Quase no final de A Voz do
Coração vem uma imagem extremamente
elucidativa para explicar o funcionamento do filme:
no papel de um dos alunos (já envelhecido, lógico)
da escola aonde boa parte do filme se passa em flashback,
o também produtor do filme Jacques Perrin termina
de ler a história que acabamos de assistir (no
filme, conteúdo de um diário), e chora
copiosamente. Pois bem, não é difícil
de imaginar a mesma cena na vida real: Perrin lendo
o roteiro (ou vendo o filme que deu origem a este),
e chorando, com vontade de contar aquela história
para mais gente. E, a julgar pela reação
da platéia (sucesso absoluto nos cinemas franceses),
ele conseguiu emocionar quem queria. E é aí
que pode aparecer aquela velha (e falsa) questão:
se era isso que o filme queria (atrair multidões,
emocionar a platéia), faz sentido criticá-lo
negativamente a partir de outros pressupostos. Para
os realizadores, certamente não, e parabéns
para eles pelo sucesso. Mas, para quem acredite que
vale a pena pensar o cinema para além dos números
de bilheteria e ver o que mais os filmes podem nos passar,
sempre vale a pena sim.
Pois bem, A Voz do Coração é
uma típica produção francesa que
os "jovens turcos" da Cahiers du Cinema inicial
chamariam de "cinema de qualidade". Qualidade
esta que, como sabemos, era uma ofensa e não
um elogio: um cinema que pegava a influência norte-americana
pelo que ela tinha de pior - a ostentação
de valores de produção e de uma dramaturgia
um tanto rasteira, ao invés da riqueza do cinema
de gêneros exercitado nos EUA. "Qualidade"
esta que traz consigo todos os valores mais reacionários
e conservadores de um determinado status quo para
fazer com que o filme seja bem recebido pela platéia
local (envaidecida que no cinema nacional se faça
algo de "tanta qualidade" - lembra algum país
conhecido nosso?), e eventualmente circule fora do país
de origem também. Os tempos hoje são outros,
mas a distância dos anos 50/60 parece apenas temporal
porque no cinema a velha discussão cisma em vir
à tona de novo (tanto por aqui, quanto na França):
há que se comemorar os feitos deste cinema reacionário
só por ser ele "nacional", ou ele se
prova mais daninho do que uma boa coisa?
Por exemplo, neste caso em questão, falemos do
tipo de coisa que comprova o primarismo de mais esta
versão da mesma velha história do professor
que chega em instituição careta para provocar
a revolução dos alunos, e ao mesmo tempo
sair mexido por estes (cuja mais recente versão,
diga-se, pelo menos tinha leveza pop e falta
de auto-seriedade em Escola do Rock). No clímax
do filme, duas sequências nos ajudam na missão:
primeiro, quando a escola pega fogo, e um pequeno plano
insertado esclarece somente para os espectadores (os
personagens do filme não vêem o que vemos)
quem foi o responsável pelo incêndio. Porque
este plano é primário: porque, para além
da informação ser completamente desnecessária
e só existir para dar conta do tatibitatismo
da narrativa, ele vai contra a lógica enunciativa
do filme, que é ser narrado a partir de um diário
em primeira pessoa sendo lido no futuro por um ex-aluno
- só que quem escreveu este diário não
poderia saber daquele fato que acontece longe dos olhos
dos personagens. Ou seja, é banal e sem nexo
dentro da lógica interna que o filme mesmo monta.
Mas nada disso parece muito ter importância para
um filme que passa toda a sua duração
nos dizendo para não julgarmos um livro por sua
capa (no caso, o professor que chega e descobre por
trás dos aparentes deliquentes juvenis da escola,
pérolas esperando para serem buriladas), mas
que dá ao seu vilão (o diretor da escola,
claro) o exato mesmo tratamento que afirma que não
devíamos dispensar a ninguém: a punição
brutal (humilhação e demissão finais),
e a certeza de ser ele irrecuperável.
Ou seja, trata-se de mais um filme sobre os "bons
sentimentos", mas desde que para aqueles que aprovamos.
Alguém ainda precisa disso - ainda mais encenado
com tanta falta de talento, de qualquer interesse para
além da mais estúpida e repetitiva "storytelling"?
E, no final da sessão, não custa perguntar
para as senhoras bem vestidas que choram copiosamente
com esta bela lição de vida em um chateau
francês: e na nossa Febem, não devíamos
ser tão compreensivos quanto com os belos delinquentes
loirinhos gauleses? Não, porque eles, como o
diretor da escola no filme, são da estirpe dos
irrecuperáveis - e lá o barato mesmo é
a tortura e a repressão policial a rebeliões,
para manutenção da "nossa ordem".
Oh, captain, my captain!
Eduardo Valente
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