Maria (Samantha Morton), infectada
pôr vírus que não lhe permite manter
relações sexuais com William (Tim Robbins),
pede para ser estuprada. A seqüência, das
mais abjetas já vistas no cinema (ainda mais
nojenta porque Michael Winterbottom filma pornograficamente
as expressões de dor e de prazer do rosto de
Morton, em close up), exemplifica a compreensão
distorcida do cineasta quanto ao que significa a falta
de afeto – e a dor, a violência e o desespero
dela advindos – em um mundo cada vez mais mecânico,
previsível e "cosmopolita", ou seja,
em que as diferenças são excluídas
em favor do aparente bem-estar social.
William chega à mega-cidade de Xangai para investigar
desvios em empresa que produz vistos de permanência.
Neste futuro próximo, quando o mundo está
dividido entre o "dentro" (os habitantes das
cidades) e o " fora" (aqueles que vivem à
margem, nos desertos, vilas miseráveis e bolsões
fora-da-lei), a habilidade empática de William
– implantada artificialmente – utiliza a emoção
e o sentimento como mecanismos de auto-controle para
a hiper-racional sociedade em que vive, na medida em
que detecta os elementos nocivos que ameaçam
a perpetuação do status quo. A paixão
imediata por Maria, no entanto, leva o personagem de
Tim Robbins a trair o sistema que o originou, tornando-se
ele próprio um outsider.
Código 46 não prima pela originalidade,
ao contrário. Com sua trama repleta de insights
filosóficos, que emulam de forma rasteira o pensamento
de Gilles Deleuze e Michel Foucault acerca da sociedade
de controle – na qual o domínio se dá
não mais através da regulação
e da punição dos corpos, mas por meio
da manipulação do imaginário, no
que se permite, ou não, ver, sentir e pensar
-, o filme de Winterbottom espalha a esmo signos que
representam esta realidade opressiva, sem se decidir
entre o ensaio romântico ou o tratado político
com denúncia social: enquanto o maior ato revolucionário
de William se resume a doar para os miseráveis
da fronteira, como caridade cristã, visto de
entrada em Xangai, a paixão entre os protagonistas
existe mediante sonho escapista de Maria - para quem
o amor , encarnado no " príncipe encantado",
pressupõe a dissociação entre o
afeto e sua influência sobre o real empírico.
Assim, Winterbottom multiplica na tela referências
óbvias a este mundo desumanizado - como, por
exemplo, a preponderância das grandes corporações;
os passaportes que regulam a entrada e a saída
dos lugares; os pífios diálogos que misturam
diversos idiomas com a intenção de simular
uma língua, um código, universal; e, sobretudo,
a clonagem que, ao mesmo tempo em que garante a reprodução,
gera o risco de casamentos consangüíneos
(evitados pôr intermédio da lei que dá
título ao filme). Código 46, porém,
associa ao conceito em si pobre que desenvolve, uma
forma que apenas repete a de outros filmes, a saber:
no uso dos espaços vazios e desolados das áreas
de "fora" um Paris Texas, de Win Wenders;
na luz estourada e na fotografia marcada pôr tons
amarelos das seqüências no deserto, o Traffic,
de Steven Soderbergh; na confusão de cores berrantes
e na falta de profundidade de campo que caracterizam
Xangai, Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola).
Encontros e Desencontros, de fato, é a
maior referência para Código 46:
o mesmo encontro fortuito entre personagens desamparados
e solitários, o qual acontece em ambiente violento,
estranho, nocivo. Todavia, se para Sofia Coppola a comunhão
entre as diferenças, entre os marginalizados,
representa acontecimento de beleza extraordinária
e inexplicável, para Winterbottom ela serve para
equiparar a afetividade à patologia, pois estabelece-se
a partir de uma política de visibilidade total
(expor as emoções e os corpos sem considerar
as dores e os sofrimentos dos protagonistas) que, ao
exterminar o mistério, deixa somente os aspectos
asquerosos da natureza humana.
É quando se verifica a diferença fundamental
entre Michael Winterbottom e Rainer Werner Fassbinder,
a quem o primeiro diz admirar: se Fassbinder, com enorme
compreensão pelos personagens, filma o abjeto,
Winterbottom, sem piedade, apenas enquadra-os abjetamente.
Paulo Ricardo de Almeida
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