Democracias e imagens
1. Alguém ainda acredita que o horário
televisivo gratuito das eleições sirva
de alguma coisa mais do que nos fazer decorar pequenos
jingles medonhos e ter cada vez mais preguiça
de ir às urnas? A pasmaceira de marketing
padronizado que se tornou o espaço político
da propaganda eleitoral, faz do que deveria ser um espaço
de ebulição de idéias e polêmicas,
um pequeno desfile de logotipos, costurada por rostos
sempre sorridentes seja lá porquê motivo
for. Isso é sério e vai além da
crítica generalizada à publicidade: isso
não pode ser legal! Um candidato a prefeito não
pode ir ao ar usar o espaço público da
TV para cantar uma música que ele fez para o
Rio de Janeiro (e que está em seu último
CD!) e ficar por isso mesmo...
2. E o PT do Rio resolveu contratar Nizan Guanaes...
Para quê? Para fazer Jorge Bittar parecer mais
almofadinha do que ele já é? Para praticar
um telejornalismo fake que quer fazer crer que um candidato
com 5% de intenções de voto está
"quase no segundo turno"?! Nizan já
tinha fracassado ao levar adiante a campanha de Serra
à presidente, utilizando o mesmo tipo de recurso
estético que tenta transformar o candidato em
uma espécie de mauricinho asséptico mas
com boas intenções. E porque Jorge Bittar
sempre aparece falando diante de uma estante de livros?
Ele é "estudado", é isso? Cascateiro
por cascateiro, César Maia tem mais estilo e
é profissional, se bobear, há mais tempo
que o Guanaes.
3. O Brizola é candidato e o Nilo Batista
é vice, é isso? Até os mortos estão
na jogada? Outra coisa inacreditável dessa confusão
entre livre expressão e samba-do-crioulo-doido
que se tornou o espaço eleitoral gratuito da
TV é essa loucura que são os não-candidatos
que aparecem mais que os candidatos: é Denise
Frossard (acho que ela queria ser candidata, não?)
cujo nome aparece em letras garrafais na campanha alheia,
Francisco Cuoco (querendo eleger seu filho),
o Papai Noel de Quintino apoiando seu duende da vez,
o juiz Ciro Darlan citado como única plataforma
política de seu filhote, a Benedita dizendo que
o Pitanga é bom de Câmara... Ah, e o Enéas,
que aparece sempre ali ao lado de qualquer candidato
do PRONA, balançando a cabeça como quem
diz: "Aprendeste bem a tua lição,
meu discípulo..." Fora os anônimos
que aparecem como uma espécie de biombo ao lado
de outros tantos candidatos: alguns com cara de "vota
nele senão a gente te pega...", outros de
"fui contratada para sorrir".
4. E por pensar em democracia, eu ouvia um papo
de que a digitalização das salas de cinema
iria democratizar o acesso de pequenos filmes ao público.
Mas aí eu me assusto ao entrar no Espaço
Unibanco 2 aqui no Rio e ver um imenso logo da Rede
Globo de TV e depois uma seqüência clipada
de imagens das Olimpíadas, diretamente de nossa
querida emissora hegemônica (a grande TV brasileira
ou a TV grande brasileira?). E já me disseram
que em outros cinemas está rolando até
trailer de telenovela das sete... Curiosamente a novela
se chama "Começar de Novo", e eu só
queria saber: QUANDO?!
5. Mas o Olga, que todo mundo diz que é
televisivo (quando é que o povo da crítica
vai parar de usar "televisivo" como sinônimo
de "ruim-demais-da conta", hein?) parece que
logo, logo estará de volta às origens:
dizem por aí que vão fazer uma mini-série
de 5 capítulos do filme, cada parte com uns 40
minutos o que dá, deixe-me ver, cerca de 200
minutos. Ou seja, a Globo Filmes (que "nada tem
a ver com a TV Globo", é "outra coisa",
pelo menos é o que diz o Daniel Filho...) faz
um filme de 120 minutos, já rodando tempo extra
de filme o suficiente para fazer um total de uns 200
minutos, e depois passa na Globo, como mini-série
já tendo toda a pompa e circunstância de
ser uma "obra de cinema" (outra mania de usar
a palavrinha "cinema" como sinônimo
de alguma qualidade...)? Deixa eu ver se eu entendi:
a Rede Globo agora produz mini-séries com incentivo
fiscal, é isso? Uma empresa com milhões
anuais de lucro e uma máquina daquele tamanho,
construída sobre empréstimos e concessões
públicas, ainda pode agora fazer mini-séries
com dinheiro descontado dos impostos de outras empresas
que antes tinham que investir grana diretamente em cotas
de publicidade? É o nosso rico cineminha patrocinando
a TV Globo, é isso mesmo? (E viva democracia!
E viva o livre mercado...)
6. Porque o espaço televisivo se tornou
um território demarcado em que se faz de tudo
para tentar tomar terreno: É impressionante assistir
às últimas imagens de decapitação
dos norte-americanos no Iraque e perceber que a câmera
não está mais ali como mera difusora de
atos mas como instrumento ritualístico direto.
Facão-câmera se tornam indissociáveis,
construindo uma estética audiovisual seca (a
câmera de aproxima e se afasta, coreografada por
clichês do documentário) que parece ser
tratada como o antídoto direto para as imagens
de vídeo-game verde-esmeralda que os EUA costumam
vender como imagens de guerra. Choca ao mesmo tempo
pela crueza da imagem e por se perceber que ela só
existe enquanto gesto-imagem, ou seja: o espectador,
que a vê em sua casa, na internet ou onde mais
for, também está engolido pelo ritual,
faz parte dele, e não mais apenas o observa.
7. E aí eu mudo de canal e paro. Há
algo de bastante impressionante nas imagens da ParaOlimpíada,
que esse ano o SporTV resolveu mostrar com detalhes.
Pela primeira vez, admito, vejo esses jogos como algo
além de improvisos solidários para com
a deficiência física.Ver um homem de pernas
e braço esquerdo totalmente atrofiados, atravessando
como uma bala uma piscina, usando apenas um braço,
ou um homem que corre 100 metros em 20 segundos usando
suas pernas mecânicas, vai um pouco além
da mera curiosidade assistencial "humanista".
Imagens realmente de uma beleza forte, que não
se decifram com o primeiro clichê, e que tratam
de uma fragilidade e de uma força do corpo humano
como poucas coisas que eu já vi. Lembro dos homens
mutilados no Iraque, da dificuldade que a diferença
tem de encontrar espaços de sua realização,
da política transformada em jogo quadrianual
de marketing pessoal e paro novamente. Sem qualquer
pornografia, sem o desejo de mostrar o sensacionalismo
possível de corpos diferenciados, a transmissão
das Paraolimpíadas tem algo que vai além,
muito além de qualquer bláblábá
da "superação de limites" (embora
seus narradores assim o digam). E é, no mínimo,
impregnante. E alegre. Como poucas imagens da TV nos
últimos tempos.
Felipe Bragança
Textos
da semanas anteriores:
Clodovil
em sua casa (por Francisco Guarnieri)
Uma
rapidinha (sobre Ancinav) (por Felipe Bragança)
Divagações
da qualidade (por Felipe Bragança)
Anotações
da madrugada, parte 2: CNN (por Felipe Bragança)
Anotações
da madrugada, parte 1: Rede Globo (por Felipe Bragança)
Gomes
vs. Coen (por Francisco Guarnieri)
Viagens
Fantásticas (parte 2) (por Felipe Bragança)
Terapeuta
JK (por Francisco Guarnieri)
Viagens
Fantásticas (parte 1) (por Felipe Bragança)
Coito
de Cachorro, Otávio Mesquita, Sônia Abrão
e outras sumidades televisivas (por Francisco Guarnieri)
Pânico!
(por Felipe Bragança)
Notas,
notas, notas (por Francisco Guarnieri)
Da
TV e dos corpos humanos, parte 2 (por Felipe Bragança)
Da
TV e dos corpos humanos, parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência
da edição, edições da violência
(por Felipe Bragança)
Fauna
in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João
Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter
Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa
(por Francisco Guarnieri)
Semana
de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A
dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço
(por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 (por Felipe Bragança)
A
Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos
treze (por Roberto Cersósimo)
Algum
começo... (por Felipe Bragança)
Uma
novela de... (por Roberto Cersósimo)
O
canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe
Bragança)
O
fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)
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