No artigo intitulado “O estado
das coisas”, publicado previamente à nossa cobertura
do Festival do Rio 2004 (e no ar junto com ela), considerei
algumas tendências de uma parte do cinema contemporâneo
e criei expectativa em torno de alguns filmes que estariam
sendo exibidos. Pois bem: bastaram dois dias de festival
para que se tornasse necessário retornar à discussão.
O Intruso e Mal dos Trópicos, que tiveram
suas primeiras sessões já no segundo dia do festival,
trouxeram novas e inquietantes questões - assim como
filmes que vieram depois (Santa Menina, Zatoichi,
Água-viva, Nossa Música, 29 Palms)
também adensariam consideravelmente essa reflexão. O
balanço mais abrangente e detido ficará para a edição
pós-Mostra de São Paulo, quando ocorrerá a verdadeira
ocasião de organizar as idéias, depois que tiverem sido
acrescentados à lista novos filmes e (espero) novos
focos de interesse.
A Mostra de
SP, entre outras coisas, trará a oportunidade de
(re)ver Mal dos Trópicos, (re)ver Santa
Menina, ver mais um Manoel de Oliveira (que, atualmente
com 95 anos, mantém a média de um filme por
ano – na maioria, obras-primas –, e está entre
os maiores fenômenos do cinema) e, finalmente acompanhar
uma retrospectiva de Kiarostami. Por ora, cabe
aproveitar esse intervalo de descanso entre as maratonas
do Rio e de São Paulo para dar forma à transição do
pensamento, condensando as impressões do recém-visto
e compartilhando novas prospecções a partir do que já
veio no Festival e do que estará na Mostra (sem falar
nas ausências lamentadas, como as de Wong Kar-wai, Hou
Hsiao-hsien, Hong Sang-soo...). Faz parte da atividade
crítica justamente essa resposta ainda no calor do “encontro”.
Dentre os melhores filmes que estiveram no Festival
do Rio, O Intruso, Mal dos Trópicos e
Zatoichi são alguns exemplos que evidenciam como
o mais interessante cinema que é feito hoje se repensa
nos termos de uma difícil arte de olhar para o mundo
e seus seres (por aí caminham, aliás, os escritos sobre
cinema de Jean-Luc Nancy, autor do livro que inspirou
O Intruso). Note-se bem: o cinema se repensa
(Manoel de Oliveira: “pensar o cinema: não defini-lo”).
E o que extrair desse olhar para o conjunto (impensável
enquanto conjunto) a que chamamos o mundo e seus seres?
Eis a interrogação que acompanha cada fotograma de Mal
dos Trópicos, esse filme-enigma que jamais deixará
de nos surpreender. A cada corte de seu novo filme,
Apichatpong Weerasethakul re-introduz a pergunta “o
que é esse plano?”, pergunta que adoramos fazer, mas
cuja resposta nem sabemos por onde começar a procurar.
Enquanto 29 Palms, de Bruno Dumont, esvazia o
espaço metacinematográfico do western clássico
e do road-movie moderno, Mal dos Trópicos
e Eternamente Sua (o anterior do cineasta tailandês)
são filmes que criam, com total entrega, novas formas
de preenchimento tanto do espaço cotidiano (as ruas,
o hospital, o local de trabalho, o transporte coletivo)
quanto do pouco visitado (o interior da floresta – ora
acolhedor, outrora misterioso). Se, para Deleuze, à
crise da imagem-movimento corresponde a emergência de
“situações puramente óticas”, em 29 Palms o percurso
se inverte, e vai da falência do nervo óptico rumo à
fratura de qualquer sentido de ação positiva. Ambos
sendo o terceiro longa-metragem de seus respectivos
diretores, 29 Palms e Mal dos Trópicos
são contrapontos perfeitos: deserto árido versus floresta
pluvial, esterilidade formal versus sensualidade estética,
choque do espectador versus sensação de leveza (o incrível
feel good dos filmes de Apichatpong), descrença
nos signos já conhecidos versus renovação artística.
À diferença de Bruno Dumont, a relação que o cineasta
tailandês estabelece com o espaço e com os seres que
o ocupam é sempre da ordem da afecção e do envolvimento
ativo. Em Mal dos Trópicos, nada escapa ao calor
do dispositivo por ele construído: até os insetos se
tornam símbolos de uma vida que pulsa e contagia. Na
segunda parte do filme, é consumada a indistinção entre
o espaço e seu ocupante (o que a roupa camuflada do
soldado já prefigurava), e é ainda mais aprimorada a
capacidade de extrair da paisagem todo seu potencial
visual/sensorial e reproduzi-lo na tela. O filme abre-se
por inteiro aos nossos olhos e ouvidos e, no entanto,
pouco entrega além de um profundo e sedutor mistério.
Não há um Atlas a ser utilizado para dissecar esse OVNI,
e isso frustra tremendamente os que não resistem à tentativa
de enquadrar aquilo que acabaram de ver de acordo com
uma certa bagagem (grande, pequena, pouco importa) de
cultura cinematográfica.
Embora se insista nas operações taxonômicas dentro do
universo-cinema, é preciso admitir de uma vez por todas
a inutilidade – ao menos no espaço de uma crítica –
de fazer o levantamento daquilo que é demandado para
inserir os filmes de agora numa história que a cada
instante revela um flanco ainda inexplorado. O cinema
ultrapassou (com uma velocidade assustadora, diga-se)
as características que se lhe atribuíam, e seus interrogantes
hoje são tão mais basais quanto menos elucidáveis -
ao contrário do que existiu no cinema moderno, em que
a complexidade de seus interrogantes, apesar de impedir
qualquer tipo de conclusão, permitiu uma enorme variedade
de respostas. Cada qual a seu modo, os cineastas buscaram
responder às questões que se colocavam – e que tinham
tanta urgência. Mas as respostas sumiram para dar lugar
a novas e instigantes perguntas. O cinema não deixou
de apresentar questões urgentes, de jeito nenhum: o
que Hou Hsiao-hsien, Abbas Kiarostami, Lucrecia Martel,
Claire Denis e Apichatpong Weerasethakul revelam em
seus filmes é justamente a urgência de uma nova forma
de olhar e sentir o mundo. Os ritmos de seus filmes
são cuidadosamente construídos, relegam a narratividade
a um plano minimalista, por vezes quase nulo, somente
o suficiente para manter em movimento a imagem de um
mundo cujo roteiro ainda está para ser escrito – um
mundo de gestos tão presentes que indefiníveis. Não se trata de um simples desdobramento da fenomenologia da coisa-em-si (pedra
angular da defesa clássica do realismo), mas antes do
avanço da discussão para o que efetivamente se absorve
da resposta da coisa filmada ao nosso olhar. A
dificuldade de se perceber a urgência dessa proposta,
contudo, está no fato de que esses filmes nunca gritam,
apenas sussurram.
Sussurrar: exatamente o modo de comunicação das personagens
de Santa Menina durante a aula enfadonha. E o
que leva Lucrecia Martel, depois de ter substituído
o desespero por uma sucessão de quadros inabitados e
silenciosos (na cena após a queda do menino, em O
Pântano), a acabar seu mais novo filme no momento
imediatamente anterior ao grito, na iminência do escândalo?
Caberia um escândalo naquele ritmo cotidiano descentrado
e viscoso? O desfecho de Santa Menina, ao rechaçar
essa nota estridente (inalcançável pelo theremin,
instrumento musical que perpassa o filme), é quase uma
afirmação de princípio. A melhor metáfora para esse
cinema do sussurro está também nas palavras que Bill
Murray fala ao ouvido de Scarlett Johansson no final
de Encontros e Desencontros. Ou no final de Mal
dos Trópicos, em que a fala (que estivera praticamente
ausente durante uma hora de filme) é liberada com a
leveza de um assopro, provocando, ao lado do “close
up à queima-roupa” do personagem que olha para a câmera
(ou melhor, para nós), um efeito de hipnose. Os longos
(e mágicos) planos do rosto do tigre, com aqueles olhos
percucientes que mal piscam enquanto nos achatam na
cadeira do cinema, também estão ali para nos hipnotizar.
Nessa época de festivais, vivemos com o cinema todas
as fases de uma relação amorosa: descoberta, exaltação,
intimidade, alegria, tristeza, decepção, reconciliação.
Em alguns casos, até mesmo o término, a promessa de
que nunca mais se assistirá a um filme daquele diretor.
Mas esse amor pelo cinema, como ressalta Kent Jones,
nunca foi platônico: “O cinema nos amou, ainda nos ama
e nos amará para sempre” (em seu artigo “Le Mot”, publicado
na revista Trafic nº 50). Muito simples: a tela
de cinema, como bem sabemos, não é um espelho, e sim
uma janela – o que implica a possibilidade de um outro
olhar, que vem do filme e que pode ou não cruzar com
o nosso. Durante muito tempo pensou-se a situação-cinema
como o ideal otimizado da atitude voyeurista de ver
sem ser visto. Mas a verdade é que mesmo antes de Janela
Indiscreta, daquele olhar violento que o assassino
(logo ele!) dirige à câmera, o cinema não só era consciente
de nossa presença (o que, no fundo, nunca escondeu)
como também desenvolvia maneiras de retribuir nosso
olhar e, principalmente, nosso amor. O cinéfilo está
longe de ser um não-correspondido, alguém que compra
as maiores brigas do mundo por filmes que nem sequer
tomam conhecimento de sua presença na sala escura (e
de sua devoção incondicional).
É isso que nos diz a última imagem de Eternamente
Sua, quando a personagem filmada em primeiro plano
vira os olhos para a câmera repentinamente, sem que
se pudesse esperar por essa ação (não fizera parte do
filme esse procedimento frontal). O olhar dura apenas
uma fração de segundo – pois logo ocorre o corte para
a tela preta –, mas é o suficiente para que não possamos
jamais esquecê-lo. Em Mal dos Trópicos, os olhares
para a câmera são recorrentes, às vezes detendo-se por
um longo tempo (e como não lembrar do plano final de
Vai-e-Vem, aquela imensa pupila que se congela
por minutos, a imagem de despedida de João César Monteiro).
O cinema afirma alguma coisa muito forte e muito enigmática
através dessas imagens. A única idéia que elas deixam
clara é que já passamos muito tempo (um tempo que foi
realmente necessário) olhando para o cinema. Chegou
a hora do cinema nos olhar de volta.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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