Da primeira à ultima imagem,
do plano de um par de calçados femininos andando pela
rua, com música produtora de mistério e tensão, até
um desfecho exibido como três pontinhos, Patrice Leconte
aposta nas evidências. Na maior parte do tempo, porém,
cria expectativas para, sem exceção, negar-se a satisfazê-las.
O diretor francês passa quase o tempo todo incutindo
a dúvida sobre as aparências e as palavras dos personagens,
como se estivesse vinculado ao noir ou a um suspense
com trama marcada por reviravoltas, mas as aparências
e as palavras não têm nada por trás delas a serem reveladas.
Nenhuma verdade está escondida, embora a direção e o
roteiro, em várias passagens, tentem nos levar a crer
nisso. Todo mundo é apenas o que está dizendo ser. Leconte
supreende, assim, ao negar surpresas. E conta para o
êxito de sua proposta com o repertório de um público
habituado a convenções de histórias narradas de forma
a suspender a credibilidade no começo e repor a crença
na imagem com o desvendamento da verdade. Ele ameaça
nos enganar, coloca-nos para duvidar da veracidade das
situações e dos personagens, para no final pregar a
peça: não havia porque desconfiarem de nada, tudo aqui
é apenas o que é.
Sandrine Bonnaire é a figura principal dessa artimanha.
Construída como uma variação da femme fatale do noir,
ela aparenta ter algo a esconder. Entra por engano no
escritório de um advogado tributarista, achando tratar-se
de um psicanalista, e conta para ele seu problema conjugal-sexual.
Após descobrir o seu engano e ter sido enganada, já
que o doutor não desfaz o equívoco mesmo após a segunda
sessão confessional, ela continua a freqüentar o “consultório”.
Surge um vínculo entre a falante e o ouvinte por meio
da necessidade de ambos por narrativas. No princípio,
ela conta, ele ouve; na seqüência, ao menos ocasionalmente,
inverte-se os papéis. Constata-se que ambos, cada um
por razões nunca explicadas (ainda bem), precisam da
terapia. E adensa-se entre os dois uma atmosfera sensual
sempre mantida no terreno do desejo não satisfeito e
de uma intimidade assegurada pela distância física –
algo mais ou menos recorrente no cinema de Leconte desde
pelo menos Monsieur Hire, como se o desejo precisasse
nunca ser atendido para se manter desejo, o traço lacaniano
do cinema do francês. Ao longo das sessões, um detalhe
aqui, uma frase ali, uma suspeita acolá, levanta a interrogação.
O que ela quer? Estará armando alguma arcapuca? Mas
por que? Algo sempre escapa (a começar por ela mesma)
de um sentido geral, como aliás diz um psicanalista,
este verdadeiro.
A tensão e a desconfiança estão na imagem desde sempre.
Quando a mulher toca em um apartamento errado, uma senhora
abre a porta e, depois de informar que ali não é o consultório,
olha-a como se visse algo errado nela. A câmera demora
para mostrar seu rosto de frente, exibindo a princípio
apenas pés e seu perfil. Quando ela chega ao escritório
do advogado, temos uma visão subjetiva dela, perscrutando
o ambiente como se procurasse alguma coisa, misto de
reconhecimento e estranhamento. A primeira metade também
é pontuada por enquadramentos no qual a câmera move-se
abruptamente, perseguindo cada gesto como se tudo tivesse
de ser totalizado, como se algum detalhe pudesse revelar
um segredo. Já na segunda metade, com a tensão estabelecida
e a vida do advogado já atormentada (pelo mistério da
mulher a quem deseja cada vez mais), a câmera recolhe-se
ao anonimato, regressando à familiar condução chique
e asséptica de filmes anteriores do cineasta.
É indisfarçável o esquematismo de roteiro, decupagem,
diálogos e cortes da maioria das seqüências, revelando
como tudo está ensaiado e no lugar, tão ajustado a ponto
de as falas e interpretações, assim como o ritmo das
palavras e das reações à elas por olhares e outras palavras,
produzirem cenas nas quais o funcionamento autônomo
superam seu contexto dentro do conjunto. Isso dá a vários
momentos e a todos os personagens um sopro de vida e
uma eficiência cômica em geral sufocados, em outras
experiências, pelo excesso de organização do roteiro
e da montagem. Sem arriscar vôos mais altos, mas também
sem quedas ou solavancos, Leconte armou um filme coerente
em sua condução. Dentro do que se propõe, cumpriu o
riscado.
Cléber Eduardo
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