COFFEE AND CIGARETTES
Jim Jarmusch, Coffee and cigarettes, EUA, 2003

Jim Jarmusch foi alguém que não titubeou em pegar todos os rótulos que emprestavam à sua geração e transformou-os em experiência significativa dentro de seu cinema. Tédio, cinismo, alienação, banalidade: tudo o inspirou na composição de um cinema tão mais charmoso quanto mais se aproxima do nada absoluto. Coffe and Cigarettes é uma coletânea de curtas realizados desde os anos 80 até recentemente, e condensa o ápice não só da proposta blasé – posada mesmo – de Jarmusch, mas também do seu humor peculiar. Fazer do nada um acontecimento (conquista warholiana que se infiltrou pela arte contemporânea de forma muitas vezes canhestra) envolve um mecanismo tão silencioso quanto intrincado. É preciso, antes de tudo, resgatar a poesia desse nada, recriá-lo enquanto forma, signo, potência, escritura. A equação imagem = nada, que boa parcela do cinema não cansa de reiterar conscientemente, tem variáveis em número muito limitado, e não se aplica aos casos em que o cineasta esquece de fazer do vazio um lugar justamente a ser ocupado por nossa atenção e por nossos sentidos.

Saber encenar o nada. É curioso que os piores episódios de Coffee and Cigarettes  coincidam com as tentativas de inserir conflito lá onde imperava o marasmo e o lado cômico pura e simplesmente. O tom muda quando sai um Roberto Benigni que se oferece para ir ao dentista no lugar do amigo e entra uma Cate Blanchett em constrangimento com a “prima pobre” (episódio que esbarra na obviedade ao enquadrar dois destinos possíveis para personagens que na década anterior poderiam perfeitamente viver sua adolescência “sem rumo” nos filmes de Jarmusch). O melhor de Coffee and Cigarettes está naquela luz de boate e naquelas músicas que saem da jukebox e pontuam a conversa entre Iggy Pop e Tom Waits. Ou nos garçons que Steve Buscemi e Bill Murray interpretam em suas aparições (como sempre) fascinantes. O que impressiona na relação que Jarmusch tem com alguns atores é que – uma vez que ele cresceu praticamente morando dentro das imagens (pois pertence à primeira geração para quem a televisão ficava ligada o dia todo) – ela revela essa poderosa afeição com o que está dentro da imagem. Os atores precisam estar dentro do filme, ao contrário da figura escondida e dissimulada do autor: Coffee and Cigarettes presta tributo ao que só pôde existir porque encontrou seu espaço no retângulo do cinema. Quando Bill Murray aparece, a graça do filme passa a ser tão-somente ver Bill Murray, presenciar Bill Murray, rir com ele. E isso já é tudo.

Que não se confunda essa intimidade entre Jarmusch e o “nada” com esterilidade artística: sua eterna busca por um olhar “de fora” deu origem a uma visão bastante perspicaz da cultura americana contemporânea. Ao contrário do processo mais comumente detectado, Jarmusch não deixou que os clichês escurecessem sua visão do mundo, e sim puncionou do engarrafamento de signos da cultura pop – em que acabava incluído nem que fosse por osmose – a força criativa para uma obra de beleza inegável. Olhando em retrospecto, a pasmaceira do sensacional Estranhos no Paraíso condensa maravilhosamente o sentimento de uma geração pós-punk que, passado o turbilhão das duas décadas precedentes, não queria perturbar nem ser perturbada.

Antes de qualquer outra coisa, Coffee and Cigarettes é um filme-diversão. Do cineasta com os atores e do cineasta com os seus espectadores. Trata-se, em muitos momentos, de uma piada interna que envolve tanto o universo de Jarmusch quanto o dos atores do filme (o episódio com Alfred Molina e Steve Coogan, o pior do filme, reflete bem essa idéia de um conjunto de referências fechado). O filme visita várias fases da obra de Jarmusch, do que as pistas às vezes são dadas pelo elenco de cada curta (e pela própria cronologia obedecida dentro do filme). Roberto Benigni, Tom Waits e Steve Buscemi, por exemplo, sugerem que os três primeiros curtas foram realizados na época de Daunbailó e Trem Mistério.

Como é de se esperar numa coletânea de pequenos filmes feitos em épocas diversas, Coffee and Cigarettes é desigual, alterna altos e baixos. Mas já seria um bom filme mesmo se só contasse com os três curtas que o abrem e com a pequena obra-prima que o fecha. No último curta-metragem, dois velhos trabalhadores aproveitam a pausa entre um e outro serviço para, naturalmente, beber café e fumar um cigarrinho. É então que um deles evoca a belíssima música “Ich bin der Weit abhanden gekommen” (também encontrável como “I am lost to the world”), de Mahler, que desce ao filme como que egressa de um além revelador. Através de um artifício como esse, o cinema se evidencia como a pele de luz que o homem deve vestir para conseguir tocar e sentir novamente o mundo. Embora o título da música sugira um distanciamento e um cansaço (também expresso nos rostos dos personagens) em relação ao mundo, essa cena representa uma pausa justamente para escutar a sua beleza e a sua poesia (que o cinema pode tornar onipresentes). Uma poesia melancólica, decerto; uma janela que se abre naquele lúgubre pátio dos fundos (não há como não lembrar de Roberto Benigni desenhando uma janela na parede da prisão em Daunbailó).

Momento epifânico por excelência, esse final destoa em relação aos curtas que se localizam no meio do filme, e que dão a impressão de uma obra muito programada para ser cool (o episódio com os dois integrantes do White Stripes é o ápice dessa proposta - mas ainda assim um bom episódio). A música de Mahler e a imagem daqueles dois velhinhos terminando de beber o café elevam o filme a outro patamar, que antes ainda não havia sido alcançado pela série Coffee and Cigarettes – e que raramente é alcançado por qualquer cineasta em um filme de cinco minutos.

Luiz Carlos Oliveira Jr.