Jim Jarmusch foi alguém que
não titubeou em pegar todos os rótulos que emprestavam
à sua geração e transformou-os em experiência significativa
dentro de seu cinema. Tédio, cinismo, alienação, banalidade:
tudo o inspirou na composição de um cinema tão mais
charmoso quanto mais se aproxima do nada absoluto. Coffe
and Cigarettes é uma coletânea de curtas realizados
desde os anos 80 até recentemente, e condensa o ápice
não só da proposta blasé – posada mesmo – de
Jarmusch, mas também do seu humor peculiar. Fazer do
nada um acontecimento (conquista warholiana que
se infiltrou pela arte contemporânea de forma muitas
vezes canhestra) envolve um mecanismo tão silencioso
quanto intrincado. É preciso, antes de tudo, resgatar
a poesia desse nada, recriá-lo enquanto forma, signo,
potência, escritura. A equação imagem = nada, que boa
parcela do cinema não cansa de reiterar conscientemente,
tem variáveis em número muito limitado, e não se aplica
aos casos em que o cineasta esquece de fazer do vazio
um lugar justamente a ser ocupado por nossa atenção
e por nossos sentidos.
Saber encenar o nada. É curioso que os piores episódios
de Coffee and Cigarettes coincidam com as tentativas
de inserir conflito lá onde imperava o marasmo e o lado
cômico pura e simplesmente. O tom muda quando sai um
Roberto Benigni que se oferece para ir ao dentista no
lugar do amigo e entra uma Cate Blanchett em constrangimento
com a “prima pobre” (episódio que esbarra na obviedade
ao enquadrar dois destinos possíveis para personagens
que na década anterior poderiam perfeitamente viver
sua adolescência “sem rumo” nos filmes de Jarmusch).
O melhor de Coffee and Cigarettes está naquela
luz de boate e naquelas músicas que saem da jukebox
e pontuam a conversa entre Iggy Pop e Tom Waits. Ou
nos garçons que Steve Buscemi e Bill Murray interpretam
em suas aparições (como sempre) fascinantes. O que impressiona
na relação que Jarmusch tem com alguns atores é que
– uma vez que ele cresceu praticamente morando dentro
das imagens (pois pertence à primeira geração para quem
a televisão ficava ligada o dia todo) – ela revela essa
poderosa afeição com o que está dentro da imagem.
Os atores precisam estar dentro do filme, ao contrário
da figura escondida e dissimulada do autor: Coffee
and Cigarettes presta tributo ao que só pôde existir
porque encontrou seu espaço no retângulo do cinema.
Quando Bill Murray aparece, a graça do filme passa a
ser tão-somente ver Bill Murray, presenciar Bill Murray,
rir com ele. E isso já é tudo.
Que não se confunda essa intimidade entre Jarmusch e
o “nada” com esterilidade artística: sua eterna busca
por um olhar “de fora” deu origem a uma visão bastante
perspicaz da cultura americana contemporânea. Ao contrário
do processo mais comumente detectado, Jarmusch não deixou
que os clichês escurecessem sua visão do mundo, e sim
puncionou do engarrafamento de signos da cultura pop
– em que acabava incluído nem que fosse por osmose –
a força criativa para uma obra de beleza inegável. Olhando
em retrospecto, a pasmaceira do sensacional Estranhos
no Paraíso condensa maravilhosamente o sentimento
de uma geração pós-punk que, passado o turbilhão das
duas décadas precedentes, não queria perturbar nem ser
perturbada.
Antes de qualquer outra coisa, Coffee and Cigarettes
é um filme-diversão. Do cineasta com os atores e do
cineasta com os seus espectadores. Trata-se, em muitos
momentos, de uma piada interna que envolve tanto o universo
de Jarmusch quanto o dos atores do filme (o episódio
com Alfred Molina e Steve Coogan, o pior do filme, reflete
bem essa idéia de um conjunto de referências fechado).
O filme visita várias fases da obra de Jarmusch, do
que as pistas às vezes são dadas pelo elenco de cada
curta (e pela própria cronologia obedecida dentro do
filme). Roberto Benigni, Tom Waits e Steve Buscemi,
por exemplo, sugerem que os três primeiros curtas foram
realizados na época de Daunbailó e Trem Mistério.
Como é de se esperar numa coletânea de pequenos filmes
feitos em épocas diversas, Coffee and Cigarettes
é desigual, alterna altos e baixos. Mas já seria um
bom filme mesmo se só contasse com os três curtas que
o abrem e com a pequena obra-prima que o fecha. No último
curta-metragem, dois velhos trabalhadores aproveitam
a pausa entre um e outro serviço para, naturalmente,
beber café e fumar um cigarrinho. É então que um deles
evoca a belíssima música “Ich bin der Weit abhanden
gekommen” (também encontrável como “I am lost to the
world”), de Mahler, que desce ao filme como que egressa
de um além revelador. Através de um artifício como esse,
o cinema se evidencia como a pele de luz que o homem
deve vestir para conseguir tocar e sentir novamente
o mundo. Embora o título da música sugira um distanciamento
e um cansaço (também expresso nos rostos dos personagens)
em relação ao mundo, essa cena representa uma pausa
justamente para escutar a sua beleza e a sua poesia
(que o cinema pode tornar onipresentes). Uma poesia
melancólica, decerto; uma janela que se abre naquele
lúgubre pátio dos fundos (não há como não lembrar de
Roberto Benigni desenhando uma janela na parede da prisão
em Daunbailó).
Momento epifânico por excelência, esse final destoa
em relação aos curtas que se localizam no meio do filme,
e que dão a impressão de uma obra muito programada para
ser cool (o episódio com os dois integrantes
do White Stripes é o ápice dessa proposta - mas ainda
assim um bom episódio). A música de Mahler e a imagem
daqueles dois velhinhos terminando de beber o café elevam
o filme a outro patamar, que antes ainda não havia sido
alcançado pela série Coffee and Cigarettes –
e que raramente é alcançado por qualquer cineasta em
um filme de cinco minutos.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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