CONFIDÊNCIAS MUITO ÍNTIMAS
Patrice Leconte, Confidences trop intimes, França, 2004

Da primeira à ultima imagem, do plano de um par de calçados femininos andando pela rua, com música produtora de mistério e tensão, até um desfecho exibido como três pontinhos, Patrice Leconte aposta nas evidências. Na maior parte do tempo, porém, cria expectativas para, sem exceção, negar-se a satisfazê-las. O diretor francês passa quase o tempo todo incutindo a dúvida sobre as aparências e as palavras dos personagens, como se estivesse vinculado ao noir ou a um suspense com trama marcada por reviravoltas, mas as aparências e as palavras não têm nada por trás delas a serem reveladas. Nenhuma verdade está escondida, embora a direção e o roteiro, em várias passagens, tentem nos levar a crer nisso. Todo mundo é apenas o que está dizendo ser. Leconte supreende, assim, ao negar surpresas. E conta para o êxito de sua proposta com o repertório de um público habituado a convenções de histórias narradas de forma a suspender a credibilidade no começo e repor a crença na imagem com o desvendamento da verdade. Ele ameaça nos enganar, coloca-nos para duvidar da veracidade das situações e dos personagens, para no final pregar a peça: não havia porque desconfiarem de nada, tudo aqui é apenas o que é.

Sandrine Bonnaire é a figura principal dessa artimanha. Construída como uma variação da femme fatale do noir, ela aparenta ter algo a esconder. Entra por engano no escritório de um advogado tributarista, achando tratar-se de um psicanalista, e conta para ele seu problema conjugal-sexual. Após descobrir o seu engano e ter sido enganada, já que o doutor não desfaz o equívoco mesmo após a segunda sessão confessional, ela continua a freqüentar o “consultório”. Surge um vínculo entre a falante e o ouvinte por meio da necessidade de ambos por narrativas. No princípio, ela conta, ele ouve; na seqüência, ao menos ocasionalmente, inverte-se os papéis. Constata-se que ambos, cada um por razões nunca explicadas (ainda bem), precisam da terapia. E adensa-se entre os dois uma atmosfera sensual sempre mantida no terreno do desejo não satisfeito e de uma intimidade assegurada pela distância física – algo mais ou menos recorrente no cinema de Leconte desde pelo menos Monsieur Hire, como se o desejo precisasse nunca ser atendido para se manter desejo, o traço lacaniano do cinema do francês. Ao longo das sessões, um detalhe aqui, uma frase ali, uma suspeita acolá, levanta a interrogação. O que ela quer? Estará armando alguma arcapuca? Mas por que? Algo sempre escapa (a começar por ela mesma) de um sentido geral, como aliás diz um psicanalista, este verdadeiro.

A tensão e a desconfiança estão na imagem desde sempre. Quando a mulher toca em um apartamento errado, uma senhora abre a porta e, depois de informar que ali não é o consultório, olha-a como se visse algo errado nela. A câmera demora para mostrar seu rosto de frente, exibindo a princípio apenas pés e seu perfil. Quando ela chega ao escritório do advogado, temos uma visão subjetiva dela, perscrutando o ambiente como se procurasse alguma coisa, misto de reconhecimento e estranhamento. A primeira metade também é pontuada por enquadramentos no qual a câmera move-se abruptamente, perseguindo cada gesto como se tudo tivesse de ser totalizado, como se algum detalhe pudesse revelar um segredo. Já na segunda metade, com a tensão estabelecida e a vida do advogado já atormentada (pelo mistério da mulher a quem deseja cada vez mais), a câmera recolhe-se ao anonimato, regressando à familiar condução chique e asséptica de filmes anteriores do cineasta.

É indisfarçável o esquematismo de roteiro, decupagem, diálogos e cortes da maioria das seqüências, revelando como tudo está ensaiado e no lugar, tão ajustado a ponto de as falas e interpretações, assim como o ritmo das palavras e das reações à elas por olhares e outras palavras, produzirem cenas nas quais o funcionamento autônomo superam seu contexto dentro do conjunto. Isso dá a vários momentos e a todos os personagens um sopro de vida e uma eficiência cômica em geral sufocados, em outras experiências, pelo excesso de organização do roteiro e da montagem. Sem arriscar vôos mais altos, mas também sem quedas ou solavancos, Leconte armou um filme coerente em sua condução. Dentro do que se propõe, cumpriu o riscado.

Cléber Eduardo