no Brasil sob a égide do mercado e da audiência.

Não foi à toa que, de uma hora para outra, o "cinema brasileiro" virou xodó da Rede Globo, ganhando um quadro fixo dentro do Fantástico com o elogioso título de "Cena Mágica". Esse pequeno cala-boca global apresenta uma série de anedotas de bastidores sobre os bastidores de filmes brasileiros, com ênfase, é claro, naquelas obras cujos diretores estão mais alinhados com as propostas de concentração de produção que norteiam a ideologia da emissora. Essas anedotas, se, por um lado, representam um sinal de que o cinema brasileiro se transformou em um objeto de interesse de massa através da sua aglutinação à máquina "global", por outro deixa claro o quanto o cinema brasileiro está sendo utilizado como massa de manobra dentro de uma disputa que vai muito além das grandes telas.

O projeto da ANCINAV mexe muito mais profundamente nas relações da indústria audiovisual brasileira do que especificamente nas disputas estritas do cinema brasileiro e sua chegada às telas grandes ou à TV. O que se tenta vender com esses artifícios é o argumento de que a TV aberta no Brasil já é, por excelência, um antro de cultivo de uma tal "cultura brasileira" e que nada precisa/deve ser feito diretamente para fomentar a diversidade.

Não adianta fazer um dia especial no Intercine às duas da manhã e colocar isso na conta da porcentagem de produção independente na TV, porque grande parte desses filmes é feita através de terceirização de serviços da Rede Globo com meia dúzia de produtoras agraciadas, para as quais o império midiático consegue garantir os acordos com as majors para a utilização dos famigerados 3% que as digníssimas empresas de distribuição norte-americanas tem o direito de investir em cinema no Brasil.

Se a previsão é de que, daqui a cinco anos, a TV no Brasil já estará funcionando no formato digital (ou seja: o número de canais vai aumentar), o que se vê agora é uma luta para estrangular as reformas que viessem a incentivar a produção independente, justamente porque se sabe que em breve as grades de programação a serem preenchidas demandarão mais investimento e lucrabilidade para a produção – ou seja: o fermento está posto, o território a ser ocupado vai crescer, e não querem nem pensar em ter mais gente capaz de dividir as fatias do bolo.

Ou seja: pode até ser que as TVs aceitem dar umas migalhas de espaço de difusão para longas brasileiros, por que nesse jogo de trocas políticas, o que está em disputa é o domínio de uma produção audiovisual que vai muito além da película ou mesmo das telas de TV.

O que as empresas hegemônicas temem é que com a chegada da transmissão digital e a fusão entre a TV e os meios de difusão eletrônicos (celular, internet, etc), abra-se a possibilidade de iniciativas renovadas entre as empresas produtoras de conteúdo hoje no Brasil, minando o formato de concentração de capital hoje vigente. A Rede Globo, com sua organização econômica, precisa esmagar as outras formas de produção para manter o seu modelo inchado e monolítico ativo. Em um país de economia de mercado ainda incipiente como o Brasil, ela não sobreviveria em um panorama de TV em que não tivesse 60% de audiência e 80% de investimento de publicidade. O que a Rede Globo quer não é exatamente ditar o que se vê nas telas de cinema do país, mas adestrar a produção independente cultivada no espaço do cinema de maneira que esta esteja dentro de sua estratégia de manutenção da hegemonia da produção e do controle do mercado publicitário. Controlar o cinema é uma maneira de estrangular a possibilidade de novas configurações.

Uma forma de pré-controle e achatamento das pequenas produtoras. É urgente que se modifique esse panorama e que se ignore esse tipo de maquiagem popular-elitista (quem pode ficar até as três da manhã vendo filmes?) que a Rede Globo arma para fazer de conta que tudo vai bem.

E daí vem o terrorismo: essa ladainha que diz que o modelo da Rede Globo é a única possibilidade de manutenção de uma indústria audiovisual no país forte o suficiente para resistir à "invasão estrangeira". Essa é uma falsa questão: porque a mesma regulação que promete enfraquecer o tipo de controle majoritário hoje vigente (como o das organizações Globo) serviria justamente também para regular e evitar essa dita "invasão".

A democracia no Brasil não poderá ultrapassar o mero idealismo representativo enquanto os principais meios de difusão de informações e idéias no país estiverem ainda condicionados a esse sistema de capitanias hereditárias.

Nota 1:
Aliás, constrangedora foi a entrevista bajulatória que Pedro Bial deu a Jô Soares a respeito da biografia que escreveu sobre Roberto Marinho. Figura certamente determinante na cultura brasileira do século XX, Marinho teve sua vida transformada em dois blocos de entrevista onde seu retrato era pintado como o de um herói positivo, misto de playboy-galã com esportista-empreendedor, retratado como o busto de um homem perfeito, cujos defeitos eram nada mais do que gracejos de uma personalidade "especial". A ironia de Bial ao se referir a qualquer um daqueles que já se opuseram à figura de Marinho (de Lula a Fidel...) chegou a níveis de cinismo impressionante, mesmo para uma clara campanha de auto-promoção da empresa. Bial chegou a afirmar que Roberto Marinho teria defendido a ditadura militar apenas por estar "mal-informado" e que o Golpe de 64 teria sido, sem dúvida, um contra-golpe anti-comunista – motivo pelo qual Roberto Marinho teria apoiado e sido apoiado pelos militares. Como no melhor das celebrações de personalidade de regimes totalitários, Marinho foi pintado como um líder carismático e insubstituível, um herói nacional... (Será que vai ganhar um feriado? Não duvido nada). O que impressiona não é o elogio de uma figura controversa, mas se observar a máquina global funcionando tão descaradamente nesse espetáculo de auto-promoção. Essa histeria da afirmação da relevância, porém, não deixa de ser um sinal da fragilização latente. Uma certa necessidade de se agarrar a idealismos simulados para justificar o que não se sustenta mais de forma imanente. Ou seja: uma máquina em crise precisa mumificar seus líderes e, na perspicácia do chulo, "vender o seu peixe".

Nota 2:
Figuraça por figuraça, nada supera Paulo César Pereio. O encontro bizarro do ator com o circo de moralismo sensacionalista do programa de Luciana Gimenez (o tal SuperPop) foi uma das pérolas involuntárias mais marcantes do ano. A precariedade das perguntas "bombásticas" e a habilidade de Pereio em transtornar seus entrevistadores criaram um espaço cênico ideal para que o ator lançasse algumas de suas pérolas e transformasse aquela profusão de perguntas-pegadinhas em um espetáculo de retórica e de idéias. Numa das passagens mais inspiradas, foi instigado ("colocado contra a parede") a responder se já teria se arrependido de fazer algum filme na vida – a que respondeu: "Foram muitos, tantos... Não vou citar os nomes dos diretores para não correr o risco de esquecer alguém." Pena, é certo, que a direção do programa e os entrevistadores tenham perdido diversas passagens riquíssimas da retórica do ator por um certo desejo inexplicável de rebaixar seu discurso. Algo como uma simplificação que visa sempre "respeitar" a mediocridade suposta de um público que nunca se localiza. Talvez revendo o programa com calma, Gimenez e a direção percebam que em alguns momentos a solução ideal teria sido mesmo arriscar um pouco mais, deixar de lado o modelo fácil do moralismo-que-funciona e dar espaço para que seu personagem-convidado atuasse de forma mais livre... Não foi à toa que a audiência do programa subiu. Não foi à toa que Pereio foi convidado a voltar em breve.

Nota 3:
Um elogio rápido: está uma beleza a programação de filmes do TV5. Vale muito à pena ficar de olho na programação do canal, que vem exibindo algumas pérolas recentes do cinema francês e algumas surpresas imperdíveis, como o segundo filme de Apichatpong Weerasethakul, Eternamente Sua/Blissfully Yours. E, melhor ainda, muitos com legendas em português. Ficar de olho e valorizar.

(Enquanto isso, em "Guadalupe"...)

Felipe Bragança


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