Cinco Vezes Favela
de Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Miguel Borges, Carlos Diegues e Marcos Farias, 1962, Brasil


O ano de 1962 foi, ao lado de 1963, um dos anos-chave da história recente do cinema brasileiro. Se 63 foi marcado pela absoluta consagração da tríade de obras-primas composta por Deus e o diabo na terra do sol, Vidas secas e Os fuzis, afirmando de uma vez por todas o lugar do cinema brasileiro entre as mais importantes cinematografias produzidas no mundo naquele período, 62 foi o ano zero, o ano em que o nosso cinema teve que definir parâmetros e esclarecer qual seria a verdadeira face de um fenômeno ainda nebuloso denominado Cinema Novo. Esse ano foi o da circulação de A grande feira, Tocaia no asfalto (Roberto Pires), Barravento (Glauber Rocha), Assalto ao trem pagador (Roberto Farias), Porto das caixas (Paulo César Sarraceni), Os cafajestes (Ruy Guerra) - e da vitória de O pagador de promessas (Anselmo Duarte) no Festival de Cannes.

A inegável importância histórica de Cinco vezes favela não reside apenas no fato de sua realização ser, juntamente com a dos títulos citados, uma das responsáveis pela composição do invejável panorama cinematográfico do ano de 1962 - mas, sobretudo por revelar três dos mais significativos cineastas cinemanovistas: Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman. Cinco vezes favela, única incursão cinematográfica do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes) que conseguiu ser finalizada (Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho foi interrompido pelo golpe de 1964) é sintomático para delinearmos as conexões e divergências compartilhadas por essa primeira geração do Cinema Novo e dos ideólogos do CPC.

O filme nada mais é do que a colocação em prática de um dos princípios primordiais do CPC: a instrumentalização do cinema e da arte para difundir unicamente seus objetivos políticos. A representação da cultura popular de Cinco vezes favela se aproxima intimamente de filmes como Bahia de todos os santos (Trigueirinho Neto/1960), A grande feira e Barravento - ou seja, a cultura popular significada como gérmen da alienação. Além da cultura emanada pelo povo ser a responsável por sua secular resignação, caberia a eles (os intelectuais pertencentes a uma classe intermediária entre o povo e a alta burguesia) a função de indicar a este povo a cultura popular que deveriam consumir. O CPC almejava, então, esculpir uma cultura popular própria baseada nas visões de seus integrantes, e assim jogá-la para o povo - quase da mesma forma que um aposentado joga milho aos pombos da Cinelandia. Essa arte popular de maneira nenhuma deveria incorporar as investigações de linguagem do Cinema Novo, e essa posição propagada em artigo no Metropolitano (órgão de imprensa da UNE) se constituiu em um dos motivos da inevitável ruptura.

Essa figura do elemento intermediário entre duas antagônicas classes, possuidor da função de conduzir o povo, que tanto os cinemanovistas quanto os militantes do CPC almejavam ser, aparece em aqui de maneira um tanto primária e maniqueísta. Dos cinco episódios que compõem o longa podemos agrupar três que transitam em uma direção comum. Eles são: O favelado (Marcos Farias), Zé da cachorra (Miguel Borges) e Escola de samba alegria de viver (Carlos Diegues). Em todos os três visualizamos a clara oposição entre a classe explorada e a burguesia, sempre mostrada de forma caricata. Mesmo Couro de gato (Joaquim Pedro de Andrade) não foge dessa tipificação. O que percebemos nesses episódios são os valores dos exploradores: luxúria, hedonismo e futilidade.

Os proprietários da favela de Zé da cachorra (pai e filho) promovem orgias enquanto a mãe (mantenedora da ordem) não está em casa; eles adotam como arma para seduzir os favelados o oferecimento de bebidas e cigarros americanos. Em uma seqüência onde está o pai explicando para um aspirante a político (o personagem intermediário condutor do povo nesse episodio) a sua estratégia de ação para expulsar os favelados do barraco, o corpo da mulher é percorrido pela câmera ressaltando o seu aspecto de objeto tentador. O mesmo ocorre em O favelado quando o protagonista se encontra na casa de seu agente manipulador: a atriz Isabela entra em cena sem dizer sequer uma palavra, sua função é unicamente seduzir e desorientar a razão do personagem.

Em Escola de samba alegria de viver essa oposição prazer versus trabalho não aparece transvestida sob a forma de uma pseudo luta de classes. No curta de Cacá Diegues o prazer aparece sim nas classes populares e através de uma das suas manifestações culturais: o carnaval. Manifestações que teriam como principal propósito desvirtuar o povo e tirá-lo de seu engajamento político. De um lado está o personagem interpretado pelo dramaturgo Oduvaldo Viana Filho - vagabundo e carnavalesco - e do outro sua esposa que, além de trabalhar na fábrica, passa o tempo distribuindo panfletos e confeccionando cartazes de protesto. Há uma cena em que essa dicotomia trabalho/carnaval torna-se ainda mais óbvia e didática: a esposa está na porta da fabrica e o seu marido aparece. Ela olha para ele e fica na dúvida se permanece no local ou vai embora com o companheiro, e o elemento que destrói esse dilema fazendo-a ficar é justamente a voz autoritária do patrão. Portanto se o prazer é, no final das contas, opressor porque escraviza e imobiliza o homem, o trabalho também está longe de ser um agente libertador.

Pode-se dizer que esses episódios atingem um acentuado grau de conformismo. O favelado termina com o protagonista sendo agredido pelo povo, por tê-lo roubado (enganado por um bandido de classe social superior ele rouba os membros de sua classe) - e como se não bastasse é levado preso pela policia. O desfecho de Zé da cachorra reitera uma idéia esboçada desde o seu principio: a secular e eterna passividade do povo. O personagem que leva o nome do episodio não consegue convencer ou transformar ninguém, e a família vai embora do barraco, resignada, procurando outro lugar para se alojar. Em Escola de samba alegria de viver se o marido não consegue largar o seu "vicio" e segue dançando com a sua escola de samba, um rapaz que ao longo do filme exerceu o papel de silencioso observador abandona o seu uniforme de passista e desaparece perante aos nossos olhos pelas matas do morro em busca de uma mudança. Ele sim foi transformado - porém, sua possível tomada de consciência foi acionada por uma grande tristeza.

Igualmente triste e pessimista é a resolução de Couro de gato. Porém o episódio possui um expressivo lirismo, que os episódios acima descritos não apresentam. Sem utilizar diálogos, o curta nos conta através de montagem paralela as dificuldades encontradas por três meninos de rua para exercerem o seu ofício: caçar gatos que serão transformados em tamborins. Um dos meninos sente uma imensa afeição por um gato e seu conflito será entregá-lo para o matadouro ou não - por fim ele decide sacrificar o seu animal de estimação para que possa garantir a sua sobrevivência. O personagem desce o morro e, de frente para ele (e para nós, espectadores), está a civilização que nos afronta, civilização que insiste em apagar qualquer vestígio de poesia que possa existir misturada ao cotidiano. Qualquer afeto é considerado supérfluo por ela e sempre estará abaixo em sua hierarquia de valores.

Pedreira de São Diogo, o único dos episódios declaradamente anticonformista, otimista e que apresenta um verdadeiro sinal de transformação também é, sem sombra de dúvida, formalmente o mais interessante dos cinco. Plasticamente e estruturalmente influenciado por Eisenstein, principalmente o de Que viva México! (1932), o curta, apesar de nos apresentar um aparente líder, desenvolve a construção do personagem coletivo - o que se torna evidente no final quando são alternados closes de todos os explorados (favelados e operários) que decidiram enfim enfrentar o seu explorador. Este, representado na figura do chefe de obra, também aparece no final da seqüência de planos justaposto aos rostos dos oprimidos indicando que no final das contas ele foi derrotado. Igualmente portador de um tom eventualmente didático, ou até mesmo maniqueísta e simplista, Pedreira de São Diogo destoa dos demais episódios sobretudo por sua beleza plástica e por sua força poética.

Cinco vezes favela sendo visto hoje, após 42 anos de sua realização não difere em alguns pontos da mesma constatação ocasionada na época de sua estréia: a certeza de estarmos diante, no caso dos episódios O favelado, Zé da Cachorra e Escola de samba alegria de viver, de um discurso um tanto limitado, e ainda desprovido de maior interesse na parte estética. Já no caso de Couro de gato e de Pedreira de São Diogo percebemos que, apesar de banhadas no mesmo caldo ideológico dos outros três, há ali uma pulsão de cinema, um talento latente e uma verdade flamejante que só ao vermos o conjunto da obra de Leon Hirsman e de Joaquim Pedro podemos constatar como a promessa de dois grandes artistas que estavam por vir.


Estevão Garcia